sábado, junho 18, 2016

Treta da semana (atrasada): mais ou menos empírico.

Entre cientistas que desprezam a filosofia como mera especulação de sofá e filósofos que a dizem intelectualmente superior, muitos alegam que a diferença entre ciência e filosofia é que a ciência é experimental e a filosofia é conceptual. É um erro sedutor mas o exemplo da matemática, alegadamente semelhante à filosofia na sua pureza intelectual, ajuda a duvidar da distinção. Por um lado, a matemática é mais parecida com a física do que com a filosofia. Tão parecida que os físicos mais famosos eram matemáticos. Ou vice-versa. Por outro lado, porque a matemática é fundamentalmente empírica. Só no início do século XX é que se tentou formalizar a noção de número numa teoria lógica sobre conjuntos. Além da noção de conjunto provir também da nossa experiência, durante dois mil e tal anos, de Euclides a Frege, ninguém sentiu falta de uma definição formal de “número”. Aqui estão três cabras, ali duas maçãs e este é um pau para dar na cabeça de quem se puser com perguntas parvas. A matemática sempre foi, e ainda é, uma abstracção da nossa experiência empírica. Tal como a física, a biologia e a química. E a filosofia.

Muitos julgam que há disciplinas filosóficas, como a ética, em que não se pode usar a experiência para seleccionar teorias. A ilusão resulta de haver várias teorias éticas que a experiência ainda não permite descartar. Mas seria trivial rejeitar empiricamente a teoria ética de que tudo é permitido se for azul e condenável se for de outra cor, por exemplo. A nossa experiência diria de imediato que tal teoria não serve. E, tal como na ciência, o progresso na ética foi sempre guiado pela experiência. O que mudou de Sócrates a Singer não foram premissas a priori. Foi o acumular de experiências e observações que permitiu compreender melhor problemas como a escravatura, a igualdade ou o sofrimento dos animais. Nem é por acaso que os argumentos da filosofia ética se baseiam tantas vezes em experiências conceptuais. Estas são uma forma expedita de fundamentar a teoria naquilo que sabemos por experiência.

Ainda assim, parece que a filosofia e a matemática dependem mais de experiências passadas e menos da recolha de novos dados do que a química ou a astronomia. Mas antes de seguir esta linha queria desatar mais um nó. Há quem proponha que esta é uma diferença na quantidade de experiências e implicações empíricas. Mesmo sendo sempre preciso um fundamento empírico, esta tese diz que a filosofia depende menos disso do que a ciência. Um exemplo clássico é a diferença entre uma afirmação como “nenhum solteiro é casado” e outra como “existe água em Marte”. Parece que a verdade da primeira depende apenas do significado dos termos enquanto a verdade da segunda tem mais alcance empírico. Até chega a Marte. Mas isto é falso. Nenhum solteiro é casado se o estado após o casamento não intersectar o estado anterior ao casamento. O que será verdade se o tempo for linear e unidimensional mas pode ser falso se o tempo for um círculo ou se tiver mais do que uma dimensão. Também se tem de assumir que o tempo é igual em todos os referenciais, e isso já sabemos ser falso. Portanto, uma pessoa até pode ser solteira num referencial e casada noutro, no mesmo instante medido em cada referencial. Afinal, a afirmação aparentemente inócua de que “nenhum solteiro é casado” tem implicações empíricas profundas. Talvez até mais do que “há água em Marte”. Seja como for, não conseguimos quantificar devidamente as implicações empíricas de uma afirmação de forma a possamos dizer, por essa quantidade, se é filosófica ou cientifica. Não é uma distinção que faça sentido.

Há diferenças naquilo que é imediatamente mais produtivo para avançar na investigação. O matemático que quer provar propriedades de uma função criptográfica, mesmo dependendo da experiência que fundamenta a matemática, vai precisar mais de pensar nas demonstrações do que de obter dados novos. O astrónomo que estuda supernovas, pelo contrário, vai dedicar mais tempo a recolher dados do que a demonstrar teoremas. Mas isto também faz o matemático que desenvolve modelos de risco para uma seguradora enquanto o físico que tenta normalizar uma função de onda vai recorrer mais à inferência do que à experiência. E mesmo que haja diferenças médias na necessidade mais imediata de recorrer à experiência ou à inferência entre disciplinas como a matemática e a bioquímica, não me parece ser isto que distingue ciência e filosofia.

O mais relevante é que, da matemática à biologia, a investigação tende a seguir um caminho bem delimitado pelos dados experimentais e por teorias dominantes para os interpretar. À parte de ocasiões em que os fundamentos são reformulados – com Copérnico, Bolyai ou Einstein, por exemplo – nas chamadas “ciências exactas” é normal conhecer-se bem o limite do plausível. Na filosofia, e nas “humanidades”, isto já não acontece. Por isso, nestas, a ênfase é na organização de hipóteses, na identificação de lacunas e na procura da fronteira em vez do progresso por um caminho bem definido. Não vale a pena concentrar o esforço da comunidade, durante gerações, numa teoria específica quando se concebeu várias igualmente plausíveis e há, provavelmente, outras tantas por conceber. É por isso que o filósofo tem de estudar muito mais história, e conhecer mais autores, do que o físico. Porque precisa de uma visão panorâmica do terreno que está a explorar. Mas, conforme o acumular de experiências e a sofisticação das teorias que as interpretam vão afunilando as possibilidades, organizar alternativas torna-se menos importante do que compreender a fundo as teorias dominantes, pô-las à prova e melhorá-las.

A filosofia não difere da ciência por ser menos empírica ou mais conceptual. Isso são ambas, conforme dá jeito. O que acontece é que chamamos ciência à filosofia que já encontrou teorias dominantes, como a relatividade ou a teoria da evolução, nas quais valha a pena todos investirem. E chamamos filosofia à ciência que ainda não tem teorias dessas. Chamamos filósofo a quem as procura e castigamos o filósofo que encontre uma passando a chamá-lo cientista.

domingo, junho 05, 2016

Treta da semana (atrasada): discriminação.

As nomeações para os Óscares* causaram polémica por só haver nomeados brancos. Racismo, protestaram muitos. Mas há mais discriminação nesses galardões. A mediana de idades dos homens que ganham o Óscar de melhor actor principal é 42 anos. A das mulheres é 33 anos (1). O prémio de melhor realização foi quase sempre para homens e o de melhor guarda-roupa para mulheres (2). E, se bem que a discriminação seja frequente, o seu repúdio é inconsistente. Segregar os Óscares conforme a raça seria certamente condenado como discriminação. Mas ninguém protesta contra os “Black Movie Awards”(3) ou estranha que se segregue alguns Óscares pelo sexo. Pior ainda do que estas inconsistências é a forma e o alvo das medidas contra a discriminação que, muitas vezes, criam problemas piores do que aqueles que pretendem resolver por não distinguirem entre a discriminação legítima e a discriminação ilegítima.

Todos nós discriminamos e todos temos o direito de discriminar. Concordando ou não com os critérios de outrem, aceitamos ser legítimo recusar ter relações sexuais com mulheres ou não querer namorar com ateus, por exemplo. Se a escolha é legítima, então discriminar é um direito qualquer que seja o critério. Como ninguém tem o dever de tratar todos por igual, até um racista homofóbico e machista tem direito de o ser em tudo o que disser respeito à sua liberdade pessoal, de consciência e de expressão. Só quando passamos para aquilo que se impõe aos outros, como leis, regras sociais ou tradições, é que esta discriminação se torna ilegítima.

Esta distinção importa porque é um erro cada vez mais comum combater a discriminação legítima das opções pessoais com medidas discriminatórias que, por serem impostas, carecem da mesma legitimidade. Por exemplo, um evento académico nos EUA foi cancelado porque as regras da universidade não permitiam que os convidados para o painel fossem todos do mesmo sexo. Eram designers de jogos, uma profissão com poucas mulheres e, apesar do organizador ter convidado uma mulher, ela acabou por não poder ir (4). É um exemplo de discriminação ilegítima criada para contrariar o que era legítimo. Relativamente poucas mulheres se interessam por informática, ainda menos por design de jogos e pouquíssimas se dedicam o suficiente a isto para se tornarem famosas. O que é pena mas resulta de uma cascata de escolhas pessoais legítimas. Em contraste, não é legítimo proibir eventos académicos em função do sexo dos participantes. O sexo é um atributo pessoal que a universidade não deve regular nem usar como discriminante. Ao descurarem a diferença entre a discriminação legítima das escolhas pessoais e a discriminação ilegítima das regras impostas criaram um mal pior do que aquele que queriam corrigir.

Além disso, a discriminação não é determinante para a legitimidade de um acto. Se é legítimo escolher livremente em quem votamos ou com quem saímos para jantar, é legítimo escolher pelo atributo que nos der na gana, seja a cor da pele, seja o sexo ou a profissão. Se a escolha é livre então qualquer critério é legítimo. Por outro lado, sendo ilegítimo espancar alguém com um barrote, tanto faz que seja por racismo, fúria ou para roubar dinheiro porque o mal principal está em bater na vítima com o barrote. As opiniões pessoais do agressor são secundárias.

Descurar isto tem consequências práticas e éticas. É menos provável que a polícia agrida uma pessoa branca do que pessoas de outras raças ou etnias. A maioria das vítimas de homicídios conjugais é do sexo feminino. Estas diferenças estatísticas levam muitos a classificar estes problemas como racismo ou “violência de género”. Mas não é esse o problema importante, até porque ninguém aceitaria como solução satisfatória a mera redistribuição das vítimas de forma a eliminar as diferenças estatísticas. O que importa é a violência e os homicídios, independentemente da distribuição numérica das vítimas, e isto não se resolve regulando as opiniões. Resolve-se mudando o comportamento, muito mais sensível a pressões externas do que as opiniões, que são notoriamente difíceis de alterar. É mais fácil convencer um vegetariano a comer bifes de cão do que convencer um racista a deixar de o ser. Além disso, todos temos direito às nossas opiniões mesmo que sejam repugnantes. Portanto, não é o racismo ou o machismo que temos de combater. É o homicídio, a violência e as normas injustas.

O racismo é um disparate. O machismo e o fascismo também. Mas nisto são como o criacionismo, a homeopatia ou a astrologia. Estas coisas merecem que lhes apontem defeitos, que as critiquem e até que as ridicularizem. Mas sempre reconhecendo o direito que cada um tem de se guiar pelos critérios que quiser em tudo o que lhe seja legítimo fazer. Seja a escolher o namorado, a votar para os Óscares ou a fazer comentários no Twitter, não podemos condenar quem pensa diferente só por não pensar como nós. O que temos de impedir é que imponham esses disparates aos outros. É quando o criacionista quer impingir as suas tretas aos miúdos na escola, ou o neonazi quer expulsar todos os estrangeiros, que temos de dizer não. Pensem o que quiserem, mas portem-se como deve ser. É essa linha que devíamos defender em vez de nos escandalizarmos com o racismo dos Óscares, os anúncios chineses (5) ou a “violência de género” no cartaz dos X-Men (6). Esta reacção exagerada contra quem não fez mal algum além de exprimir ideias que nos repugnam é meio caminho andado para a imposição de medidas discriminatórias, essas sim ilegítimas, como criminalizar actos inócuos (7) ou exigir quotas em função de raça ou sexo (8). Além disso, guiarmo-nos pelo politicamente correcto nestas coisas impede-nos de opor aquilo que realmente merece oposição, que são os casos em que a discriminação é imposta em vez de ser mera opção pessoal. As organizações religiosas são um exemplo monstruoso disso, afectando muitos milhões de pessoas desde a mais tenra idade e impondo aos seus membros regras que seriam crime em qualquer outra organização (9). Mas com isso poucos se importam, preferindo o combate vigoroso contra as nomeações para os Óscares ou os anúncios de detergentes.

* Sim, estou muito atrasado com isto. Não tem sido um semestre fácil e já ando a mastigar este post há carradas de tempo....

1- Wikipedia, List of Academy Award Best Actor winners by age e List of Academy Award Best Actress winners by age.
2- Wikipedia, Academy Award for Best Director e Academy Award for Best Costume Design
3-Black Movie Awards
4- HeatStreet, USC Cancels ‘Legends of the Games Industry’ Event for Not Including Women
5- YouTube, Racist Chinese detergent brand Qiaobi (俏比) ad
6- Hollywood Reporter, Rose McGowan Calls Out ‘X-Men’ Billboard That Shows Mystique Being Strangled
7- Por exemplo, colar fita cola em retratos é um “crime de ódio”, simplesmente porque os retratos eram todos de professores negros: Defaced photos of black Harvard law professors investigated as hate crime
8- Expresso: Governo exige quotas para mulheres nas empresas cotadas (mas só nos cargos de gestão; trabalhos que acarretem perigo ou que sejam especialmente desagradáveis, como em minas, construção civil ou manutenção de esgotos, podem continuar dominados pelo sexo masculino.)
9- Segundo o artigo 240º do Código Penal, quem «desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação [… por causa de …] raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género […] ou que a encorajem [e quem] Participar na organização ou nas atividades referidas [...] ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento; é punido com pena de prisão de um a oito anos.» Parece-me difícil defender que nenhuma organização religiosa cá em Portugal seja culpada de encorajar discriminação pela religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género.