domingo, dezembro 31, 2017

Treta da semana (atrasada): o fácil e o difícil.

Depois do alarme social por causa dos livros de actividades para meninos e meninas, a comissão para a igualdade de género fez a editora reformular os livros, evitando a tragédia dos piratas e das princesas. Luís Aguiar-Conraria confessou ter «alguma dificuldade em perceber por que é este assunto tão difícil» e condenou os livros porque «lá por ler aqueles livros a rapariga não é impedida de ir, por exemplo, para astronomia […] mas é condicionada» e o melhor é «que ninguém os compre.»(1) A igualdade não é um assunto difícil. Mas a dificuldade que LAC confessa ter está em perceber que o assunto é outro.

O argumento de LAC parece partir da premissa de que «a biologia implica diferenciação, mas não discriminação». É razoável, mas é preciso distinguir dois tipos de discriminação. Por exemplo, impedir um homem de entrar no balneário das senhoras por causa do seu sexo é discriminação sexual. Mas é legítima. Nem toda a discriminação merece ser combatida. Ignorando esta distinção, LAC defende «políticas de igualdade de género» tanto para combater a discriminação sexual nos tribunais (e.g. «só por ser homem, sei que, se me divorciar, a probabilidade de ficar eu com as minhas filhas é severamente reduzida») como para combater livros de piratas e princesas ou a proporção dos géneros no ensino superior, casos nos quais não é nada óbvio que se viole algum dever de não discriminar.

A caricatura da natureza humana também esconde uma complexidade importante: «as sociedades humanas há muito que deixaram para trás o determinismo da biologia. Se assim não fosse, seriam os homens a usar saias, para arejar os seus órgãos genitais». Além de dar pouco jeito usar um urinol de saia, as saias e as calças surtiram pouco efeito na nossa evolução. Não foi isso que moldou a gravidez, a menstruação, a perda de fertilidade a idades diferentes, a amamentação ou a diferença de tamanho, força e hormonas entre os sexos. Essa evolução, muito anterior à roupa, moldou também de forma diferente as nossas prioridades e comportamentos, desde a distribuição do tempo entre os filhos e a obtenção de poder e bens materiais até a preocupações como a de estar a criar um filho que não é seu ou de ser violado por alguém do sexo oposto. Descurando esta complexidade, LAC culpa os estereótipos por todas as diferenças que lhe parecem inconvenientes, como a preocupação feminina com o aspecto físico. Mas um estereótipo é uma caricatura cognitiva. Simplifica e exagera mas é mais efeito do que causa. Culpar os estereótipos pelas diferenças de género é como culpar uma caricatura pelo nariz grande. Além destes erros, a luta pela igualdade estatística entre os géneros assenta num juízo de valor errado. E injusto. É um erro crasso mas é difícil de reconhecer quando se está comprometido com a ideologia. Por isso, vou tentar ilustrá-lo com um exemplo mais consensual.

Nuns desenhos animados que a minha filha vê (“Loud em casa”), um personagem é filho adoptivo de dois homens. Se me disserem para não a deixar ver estes desenhos animados porque, com seis anos, isto pode condicioná-la a ser homossexual, eu direi que isso é um disparate. Por um lado porque, mesmo que haja correlação entre a orientação sexual e a exposição a exemplos de homossexualidade, a probabilidade de serem estes desenhos animados a determinar a orientação sexual da minha filha é minúscula. Muito mais influentes serão os amigos que ela vai ter e outras experiências de vida, e eu não vou estar sempre a isolá-la de homossexuais para impedir o “contágio”. Mas esta nem é a razão mais importante. O mais importante é que não sou eu quem deve decidir a melhor orientação sexual para a minha filha. Qualquer que seja, será a dela e é dela que deverá vir, seja da sua biologia seja da sua escolha de desenhos animados, e não a vou impedir de os ver estes só porque retratam positivamente um casal homossexual.

É exactamente por isso que também lhe compro livros de princesas quando são esses que ela quer. E normalmente são. Recentemente, ela até me pediu para lhe instalar jogos para meninas. Quando lhe disse que não percebia o que era isso, porque os jogos são para todos (costumamos jogar Minecraft, por exemplo), ela especificou: com princesas, flores e cor-de-rosa. Talvez se eu contrariar estas preferências ela venha a ser empresária em vez de professora, que é a sua escolha do momento. Talvez eu possa condicioná-la a vender quase todo o seu tempo e a ganhar muito dinheiro, contando assim como uma mulher de sucesso e evitando que se torne numa vítima do patriarcado que perde tempo a jogar Minecraft com os filhos. Mas essa decisão deve ser dela e é isto que torna assunto mais difícil do que LAC parece compreender.

Concordo com LAC que «Quando se educa uma criança o objectivo deve ser aumentar-lhe a liberdade.» Mas isto só parece simples quando assumimos que as crianças são todas iguais e que todas as diferenças são fruto de estereótipos e discriminação. Se fosse verdade – se liberdade equivalesse a igualdade – bastava-me pôr a minha filha a brincar com os brinquedos dos irmãos, a ler os mesmos livros e ver os mesmos desenhos animados. Mas essa premissa é falsa. A minha filha é diferente dos irmãos e se quero que ela seja livre tenho de ter em consideração essa diferença. Isto dificulta a tarefa porque tanto a estou a condicionar comprando livros de princesas como recusando-me a comprá-los. Pior ainda, as “políticas de igualdade” exigem um juízo errado acerca das escolhas dos outros. Por exemplo, exigem assumir que é melhor a minha filha ser engenheira informática do que florista ou mãe a tempo inteiro. Só isto justifica combaterem diferenças estatísticas em vez de combaterem apenas casos concretos de discriminação injusta. Mas fazer juízos de valor acerca da profissão futura da minha filha é tão errado quanto julgarem a sua orientação sexual ou qualquer outro aspecto da sua vida que só ela tem legitimidade para avaliar. Como LAC reconhece, o objectivo mais justo devia ser a liberdade. Infelizmente, esse torna o assunto mais difícil e é por isso que anda tudo a lutar pela igualdade.

1- Luís Aguiar-Conraria, A natureza manda os homens usar saias

domingo, dezembro 24, 2017

Há esperança sem Deus?

Este foi o tema do debate em que participei no programa Agora Nós (1). O formato do programa não permite uma discussão aprofundada. Para evitar que os telespectadores mudem de canal os apresentadores impõem um passo rápido, exigindo respostas curtas e dando pouco tempo para elaborar ideias mais complexas. Ainda assim, penso que deu para contrapor alguns equívocos.

À pergunta que lançou o debate respondi que tenho esperança que sim. Foi uma forma diplomática que encontrei para não dizer que a pergunta é um disparate. A esperança é uma disposição subjectiva e a sua resposta a factores externos depende de como os interpretamos e avaliamos. Deus existir ou não existir é irrelevante para a nossa capacidade de ter esperança. Tiago Veloso, o meu interlocutor, padre católico e membro da Congregação da Paixão de Jesus Cristo, concordou mas avisou que, quando se tem esperança sem Deus «normalmente [...] há tragédias logo a seguir também. Quando confiamos muito em nós, demasiado em nós, nos nossos poderes, mais cedo ou mais tarde algo irá acontecer que nos vai fazer cair por terra.» Esta tese parece-me errada. Não é a fé que impede que o campanário da igreja rebente na próxima trovoada. É o pára-raios. São os nossos poderes e a nossa compreensão da electricidade estática e da condutividade dos metais que previne essas tragédias. O mesmo se passa com os antibióticos e as vacinas, o capacete e o cinto de segurança, as saídas de emergência e as escadas dos bombeiros. Objectivamente, o que realmente nos vai safando é a confiança justificada nas nossas capacidades. Não é Deus quem apaga incêndios, previne doenças ou impede os raios de destruir o campanário da igreja.

Esta esperança em Deus é sintoma de uma maleita da religião moderna. Durante milénios, quando ninguém sabia porque trovejava, de onde vinham as doenças ou como se podia combater as pragas, a ineficácia dos deuses era menos evidente. Mas agora é óbvio que não se pode contar com eles. Se é preciso fazer algo temos de ser nós a fazê-lo. Daí a esperança em Deus. Porque esperança é o que resta – é a última a morrer – quando mais nada justifica ter confiança naquilo em gostaríamos de confiar. Por exemplo, eu tenho esperança que não deixem o Trump fazer asneira com a Coreia do Norte. É esperança porque estou muito aquém de conseguir confiar naquela gente. Quando ando de autocarro é diferente. Nesse caso, não tenho mera esperança de que o motorista não espatife a viatura. Tenho confiança nas suas capacidades, justificada por anos a usar transportes públicos sem acidentes. Como Aleixo apontou, é isso que falta ao crente.

A inutilidade de Deus salta à vista no sofrimento absurdo. Na morte de crianças, por exemplo. A resposta de muitos crentes é, como invoca Miguel Panão, «Onde está Deus diante de uma doença injusta ou catástrofe natural? Já escrevi algo sobre isso, mas o P. Tiago foi excelente na resposta. Está na vítima. Naquele que sofre e morre com essa pessoa. Queres ver o rosto de Deus, olha para a criança com cancro e ama-a.»(2) A fasquia para a excelência de Deus parece estar cada vez mais baixa. Ninguém diria ser um bom médico aquele que, podendo curar a criança, ficava em vez disso a sofrer com ela enquanto a deixava morrer. Mas Deus é infinitamente poderoso e infinitamente bondoso sem fazer nada de jeito. Nem mesmo quando teria a obrigação moral de intervir. Panão fala da «força de um sentido e significado de Deus e da forma como interage com o mundo» mas não é claro que sentido e força isso pode ter se Deus nunca interage com coisa nenhuma, nem sequer quando devia fazê-lo.

Mas Panão aponta um factor importante para compreendermos a crença religiosa moderna, agora que é tão evidente que os deuses não servem para nada. «O Ludwig responde honestamente que não sabe e perante o cenário de estar dentro de um avião a cair opta por gritar de pânico. [Mas] de que serve um grito de pânico se não tem o objectivo de se dirigir a Alguém de quem se sente tão longe que só com um grito “espera” fazer-se ouvir?» Realmente, pode parecer estranho tanta gente se dirigir a Deus quando o efeito é nulo. Mas não é tão estranho se considerarmos que pedir coisas é o que aprendemos primeiro. Antes de uma criança conseguir cuidar de si já sabe pedir para que cuidem dela. E cuidam. Nisto, a nossa espécie é bastante diferente do resto dos animais. Pedir para que nos ajudem funciona muitas vezes e passamos os primeiros anos da nossa vida praticamente sem fazer outra coisa. É por isso que é tão importante incutir a crença religiosa nessa fase da vida. Enquanto faz sentido. Se esperarem que o futuro crente cresça, comece a cuidar de outros, a trabalhar e a tratar da sua vida, e só depois lhe falarem de Deus, irá logo perguntar-lhes para que é que isso serve. E concluir que não serve para nada.

Ter esperança sem Deus é como ter prendas sem o Pai Natal. É o que acontece a todos, mesmo a quem acredita no contrário. E não há mal nenhum em acreditar. Desde que se lembrem que as rabanadas não se fritam sozinhas. Ao contrário do que afirmou Veloso, a desgraça não vem quando temos confiança nas nossas capacidades. Vem quando, em vez disso, confiamos nas nossas fantasias.

Boa jantarada a todos, e a ver se o Pai Natal me traz um pouco mais de tempo para o blog daqui em diante. Tenho esperança.

1- A gravação está disponível No site da RTP-1, Agora Nós (V) 13 Out, 2017. O segmento começa por volta do minuto 40.
2- Miguel Panão, Há esperança sem Deus?