quinta-feira, março 29, 2018

Treta da semana (atrasada): o ideal.

Em resposta ao problema da ineficácia do seu deus (1), Miguel Panão questiona «a visão de Deus que alguns ateus têm», nomeadamente eu, e que caracteriza assim: «Quem não duvida da inexistência de Deus tem de colocar algum ideal no Seu lugar e o único disponível é o ser humano.»(1) “Questionar” é um truque comum para fugir ao problema desse Deus, alegadamente omnipotente, nada fazer quando acontecem coisas como, por exemplo, dezenas de crianças morrerem num incêndio. “Questionam” se isso não será um acto inefável de suprema bondade incompreensível para meros humanos. Mas se Deus for incompreensível também não podemos saber se é bom, problema que Panão reconhece quando enuncia coisas boas que o seu deus terá feito: «Curou os cegos, libertou muito dos males interiores, elevou a dignidade da mulher, inspirou milhões a viver de um modo simples». Curar cegos e garantir igualdade de direitos entre homens e mulheres são coisas boas que se esperaria de um deus decente mas, infelizmente para Panão, o desempenho do seu deus nestas tarefas foi muito fraco. Mesmo acreditando que terá curado cegos, teriam sido poucos e só num cantinho obscuro do império romano. O impacto na saúde pública foi insignificante. A Palestina do século I também não foi um marco significativo no progresso para a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Quanto ao resto, não me parece ser corroborado pela história do cristianismo. No entanto, o ideal de Panão parece ser o mesmo que o meu.

Mas antes de falar desse ideal quero fazer um desvio. Panão diz que o meu ateísmo «não duvida da inexistência de Deus» para sugerir que o ateísmo está ideologicamente tão comprometido quanto o teísmo. E é verdade que não tenho dúvidas de que esse personagem é tão fictício quanto Zeus ou o Harry Potter. É uma atitude pragmática. Há tantas evidências de que o Harry Potter é um personagem fictício que não é preciso exigir mais. Só perante indícios sólidos da existência de feiticeiros ou de Hogwarts é que se justificaria ter dúvidas ou até mudar de ideias. Com o deus de Panão é o mesmo. As evidências que tenho permitem-me concluir sem quaisquer dúvidas que esse deus não existe, mesmo estando disposto a mudar de ideias se tal se justificar. Porque, em matérias de facto, o que me importa é ajustar as minhas crenças à realidade. Panão certamente faz o mesmo acerca de quase tudo. Também não duvida de que Harry Potter e Zeus sejam fictícios e também muda de ideias quando se justifica. Ninguém conseguiria ser viver de outra forma. Mas a nossa atitude é fundamentalmente diferente porque ele tem fé e eu não.

A fé é uma atitude excepcional que se aplica apenas num contexto restrito. Dentro desse, a crença deixa de valer pela correspondência à realidade e passa a valer por se conformar a um dogma pré-concebido. O crente, mesmo reconhecendo virtude em admitir erros e mudar de ideias acerca de quase tudo, no que toca à crença religiosa vê virtude em nunca mudar, aconteça o que acontecer. É daqui que vem a crise de fé, quando o crente percebe que aquilo em que exigem que acredite é absurdo mas sente-se obrigado a acreditar à mesma. E é daqui que jorra o contorcionismo demagógico que tenta justificar o injustificável. Porque é que o deus de Panão deixou aquelas crianças morrerem queimadas em Kemerovo? Não pode ser porque Panão estava enganado acerca da sua existência. Tem de ser para inspirar «milhões a viver de um modo simples, fraterno e informado pelo amor como dom-total-de-si-mesmo» ou coisa do género. É isto que nos separa. Panão até tem mais dúvidas do que eu. É tão óbvio que não existem deuses que nenhum crente esclarecido consegue evitar ter dúvidas. Mas, nisto, Panão não se deixa guiar pelas evidências. Só se guia pela fé e a fé não o deixa admitir que o seu deus é a fingir.

O ideal, no entanto, é o mesmo. Panão diz que eu troco o ideal divino por um ideal humano mas está enganado. O deus dele é um ideal humano. Nós vivemos numa bolha de espaço-tempo com treze mil milhões de anos de idade e pelo menos vinte e seis mil milhões de anos luz de diâmetro. Talvez muito mais do que isso e talvez seja apenas uma de infinitas bolhas numa espuma eterna de espaço-tempo. Se algum ser criou isto não foi o deus de Abraão, que deu mandamentos a Moisés e lhe abriu o Mar Vermelho, que inspirou Isaías e Daniel e encarnou como filho de Maria, putativo de José, para nos salvar a todos. Esse faria sentido como criador de um universo minúsculo, descartável, de um planeta com estrelinhas à volta criado em seis dias e um de folga. Uma coisa à escala humana, como o seu criador. Panão comete um erro básico de interpretação dos textos. Esopo não escreveu histórias sobre animais. Escreveu sobre pessoas. A história da Carochinha também não é sobre problemas de insectos e roedores. É sobre problemas humanos. O Rei Leão não troca ideais humanos por ideais felinos. É tudo sobre pessoas. O erro de Panão, e de muitos crentes, é julgar que as histórias da sua religião são sobre o criador divino do universo. Não são. Esse é só mais um personagem e essas histórias são também sobre pessoas. São sobre problemas humanos, ideais humanos e ideias humanas acerca de como resolver os primeiros e aproximar os segundos. Mas isto a fé não permite compreender.

1- Há esperança sem Deus?
2- Miguel Panão, A baixa fasquia de Deus

domingo, março 25, 2018

Treta da semana (atrasada): as quotas.

Este ano entra em vigor uma lei que impõe quotas de género na direcção de empresas públicas e empresas cotadas em bolsa. Visa obrigar a que haja mais mulheres nestes cargos. É uma má solução e um precedente perigoso.

No ensino superior, alunos provenientes de famílias pobres estão sub-representados. Uma criança nascida num bairro de lata ou numa aldeia pobre do interior dificilmente irá tirar um curso superior. Esta injustiça corrige-se mitigando os efeitos injustos da pobreza. É preciso subsidiar transportes e refeições, melhorar o ensino básico gratuito e acabar com as propinas, por exemplo. Impor quotas para candidatos pobres não iria resolver o problema e só iria criar uma nova injustiça ao preterir candidatos com melhor desempenho académico em favor de alunos mal preparados. Os sistemas de quotas são agnósticos às causas e servem apenas para disfarçar estatísticas.

Outro defeito da imposição de quotas é ignorar a diferença entre factores ilegítimos e legítimos. A desigualdade de género nas profissões é muito comum. Nas lojas de centros comerciais praticamente só trabalham mulheres. Nas entregas ao domicílio praticamente só trabalham homens. Isto deve-se a diferenças de preferências individuais mas também pode dever-se a preconceitos ou estereótipos. Uma rapariga quer entregar pizzas mas o pai diz que é um trabalho perigoso demais para ela, ou um rapaz quer trabalhar numa loja de roupa mas a mãe diz que isso é trabalho para mulheres. Pode acontecer, mas impor quotas para reprimir estes estereótipos e preconceitos seria análogo a impor quotas para contrariar a influência que os pais têm na religião dos filhos, nos seus valores pessoais ou quaisquer crenças. O poder coercivo do Estado não deve servir para isto. O Estado deve garantir que todas as pessoas são livres de escolher a sua religião, profissão e valores independentemente da opinião dos pais ou amigos mas não é legítimo legislar para forçar alguém a ter esta ou aquela opinião.

Admito que ninguém exige quotas para pobres no ensino superior ou para mulheres nas entregas ao domicílio. Mas é importante estabelecer consenso onde o há antes de discutir o que é polémico. Apesar da Constituição proibir o Estado de discriminar em função da região de origem, no ensino público superior 7% das vagas são reservadas para candidatos da Madeira e dos Açores. Isto pode parecer razoável porque o Estado já discrimina contra estas regiões na oferta educativa, que é maior no continente. No entanto, esta medida sofre de um problema comum a este tipo de solução. Os candidatos das regiões autónomas não são equivalentes. Uns têm bom desempenho académico mas poucos recursos para estudar no continente, sendo prejudicados pela desigualdade na oferta educativa sem beneficiar das quotas porque não precisariam delas para serem admitidos. Por outro lado, candidatos com fraco desempenho mas com mais dinheiro não são prejudicados pela falta de oferta local de cursos onde não conseguiriam entrar mas são beneficiados pelas quotas que os põem à frente de outros com melhores notas. É como se, atropelado um madeirense, bastasse levar qualquer madeirense para o hospital porque são todos a mesma coisa. É uma ideia tão errada que nem serve como aproximação grosseira. Trata-se de um mero truque político para disfarçar um problema sem o tentar resolver.

As quotas de género na administração de empresas sofrem de todos estes defeitos. A discriminação sexual ilegítima nos contratos de trabalho já é sancionada por legislação específica. Por exemplo, o artigo 24º do Código do Trabalho proíbe a discriminação sexual, religiosa e outras em situações específicas como acesso ao emprego, promoção e formação profissional. As quotas surgiram porque proibir a discriminação ilegítima não levou mulheres à administração de empresas, tal como não leva mulheres para a construção civil. As quotas não servem para corrigir qualquer injustiça para a qual sejam a solução adequada. Servem apenas para manipular estatísticas e nem têm benefícios para além daquela pequena minoria de mulheres directamente beneficiadas*. A imposição de quotas também trata todas as mulheres como se fossem a mesma coisa, não distinguindo entre aquelas a quem neguem promoção por discriminação e as outras que não chegam ao topo por haver candidatos melhores. Simplesmente impõem uma percentagem igual em todos os casos.

Pior do que isto, a imposição destas quotas exige leis discriminatórias. São como as quotas de género que havia no casamento. Conforme as situações, fazem um homem e uma mulher terem direitos legais diferentes. Isto viola um dever fundamental do Estado, que é não discriminar pelo sexo. A justificação para estas quotas é o combate a estereótipos e preconceitos. Ou seja, visam forçar as pessoas a mudar opiniões que, mesmo que discordemos delas, são tão legítimas como qualquer crença religiosa ou preferência pessoal. E este é o aspecto mais preocupante destas leis. Há uma diferença clara entre um regime legítimo e um regime autoritário. Num regime legítimo, o poder do Estado está limitado pelo dever de respeitar os indivíduos. Por exemplo, não pode discriminar pelo sexo, tem de garantir as liberdades de crença, opinião e expressão e tem de deixar cada um viver a sua vida como melhor entender exigindo apenas que não prive terceiros dessa liberdade. Só um regime autoritário é que usa o poder coercivo do Estado para impor opiniões e ideologias. E é isso, explicitamente, que querem fazer com esta lei. A intenção pode ser boa. Conheço quem defenda estas quotas e não são pessoas más. Mas o princípio é imoral e perigoso. É inadmissível usar o poder do Estado para forçar pessoas a pensar como alguém quer que elas pensem ou para violar deveres fundamentais como o de não criar leis que discriminem as pessoas pelo sexo. Ignorar estes limites só porque é ideologicamente conveniente e politicamente vantajoso é um erro que história do século XX nos devia ter ensinado a evitar.

* Este é um tema complexo que deve dar para vários posts, mas um efeito na Dinamarca foi uma redução no número de empresas afectadas porque as empresas mudaram os seus estatutos para fugir a esta imposição. Passaram de 452 quando as quotas foram introduzidas para 257 cinco anos mais tarde. Também não há efeitos detectáveis no desempenho das empresas nem na progressão na carreira de mulheres não directamente afectadas pelas quotas. Ver, por exemplo:
Norway’s female boardroom quotas: what has been the effect?
Evidence From Norway Shows Gender Quotas Don’t Work For Women
Ten years on from Norway’s quota for women on corporate boards

sábado, março 24, 2018

Treta da semana (atrasada): sim, mas não assim.

A propósito da disparatada licenciatura em “medicina” tradicional chinesa, David Marçal e Carlos Fiolhais apontaram «a falta de provas científicas» e de «fundamentação científica» dessa disciplina e que «É por causa da medicina baseada na ciência que hoje vivemos mais e melhor.» Esta «medicina científica» é melhor que a outra que «usa uma linguagem pré-científica»(1). Miguel Guimarães, bastonário da ordem dos médicos, fez o mesmo: «Em vez de [defenderem] a ciência com base na investigação e na metodologia científicas [, defendem que] a saúde e a ciência não necessitam de ter valor científico.» Com muito «validar cientificamente», «base científica», «fundamentação científica», «metodologia científica» e afins, conclui que «Sem validação científica, devidamente comprovada, é a saúde das pessoas que fica em sério risco.»(2).

Eu concordo que as “medicinas” tradicionais são uma treta perigosa e que não têm nada de científico. Mas esta abordagem está errada. Não apenas por se pôr jeito de críticas demagógicas como a de Leonor Nazaré, que denuncia o «paradigma científico […] do materialismo positivista», alega que «investigação científica séria e independente [...] propõe alternativas ao paradigma materialista da ciência» e outros disparates difíceis de desmontar quando se defende a ciência como fonte autoritária de conhecimento (3). Marçal, Fiolhais, Guimarẽs e, infelizmente, muita gente que tenta defender a ciência, erram porque invertem a direcção da relação causal. Dizer que a medicina é fiável por ser científica é como dizer que o atleta foi mais rápido porque lhe deram a medalha de ouro. É o contrário.

O teorema do “nenhum almoço grátis”, de Wolpert, Macready e Schaffer, diz, aproximadamente, que todos os métodos para tirar conclusões a partir de um conjunto finito de dados terão o mesmo desempenho, em média, se aplicados a todos os conjuntos de dados matematicamente possíveis (4). Ou seja, a priori, não há um método científico que seja melhor que qualquer outra coisa. Podia bem ser que a melhor forma de prever e manipular a realidade fosse lendo as folhas do chá, rezando ou lançando búzios. Pode haver um universo paralelo no qual a medicina tradicional chinesa é que funciona e a nossa ciência só dá respostas falsas. Acontece que a realidade em que vivemos não permite tudo o que é matematicamente possível e, nesta realidade, os métodos para tirar conclusões e fazer previsões não têm todos o mesmo desempenho.

É importante perceber que a diferença entre um método que funciona e um que não funciona é mera consequência da estrutura da realidade que estamos a descobrir. Não é característica intrínseca dos métodos. Por isso, aquilo a que chamamos “método científico” não é uma autoridade a priori de virtude epistémica e conhecimento. É um conjunto de técnicas que vamos aperfeiçoando para aproveitar as regularidades da realidade que nos calhou.

É por isso falso dizer-se que a medicina a sério é mais fiável porque é científica. O correcto é dizer que esta medicina é científica porque a sua metodologia foi aperfeiçoada para ser fiável. Muitos truques que compõem o método científico servem para combater a nossa tendência para a ilusão e o auto-engano. Não podemos fiar-nos nas respostas dos pacientes quando perguntamos se o medicamento funciona. Temos de os enganar, dando a uns comprimidos falsos para medir a diferença, porque todos desejam que o medicamento funcione. Quem avalia as respostas também não pode saber qual é o comprimido verdadeiro porque, se souber, será tentado a viciar o resultado. Mesmo acautelando tudo isto com ensaios duplamente cegos, temos de esperar por confirmação independente porque somos demasiado espertos para fazer ciência de forma fiável. E temos de recorrer a truques da estatística para não tomarmos como significantes resultados que são mero acaso. O que torna o método fiável é ser aplicado com atenção à forma como a realidade funciona, em particular a parte da realidade que somos nós, as nossas limitações e os nossos enviesamentos. O método não é fiável por ser científico. É científico porque é fiável.

Isto é muito importante quando se defende a ciência. Não só porque dar a entender o contrário é transmitir uma ideia falsa, o que é contraproducente, como também porque perceber que a ciência é produto da procura contínua por métodos mais fiáveis permite descartar tretas como a das “outras formas de conhecimento”, os espantalhos do “cientificismo” e do positivismo lógico, o falso conflito entre filosofia e ciência e tantos outros disparates que dependem da defesa – errada – da ciência como autoridade última que dita o que é válido e o que não é. Se percebermos que “ciência” é simplesmente o rótulo que colamos ao conjunto de métodos que se revelaram, até hoje, melhores do que as alternativas que já experimentámos, esses ataques perdem eficácia.

Assim, proponho aos defensores da ciência que descartem definitivamente a argumentação fácil, mas incorrecta, que se apoia em “provas científicas”, “validação científica”, “base científica” e afins. Não justifica nada e só induz em erro. É melhor explicar porque é que os métodos que a ciência vai adoptando são mais fiáveis do que as alternativas descartadas. No caso da medicina tradicional isso até é fácil. Antigamente, ninguém conseguia averiguar se as explicações que propunham estavam correctas. Especulavam acerca de humores, de yin e yang, de meridianos e da influência dos astros mas faltava-lhes os instrumentos e o conhecimento para ver quem tinha razão. Como é inevitável nesses casos, quase ninguém tinha razão e os restantes tinham pouca e só por sorte. Não se pode compreender infecções antes de inventar microscópios. É isso que interessa explicar. Ser científico ou não é uma mera consequência disto e não justifica nada.

1- Público, Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas.
2- Público, O ministro da “medicina tradicional chinesa”
3- Público, Biopolítica
4- Wikipedia, No free lunch in search and optimization