quinta-feira, julho 27, 2017

The Happy Film.

A convite do João Che Geada, vou hoje à estreia do The Happy Film, do designer Stefan Sagmeister, e vou participar no debate sobre a criatividade e a felicidade que decorrerá logo a seguir. Vou tentar portar-me bem. Os debates em que costumo participar têm mais antagonismo e tenho pouca prática de conversar sem divergências claras à partida. Se começar a discordar e dar secas peço já que me desculpem; será por hábito e, confesso, por gosto, mas não por maldade. Vou estar fora da minha zona de conforto mas tenho curiosidade em ver se percebo alguma coisa do filme, do que vamos conversar e do que vá dizer. Obrigado, João, pelo amável convite.

O filme começará às 21:00, na sala 2 do cinema São Jorge. Há mais informações sobre o filme, o debate e os bilhetes no site da academia The Creative Humanity.

terça-feira, julho 25, 2017

Treta da semana (atrasada): o protesto.

Paco Bandeira destruiu cinquenta mil CD num protesto contra os downloads, a rádio e as finanças (1). O protesto foi filmado em 2010 pela Saloia TV, foi noticiado pela comunicação social em 2015 (2) e agora foi notícia novamente. É o que dá só contratarem estagiários; ficam sem gente nas redacções quem se lembre de mais do que um ou dois anos do passado. À conta disto, Vasco Granja tem morrido bastante mais vezes do que seria de esperar, mesmo para quem deixa tanta saudade.

Um protesto demonstra o empenho na luta contra uma injustiça ou indignidade. Como a imolação dos monges vietnamitas em 1963, ou do tunisino Mohamed Bouazizi em 2011, ou a greve de fome dos membros do IRA em 1981, por exemplo. Bandeira destruiu discos que não conseguia vender e que optou por nem dar por causa dos impostos. Na escala de empenho do protesto, foi como fazer greve de fome entre o almoço e o jantar com um breve intervalo para o lanche.

Quanto ao alvo do protesto, a explicação prometida no vídeo ainda está para chegar mas, numa entrevista recente, Bandeira esclarece que o material destruído foi «um trabalho único, inédito, feito por Joaquim Pessoa (todos os textos) e as canções por Carlos Mendes, Fernando Tordo, Joaquim Pessoa, Jorge Palma, José Mário Branco. Produzi e paguei aos autores todos e paguei tudo na Sociedade Portuguesa de Autores»(3). Era uma «retrospectiva dos Descobrimentos», a propósito da Expo 98, que Bandeira aparentemente contava vender à Caixa Geral de Depósitos. Além de protestar contra a cobrança de impostos por doações, estava a protestar porque «agora toda a gente tira da Internet, toda a gente faz cópias piratas» e porque as estações de rádio também estão a «passar a música a cilindro». Segundo o narrador, Guilherme Leite, foi «um protesto contra aqueles que roubam os autores portugueses ao fazerem download da Internet em vez de comprarem o trabalho de quem trabalha».

Neste contexto, o protesto é estranho. Este álbum não parece ter sido partilhado na Internet ou sequer ter estado à venda. Também não parece ter interesse para estações de rádio. Além disso, Bandeira diz que pagou a todos os autores, pelo que não lhes podem ter roubado o trabalho. Foi um negócio que correu mal e foi só por isso que Bandeira destruiu tudo. O que diz muito acerca da mentalidade de quem quer vender música às rodelas.

A remuneração pelo trabalho segue um processo comum e familiar. As partes interessadas celebram um contrato e aquela que vende o seu trabalho recebe dinheiro da outra que o compra. É assim que quase todos os profissionais trabalham, incluindo muitos artistas que são contratados para dançar, tocar, cantar ou compor. Pelo que Bandeira relata, foi assim que pagou aos artistas que criaram as músicas daqueles CD. Não é esta relação laboral que suscita protestos. O que está a falhar é um tipo diferente de relação laboral que se estabeleceu, em alguns sectores, graças ao monopólio sobre a distribuição, inicialmente por limitações tecnológicas e hoje mantido apenas pela lei. O controlo da distribuição dá uma alternativa aos investidores que compram trabalho artístico. Em vez de pagar o trabalho e arcar com o risco do investimento, como é normal noutras actividades, passam o risco para os trabalhadores pagando-lhes apenas conforme o sucesso comercial da empreitada. Ironicamente, chamam “direitos de autor” a este direito de trabalhar primeiro e só receber mais tarde se o negócio correr bem ao patrão.

Já em 1998 era de prever que este modelo fosse deixar de funcionar. Talvez por isso os colegas de Bandeira, experientes, tivessem preferido receber dinheiro em vez de promessas de lucro futuro. E foi por isso que Bandeira ficou a arder com “vinte mil contos”, mais o aluguer do cilindro. Os hábitos dos ouvintes não mudaram muito. Ouviam rádio à borla; agora é pelo YouTube no telemóvel. Gravavam discos e programas da rádio para cassetes; agora fazem download. Compravam discos; agora subscrevem o Spotify. Para os artistas o fundamental também não mudou. Os que são mesmo bons arranjam quem lhes pague o trabalho. Os outros não, mas nem toda a gente pode ser artista de profissão. O que mudou muito foi o negócio da distribuição. Foi isso que tramou Bandeira. Ele estava a contar com a rádio e as lojas para ir ganhando renda durante anos a vender aqueles CD mas a distribuição tornou-se demasiado rápida e descontrolada para esse negócio funcionar.

É isto que explica o desfasamento entre a visão apocalíptica dos Bandeiras e a explosão de criatividade artística na Internet. A revolução digital foi boa para os profissionais que se adaptaram, foi boa para os amadores e foi excelente para o público em geral. Quem estava a contar com o dinheiro das portagens é que fica a ver o pessoal a passar ao lado da cancela.

1- Observador, Paco Bandeira destrói 50 mil CDs seus em protesto e grava momento em vídeo
2- YouTube, Saloia TV, PACO BANDEIRA DESTROI 50 MIL DISCOS... há 6 anos.
3- Move, Paco Bandeira sobre a destruição de discos: “É um jet lag com sete anos de atraso”

sábado, julho 22, 2017

Treta da semana (atrasada): o racismo do anti-racismo.

Bill Maher é comediante nos EUA e, no seu programa de televisão, fez uma piada com a palavra nigga. Maher não é racista nem a piada era racista mas teve logo de pedir desculpa (1). O rapper Ice Cube, no programa de expiação de Maher, explicou que essa palavra já só pertence aos negros e que ouvir um branco a dizê-la é «como uma facada» (2).

Devia ser óbvio o racismo de proibir uma palavra a quem não tem a cor “certa”. Mas Maher é branco e o racismo, dizem muitos, é só coisa que brancos fazem aos negros. Por exemplo, Joacine Katar Moreira explica que «o racismo está intrinsecamente, e historicamente, ligado à inferiorização dos negros (e não dos brancos)» porque surgiu do comércio de escravos pelos colonizadores europeus (3). O argumento não faz sentido. Os europeus compravam os escravos a comerciantes africanos e a escravatura é uma prática tão antiga como a de considerar que “eles” não são como “nós”. É absurdo defender que a discriminação racial só seja racismo quando brancos discriminam negros. O racismo não deixa de o ser por causa da cor do racista.

No entanto, é verdade que o oprimido não pode restringir ilegitimamente a liberdade do opressor. Senão seria ele o opressor. E é isso que importa no problema do racismo. O racismo de quem só quer namorados de certa raça é irrelevante porque é legítimo escolher namorados como se quiser. O racismo do político que acha que todos os ciganos são parasitas ou do polícia para quem todos os negros são criminosos é que ameaça direitos fundamentais daqueles sobre quem o racista tenha poder. É por isso que o racismo dos negros em países ocidentais é, em média, menos grave do que o racismo dos brancos. Porque, em média, os negros têm menos poder. No entanto, nenhum caso é a média e, neste caso particular, Maher está em desvantagem por ser branco. Se fosse negro nunca seria obrigado a pedir desculpa por usar uma palavra reservada a outra raça. Fechar os olhos ao racismo de quem não é branco cria um poder ilegítimo para coagir artistas brancos a pedir desculpa por disparates como a “apropriação cultural”(4) ou o uso de palavras “exclusivas” de outras raças. Vai contra a média, mas é opressão à mesma.

A própria justificação é racista: Maher nunca teve escravos mas basta que a cor da pele dele seja igual à cor da pele de quem tinha escravos. É esta falácia que faz o polícia que lida com criminosos negros tratar todos os negros como se fossem criminosos ou o espectador que vê notícias sobre terroristas muçulmanos tratar todos os muçulmanos como terroristas. São erros de raciocínio como este que temos de corrigir para combater a discriminação injusta. E isso exige pensar bem na igualdade que queremos e no que temos de fazer para a alcançar.

Infelizmente, a irracionalidade domina o discurso. Porque é mais fácil mobilizar grupos apelando à emoção do que à razão. A razão dá bons resultados mas maus seguidores e, por isso, a política favorece chavões em vez de razões e um forte sentimento de “nós” contra “eles” em vez da colaboração na resolução de problemas. E também porque é mais fácil ter convicções fortes seguindo o que se sente do que tentando pensar no problema de forma imparcial. A imparcialidade e a reflexão são inimigas mortais da pureza ideológica. É por isso que as soluções mais populares para problemas complexos tendem a vir da tripa e fazer pouco sentido.

Isto prejudica a luta pela igualdade. É importante garantir igual liberdade para todos, independentemente de sexo, raça ou qualquer outra característica irrelevante, e ainda temos muito trabalho pela frente até o conseguir. Mas subordinar a razão à emoção impede-nos sequer de discutir estes problemas de forma racional, quanto mais resolvê-los. Muitos defendem actos discriminatórios em nome da igualdade, trocando a justiça por uma satisfação visceral de vingança. E se lhes apontam que não se pode promover a igualdade de direitos restringindo liberdades de forma discriminatória, a conversa descamba em acusações de privilégio ou falta de respeito pelas sensibilidades dos outros. Basta pensar no alarido que seria se Maher dissesse que racismo é proibi-lo de dizer uma palavra por não ser negro. Impossível, diriam. É apenas mais um branco insensível.

Não faz sentido lutar pela sensibilidade de quem se ofende com as palavras de Maher ou as tranças de Perry. Também não é pela igualdade em si que temos de lutar. Seria estúpido, e até injusto, exigir quotas para brancos nas corridas de cem metros, ou limitar os salários das super-modelos ao que os homens conseguem ganhar nessa profissão, só para equilibrar estatísticas. Nem tão pouco é a discriminação que temos de combater. Cada um tem o direito de gostar ou detestar do que lhe der na telha e ninguém tem nada que mandar nas preferências dos outros. O alvo é apenas a injustiça de restringir a liberdade de alguém por causa de atributos que não o justificam. Como não poder dizer uma palavra só porque é branco.

1- The New Yorker, Bill Maher’s Weird, Effortful Apology for Saying the N-Word
2- TVLine, Ice Cube Schools Bill Maher on N-Word: 'It's Like a Knife — You Can Use It as a Weapon or You Can Use It as a Tool'
3- Público, A falácia do “racismo inverso”
4- NME, Katy Perry apologises for ‘cultural appropriation’