sábado, dezembro 31, 2016

Treta da semana (atrasada): razões.

No seu blog sobre ciência e fé, Miguel Panão estranha haver «quem pense que os que acreditam em Deus, em realidades espirituais, são pessoas irracionais que não pensam ou fazem uso da razão». Como prova aparente da racionalidade destas crenças, aponta «os diversos estudos, livros, revistas com arbitragem internacional, cursos universitários, doutoramentos, conferências internacionais, centenas de milhares de livros sobre ciência e religião.»(1)

O primeiro indício de irracionalidade está na deturpação daquilo que quer contrapor. O que está em causa não é se um crente é capaz de usar a razão. Ninguém está a dizer que Panão, os criacionistas ou os imãs são irracionais em tudo. Apenas que foi irracional adoptarem aquelas crenças específicas acerca dos deuses. E o segundo indício de irracionalidade está na inconsistência de critérios. Há muitos livros sobre o catolicismo, escolas católicas e artigos católicos. Mas também há muitas madraças e livros sobre o Islão e doutores dessas matérias. E escolas evangélicas e artigos sobre o “design inteligente”. Apesar de Panão não considerar isto evidência adequada da racionalidade do Islão ou do criacionismo evangélico, invoca-o como prova de que a sua crença é racional. Esta inconsistência é irracional. No fundo, o mais estranho aqui é a estranheza de Panão. Panão estranha que considerem irracional que ele faça aquilo que ele considera irracional nos outros.

Depois, o truque do “cientificamente”. «Se eu acredito que apenas se considera real o que posso testar cientificamente, então, há muita coisa que irei considerar como ficção, mesmo que não seja. Por exemplo, ter uma ideia. Por que razão é possível ter uma ideia?» O “cientificamente” dá ideia de que há diferentes formas de testar. Está será num laboratório, com instrumentos e bata branca ou algo assim. Mas o científico não é a forma de testar. É testar. Se inventamos uma hipótese e ficamos por aí, isso não é científico. Mas se a compararmos com alternativas e tentarmos encontrar as que melhor explicam o que nos intriga, então isso é científico. E é isso que nos permite concluir que as pessoas têm ideias e as torradeiras não: explica-se melhor o comportamento das pessoas assumindo que estas têm ideias mas assumir que as torradeiras têm ideias é desnecessário.

Outro truque é a mudança subtil da questão. Panão começa por falar no que se considera real e dá um exemplo: «Por exemplo, ter uma ideia.» Será que ter ideias é real? Claro que sim, todos sabemos que é, e saber que animais têm ideias e que estruturas neuronais estão envolvidas são áreas activas de investigação científica. Por isso, Panão tem de lhe dar um jeito: «Por que razão é possível ter uma ideia?». E aqui o leitor pensa “aha, isto a ciência não responde”. É claro que Panão também não tem resposta para isto, mas não importa. E de seguida baralha ainda mais: «Como justifico cientificamente ter uma ideia? E qual o método científico que me permite avaliar se o conteúdo dessa ideia a revela como uma ideia com conteúdo?» Além das perguntas serem confusas, o “cientificamente” e “científico” não estão lá a fazer nada. Sem essas palavras, as perguntas são exactamente as mesmas. No fundo, Panão está a dizer que queremos compreender como o cérebro funciona. É um objectivo meritório mas isso faz-se com ciência. Não se faz com criacionismo bíblico, nem com o Islão nem com o catolicismo.

Continuando nesta linha, Panão defende que não é “cientificamente” que sabemos o que é real mas sim pela experiência: «O crente em Deus faz uma experiência de Deus.» A experiência é um dos factores que temos de considerar para saber o que é real. Mas, para interpretar a experiência, temos de conjecturar. É isso que Panão faz quando especula que a sua experiência é “de Deus”. Conjectura. E o melhor método para avaliar conjecturas à luz da experiência chama-se ciência. A epilepsia é um bom exemplo. A experiência de um ataque epiléptico é de uma assustadora perda de controlo. Uma conjectura que pretendia explicar esta experiência era a de que demónios possuíam o corpo da pessoa. Graças a explicações melhores, que a ciência permitiu encontrar, hoje temos tratamentos mais eficazes do que o tradicional exorcismo. A “experiência de Deus” é análoga. A experiência em si é real, mas atribuí-la a um deus é mera conjectura, uma explicação fraca que pode ser substituída por explicações melhores que dispensam o sobrenatural. E é importante ter em conta que mesmo quem adora deuses que Panão considera não existirem relata exactamente as mesmas experiências. Se Panão fosse consistente nos seus critérios, isto bastaria para desconfiar das conclusões a que chega.

Eu não acho que todos os crentes sejam irracionais. Pelo contrário. Alguns são tão racionais que me espanta serem crentes. Mas não há nada que se explique conjecturando deuses e “realidades sobrenaturais” que não se explique melhor ainda dispensando essas coisas e, se o objectivo for apurar a verdade, adoptar estas crenças é irracional. O que deve ser óbvio para crentes como Panão, perfeitamente capazes de perceber que os factores que invocam como justificação racional da sua crença são exactamente os mesmos que rejeitam como insuficientes para justificar as crenças dos outros. Isto e o cuidado que dedicam aos truques de retórica para fingir que há um método não científico de compreender a realidade, ou “as realidades”, sugerem que esta irracionalidade não é um mero lapso mas sim um acto deliberado. No entanto, chamar a isto irracional presume que o que importa é a verdade. Talvez não seja. O compromisso com uma crença religiosa afecta muito o ambiente social e até as oportunidades económicas do crente. Adoptar certas crenças, ou aparentar adoptá-las, pode trazer vantagens e renegá-las pode ter custos elevados. Assim, esta atitude até pode ser uma estratégia racional pelas vantagens que traz. No entanto, se for racional, não o será pelas razões que dizem fundamentá-las. A crença em Deus pode ser uma crença útil mas não é uma crença verdadeira.

1- Miguel Panão, Tanto tempo a discutir tão pouco…

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Ciência: 1, o propósito.

Quando se fala de ciência, seja no ensino seja em obras de divulgação, a ênfase é quase sempre no conhecimento que a ciência produziu. É indiscutivelmente útil conhecer o que a ciência produz mas enfatizar o produto em detrimento do método – que quando é ensinado é quase sempre como uma lista de regras para memorizar – dificulta a compreensão do mais fundamental, que é o processo em si. Por isso, muita gente acaba com uma ideia confusa daquilo que é a ciência. Com a minha característica falta de modéstia, queria dedicar uns posts a colmatar esta lacuna dando uma ideia mais clara do que é a ciência e de como funciona. Vou começar pela sua função e enquadramento na restante actividade humana.

A ciência é uma ferramenta. E a melhor maneira de compreender uma ferramenta é perceber para que serve e não serve. Todos os mamíferos conseguem aprender pela experiência. Aprendem a caçar, a partir nozes, a atar os cordões dos sapatos ou a escrever com o teclado, por exemplo. Mas este conhecimento fica implícito na organização das redes de neurónios e não pode ser transmitido, pelo menos enquanto não inventarmos tecnologia que o permita. Cada um tem de o obter por experiência própria. Este tipo de conhecimento está fora do âmbito da ciência. É útil para lidar com equipamento complexo e fazer experiências no laboratório mas não é com este conhecimento implícito que a ciência trabalha.

A representação simbólica é diferente. Permite inventar uma história, pô-la em palavras e enfiá-la pelos olhos do outro até ao cérebro. Isto pode ser usado para imensas coisas. Para procurar narrativas belas ou inspiradoras temos a poesia e a literatura. Para enganar os outros, convencendo-os de que temos poderes especiais ou que conhecemos gente importante, temos astrologias, religiões, teologias e afins. Podemos usar símbolos para fazer política, para reivindicar, para ameaçar, para prometer e o que mais a imaginação permitir. E, no meio disto tudo, podemos também supor que seres racionais, por muito diferentes que sejam em gostos e crenças, poderão partilhar representações simbólicas para concordar sobre muita coisa em virtude simplesmente da sua racionalidade. Isto importa porque essas representações simbólicas racionalmente válidas permitem ultrapassar qualquer divergência subjectiva entre seres racionais. A procura por essas representações racionalmente válidas chama-se filosofia.

Esta procura abrange muitos tópicos, desde a linguagem em si ao significado da nossa existência e ao que devemos fazer com a nossa liberdade. No meio disto tudo, estão as representações simbólicas que nos informam acerca da realidade. É um caso particular de racionalidade, tentar distinguir o possível do impossível, explicar o que aconteceu e acontece e prever o que irá acontecer. O ramo da filosofia que procura estas conjecturas chama-se ciência. Antes de continuar, ressalvo que não pretendo delimitar estes conceitos à faca. Não me interessa saber a temperatura exacta em que o chá quente passa a morno ou a fronteira exacta onde acaba a ciência e começa o resto. O que importa é ter uma ideia clara do fundamental.

E o fundamental é tão importante que o vou repetir: a ciência é o ramo da filosofia que procura descrições correctas da realidade. Devido ao enorme sucesso desta ferramenta, muita gente procura buracos onde possa esconder as suas crendices do escrutínio da ciência. Mas perceber o fundamento da ciência confere imunidade imediata ao truque das restrições arbitrárias. Isso é filosófico e não científico; a ciência só lida com a realidade material; ou com padrões que se repetem; ou o que pode ser medido; o que é natural; o que se faz no laboratório e assim por diante. É tudo treta. A ciência é a ferramenta para seleccionar as melhores descrições da realidade. É uma tarefa filosófica, pela sua racionalidade, e esta ferramenta serve para qualquer pretensão de descrever o que quer que seja da realidade. É essa a sua função. Não vem com buracos para deixar passar deuses, energias espirituais ou forças astrológicas.

É importante perceber também que a ciência não lida directamente com a realidade. O que seria impossível, pois qualquer tentativa de perceber a realidade depende do que se conjectura para interpretar o que se experiencia. A matéria prima da ciência são estas conjecturas. Os modelos, as hipóteses, as teorias, as explicações. É isso que a ciência produz, avalia e selecciona. É verdade que isto exige obter informação acerca da realidade, o que obriga a fazer experiências. Mas este é um detalhe técnico. Se os resultados de todas as experiências já estivessem registados bastaria consultar o registo. Se um computador simular reacções nucleares com rigor não é preciso rebentar bombas para testar uma hipótese. E se houvesse robôs que fizessem as experiências bastaria mandá-los trabalhar e recolher os resultados. O que já se faz, só que com bolseiros em vez de robôs. Por enquanto, ainda são mais baratos. O trabalho experimental tira teimas e inspira ideias novas mas a ciência não é recolha de dados. É o trabalho intelectual – filosófico – de explicar os dados.

A ciência não é um conjunto arbitrário de regras. É uma ferramenta. Quando a faca está romba, afia-se. Se a lâmina se parte põe-se uma mais forte. É a função que define a ferramenta e é assim que a ciência tem sido forjada, com o propósito de construir uma representação correcta da realidade. Foi isso que a tornou, e ainda a está a tornar, no melhor método para seleccionar as peças correctas, encaixá-las nos sítios certos e remover os escombros de tudo o que não se aguenta. Naturalmente, isto assusta quem prefere casas de chocolate e faz de conta. Infelizmente para esses, a ciência não tem rival na produção de conhecimento acerca da realidade. Mas explicar porquê será tarefa para outros posts.

sábado, dezembro 24, 2016

Treta da semana (atrasada): igualdade e liberdade.

If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear. (George Orwell)

Isabel Moreira escreveu que quem julga «que a liberdade de expressão não deve ter limites» não pode ser de esquerda porque, para a esquerda, «o princípio da liberdade articula-se com o princípio da igualdade» (1). Infelizmente, tem razão. A esquerda está cada vez mais dominada pela sanha quase religiosa de reprimir qualquer expressão incómoda. Moreira assegura-nos que «A esquerda não defende que se cale quem diz uma frase que desagrada, só se cala o que é crime». Mas é fácil perceber a vacuidade desta ressalva quando se considera exemplos como a alteração ao artigo 170º do código penal. Este agora pune com um ano de cadeia quem «importunar outra pessoa» com propostas de teor sexual. Não é preciso ameaçar, coagir ou sequer constranger. Basta importunar. Ao contrário do que Moreira alega, estão mesmo a criminalizar frases que desagradam.

Dois equívocos alimentam esta cruzada do politicamente correcto. O primeiro é a confusão entre a liberdade de exprimir opiniões e tudo o que se faça com palavras. É como limitar a liberdade de fazer bricolage porque não se quer deixar matar pessoas à martelada. Matar pessoas não é bricolage. E fazer denúncias falsas, cometer fraude, ameaçar ou coagir não é apenas exprimir uma opinião. Não é por usar o mesmo martelo que se deve pôr tudo no mesmo saco. O equívoco desfaz-se percebendo que a liberdade de expressão é a ausência de restrições impostas em função da opinião que se quer exprimir. Pode-se restringir por outras razões. Gritar “Fogo!” num recinto cheio de gente pode ser proibido por razões de segurança. Escrever um livro sobre a vida íntima de alguém pode ser proibido por respeito pela privacidade dessa pessoa. Mas não se justifica proibir a expressão de uma opinião apenas pela opinião em si.

O outro equívoco está no «princípio da igualdade». No seu sentido histórico, este é o princípio de que todos são iguais perante a lei. Mas esse princípio já está inscrito na nossa lei, é consensual em todo o espectro político e não justifica limitar a liberdade de expressão. Também não faz sentido exigir igualdade entre as pessoas porque somos todos diferentes. Cada indivíduo é único e diferente dos demais. E não existe um dever de tratarmos todos por igual. Nem Moreira tem o dever de me tratar como se eu fosse pai dela nem eu tenho o dever de a tratar como se fosse minha mulher. As relações humanas são discriminatórias por natureza e, na nossa esfera pessoal, todos temos o direito de discriminar pelas razões que quisermos. O único princípio de igualdade que faz sentido é o que fundamenta a igualdade perante a lei: todos devem ser igualmente livres, qualquer que seja a sua raça, sexo, orientação sexual ou opinião.

Este equívocos são fundamentais para esta retórica que tem capturado a esquerda. Por exemplo, «A esquerda, por definição, não absolutiza a liberdade em qualquer dimensão – e por isso também não o faz na liberdade de expressão – porque isso é a base da exploração dos mais fracos, das mulheres, dos pobres, dos negros». Mantendo uma noção confusa de liberdade de expressão, junta-se tudo no mesmo saco e até se faz parecer racional medidas como condenar alguém à prisão se a proposta pela qual importunou foi de teor sexual. Invoca-se a exploração das mulheres e a opressão dos mais fracos e, no meio da confusão, não se percebe onde uma coisa acaba e outra começa. Mas uma reflexão mais cuidada revela que o cu não é as calças. Explorar e oprimir não são o mesmo que exprimir opiniões e punir quem priva os outros da sua liberdade não exige punir quem diz o que pensa. Também é falsa a dicotomia proposta entre igualdade e liberdade de expressão. Pelo princípio da igualdade, todos devemos ser igualmente livres independentemente de quem somos ou do que pensamos. Daqui segue trivialmente que a liberdade de dizermos o que pensamos não deve depender daquilo que pensamos. E isso é a liberdade de expressão.

Escreve Moreira que «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?» A “autocontenção”, sendo auto, não me preocupa. Cada um que faça o que quiser da sua. O que me preocupa é que contenham a opinião dos outros. O princípio da igualdade não diz que temos de ser todos iguais, nem que temos de ter todos a mesma opinião nem que temos de gostar todos por igual de todos os outros. O princípio da igualdade é que não devemos negar liberdades em função daquilo que alguém seja ou pense. Isto vale para o homossexual e para o homófobo, para a feminista e para o machista, para os racistas, os liberais, os de esquerda e direita e até para a Isabel Moreira que acha que ninguém pode ser de esquerda se discordar dela. Todos devem ser igualmente livres de dizer o que pensam. Mas nenhum deve poder calar os outros.

Eu sou mais de esquerda do que de direita porque o valor que dou à liberdade não é compatível com a injustiça económica que a direita implicitamente apoia e defende. Mas esta confusão que Moreira propaga troca a liberdade por uma ideia absurda de igualdade que, na prática, só serve para perseguir os hereges. Muita gente vai nisto por arrasto, levada por esta retórica alarmista que pinta como opressão o respeito pela liberdade do outro. Mas quem lidera a moda deve fazê-lo de propósito e com consciência do mal que está a fazer. Parece-me difícil não perceber estes erros quando se pensa no assunto. O problema é que esta mentalidade de indignação, revolta e vitimização é uma forma fácil de ganhar apoio político. A tentação para se aproveitarem disto é demasiado grande.

1- Expresso, Sabias que és de direita?

sexta-feira, dezembro 23, 2016

Computadores e trabalhadores.

Em 1997, o Deep Blue derrotou Kasparov. Foi a primeira vez que um computador derrotou um mestre de Xadrez a este nível. Em 2016, o AlphaGo derrotou Lee Sedol, um dos melhores jogadores mundiais de Go. Outra estreia mas, para muitas pessoas, foi mais do mesmo. O Pedro Romano deve ser uma dessas pessoas. Acerca do efeito potencial da inteligência artificial no emprego, Romano afirma que podemos «excluir da nossa lista de preocupações prementes o risco de uma sociedade sem empregos» e que a tese de estarmos «a viver uma era de inovação nunca vista, que vai causar conturbações sociais enormes» é incompatível com a tese de que «estamos num período de estagnação» económica, porque «Se cada pessoa produz mais, então […] cada pessoa pode também consumir mais»(1). Está enganado.

O Deep Blue usava uma tabela de parâmetros criada pelos programadores para avaliar as jogadas. Os valores eram ajustados por análise estatística de jogos passados mas os factores a avaliar – controlar o centro, perder um cavalo e assim por diante – foram fixados pelos programadores. Por isso, o Deep Blue era um computador que jogava Xadrez. O AlphaGo avalia cada jogada com uma rede neuronal treinada com um conjunto de partidas de Go sem qualquer especificação prévia sobre o que é importante. O AlphaGo não é um computador programado para jogar Go. É um computador programado para aprender a partir de exemplos.

Tecnologicamente, isto é muito diferente do que aconteceu até agora. Romano admite que «em prazos mais curtos – e o ‘curto’, neste caso, pode bem ser 10 ou 20 anos – é perfeitamente possível que se notem efeitos no mercado laboral» como consequência de inovações tecnológicas. Mas diz ser errado supor «que há um número fixo de postos de trabalho [porque] a procura adicional gerada pelo aumento da produtividade [...] vai implicar um aumento do emprego noutros novos sectores.» Ou seja, 10 ou 20 anos depois de se automatizar uma tarefa, uma nova geração de trabalhadores aprende a desempenhar outras tarefas, ainda não automatizadas. Mas se dez anos era um prazo curto no tempo do Deep Blue, no tempo do AlphaGo é uma eternidade. A mesma tecnologia que permite ensinar* o computador a jogar Go também permite ensinar a conduzir um automóvel, a atender clientes no restaurante ou a cobrar produtos na caixa do supermercado. Os humanos demoram 10 a 20 anos a adaptar-se e aprender novas profissões. Os computadores demorarão 10 a 20 dias. Ou 10 a 20 horas. E isto em qualquer tarefa que possa ser aprendida a partir de exemplos.

Romano também erra na estimativa do efeito económico do aumento de produtividade. Até certo ponto, um aumento de produtividade leva a melhores ordenados, mais consumo e mais emprego. Mas só até certo ponto. Uma pessoa que ganha um milhão de euros por mês não consome o mesmo que mil pessoas a ganhar mil cada uma, e esse efeito já se faz sentir. Escreve Romano que «não há sinal visível de progresso tecnológico acelerado nas estatísticas. Por que digo isto? Porque a produtividade em praticamente todo o mundo desenvolvido tem vindo a cair ao longo das últimas décadas e está hoje mais ou menos estagnada.» Isto é exactamente o que se espera se Romano não tiver razão e a automatização crescente estiver mesmo a prejudicar esta economia baseada na venda de trabalho. O Facebook, por exemplo, tem cerca de mil milhões de utilizadores, dezassete mil milhões de dólares de negócio anual e apenas doze mil empregados. O sucesso do Facebook depende da selecção criteriosa daquilo que cada utilizador vê mas, sem aprendizagem automática, isto iria exigir centenas de milhares de empregados para monitorizar os feeds de tantos utilizadores. Nessas condições, essa gente toda a trabalhar para o Facebook daria um empurrão grande à economia. Mas a automatização permite dispensar esses empregados, trocar trabalho por capital e acumular lucros em offshores. É por isso que os indicadores económicos não reflectem o enorme sucesso de empresas de alta tecnologia como a Microsoft, Amazon, Apple, Google e Facebook. Os rendimentos milionários dos accionistas não têm o mesmo efeito que teriam repartidos em salários.

A aplicação desta tecnologia a novas áreas de negócio é apenas o início. A aplicação a negócios já estabelecidos, como a restauração, venda a retalho ou transportes, vai demorar um pouco mais porque exige investimento e, em alguns casos, legislação. Mas é inevitável e será num prazo muito mais curto do que os tais 10 a 20 anos. Economicamente, este aumento de produtividade vai concentrar ainda mais a riqueza e agravar a tendência, que já se sente, para uma economia com menos transacções e mais dívidas e manipulação financeira. Uma economia frágil, sem crescimento real e que beneficia uma minoria cada vez mais pequena. E, tecnologicamente, esta inovação não é igual ao que aconteceu no passado porque não se trata de automatizar uma ou outra tarefa específica. O que se automatizou foi a capacidade de aprender e isso permite substituir os trabalhadores humanos não só em quase tudo o que fazem agora mas também em quase tudo que possam vir a fazer.

Isto não é necessariamente uma coisa má. Mas exige repensar a economia e abandonar a ideia de que o rendimento da maioria tenha de vir da venda do trabalho. Porque, em breve, o trabalho humano deixará de ter valor comercial. Como o dinheiro é um veículo importante de informação, que cada um pode usar para indicar as suas preferências, teremos de continuar a distribuí-lo e a manter a economia a funcionar. Mas essa distribuição não poderá ser pela venda de trabalho.

* Termos como “ensinar” e “aprender” sugerem alguma consciência da parte de quem aprende. Mas, neste contexto, uso-os apenas conforme a definição operacional de Mitchell: um sistema aprende se melhorar o seu desempenho numa tarefa conforme lhe fornecemos exemplos.

1- Pedro Romano, Robôs a roubar empregos

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Treta da semana (atrasada): O chato.

Estreei-me em discussões pela Internet em 1996, em listas de correio electrónico. Dez anos depois comecei este blog. O formato mudou mas o fundamental manteve-se: trocas de opiniões entre estranhos unidos pelo interesse em certos temas. Durante estes vinte anos de conversas fui criticado, troçado, e até insultado – se bem que este último somente na forma tentada – por pessoas que discordavam de mim. Faz parte do jogo, é saudável e estas reacções até servem como indicador da pontaria. Quanto mais perto do alvo mais ruidoso tende a ser o protesto.

Em 2010 meti-me também no Facebook e, esporadicamente, noutras “redes sociais”. Mas, nos primeiros anos, foi apenas para colar as ligações aos posts do blog. Só recentemente é que comecei a fazer no Facebook o que sempre tinha feito pela Internet, que é trocar opiniões sobre temas que me interessam. Estava à espera do mesmo resultado. Gente que concorda, gente que discorda, gente que barafusta, desconversa, insulta, enfim, toda a diversidade de reacções a que já me tinha habituado. O que não estava à espera era de ser bloqueado por ser chato.

Não foi surpreendente em todos os casos. Por devaneio de algum algoritmo fui temporariamente membro de um grupo que discutia a terrível conspiração dos «rastos químicos» e como “eles” usam aviões comerciais para espalhar produtos tóxicos com um propósito indeterminado mas consensualmente pérfido. Conhecendo a mentalidade dos conspiracionistas, não estranhei a rapidez com que fui banido. Mas, noutros casos, foi inesperado. Várias pessoas me bloquearam por divergências de opinião em discussões sobre ética, igualdade de direitos e liberdade de expressão, temas nos quais supunha que esta reacção fosse menos normal. Foi sempre quando discordavam de mim e sempre justificando o bloqueio por eu ser chato.

A explicação mais óbvia é a de que sou mesmo chato. Talvez o contexto das discussões anteriores tivesse disfarçado o defeito por restringir o diálogo a quem estava interessado. No Facebook, onde muita gente só quer pôr fotos do gato, receber likes ou ouvir um ámen, a minha insistência em dissecar alegações pode incomodar. Mas esta explicação, se bem que provavelmente correcta, parece-me incompleta. Se fosse só defeito meu esperava ser bloqueado numa diversidade maior de circunstâncias e não apenas quando discordo de certas pessoas nestes temas em particular.

Outro factor relevante pode ser a arquitectura do Facebook, que encoraja cada um a isolar-se de tudo o que o possa incomodar. Noutros meios, quando encontramos algo desagradável, mudamos de canal, pousamos a revista ou vamos a outro site na Internet. Mas isto não dá jeito a quem vende publicidade. Por isso, o Facebook tem mecanismos sofisticados que seleccionam o que agrada a cada visitante, maximizando o tempo de cada visita. O bloqueio dos chatos é parte integrante deste mecanismo e, no fundo, é uma extensão legítima do direito de não se dedicar atenção ao que não agrada. Infelizmente, a forma como isto está implementado esbate a diferença entre não dar atenção e reprimir.

Além dos efeitos nefastos do isolamento e enviesamento em meios como o Facebook, que muito longe de uma rede social são veículos de venda de publicidade, a opção de silenciar com um clique encoraja uma atitude repressora de quem se julga no direito de calar o que lhe desagrada. Um exemplo extremo disso aconteceu-me com o Daniel Cardoso, doutorado em Ciências da Comunicação e activista em «Poliamor e questões de género e LGBTQI.»(1). Afirmou Cardoso, numa troca de impressões no Facebook, que a minha postura é uma vergonha para a academia portuguesa e que a minha visibilidade é um atraso para os direitos humanos em Portugal. Como nunca sei se as conversas no Facebook são públicas, perguntei se isto era um desabafo privado ou se era uma posição que Cardoso assumia publicamente e, nesse caso, que eu poderia citar. A resposta foi que assumia publicamente o que dizia de mim mas que me proibia de o citar. Como é óbvio, não há qualquer legitimidade ética em proibir-me de citar o que dizem publicamente de mim, uma arrogância especialmente estranha vinda de alguém que diz valorizar uma boa postura académica. Respeitei esta proibição de Cardoso, parafraseando em vez de citar, apenas para dar este exemplo. Na prática, Cardoso não tem sequer poder para me coagir a respeitar o que ele manda. Mas isto é enquanto houver poucos Cardosos. Legítimo ou não, se houver muitos Cardosos, facilmente tornarão crime tudo aquilo que lhes desagrada, como já vão fazendo com piropos, “microagressões” ou “discursos de ódio”.

Esta vontade de silenciar os chatos é preocupante, e não apenas por eu ser um dos visados. É má ideia porque, se bem que a maioria do que os chatos dizem não sirva para nada, todos os contributos para o progresso social começam por incomodar. No início, são sempre propostos por chatos. O fim da escravatura, o voto para as mulheres, o casamento homossexual. São diamantes raros no meio de muito rebotalho mas se deitamos fora tudo o que chateia perdemos o mais precioso que temos, que é a capacidade de melhorar. Além disso, é injusto silenciar alguém só porque incomoda. Não me refiro ao botão de “desamigar”, que cada um deve ser livre de decidir onde gasta o seu tempo. Mas há cada vez mais confusão entre não querer ouvir e não deixar dizer. Se proliferarem os Cardosos vamos voltar ao tempo dos castigos por heresia, o que além de injusto é socialmente atrofiante. E, infelizmente, há muito capital político a tirar dessa cruzada. Mas isso fica para um próximo post.

1- Daniel Cardoso, Activismo

domingo, novembro 27, 2016

Treta da semana (atrasada): Trump e os ofendidos.

Donald Trump teve sessenta e dois milhões de votos, mais dois milhões de votos que John McCain e Mitt Romney quando perderam para Barack Obama. Obama teve 69 milhões de votos em 2008, 66 milhões em 2012 e, agora, Hillary Clinton teve 64 milhões de votos. Nestas três eleições os Democratas caíram cerca de 7% em proporção aos eleitores, com os Republicanos a manterem a sua fatia aproximadamente constante. A menos de surpresas nas recontagens, esta eleição parece ter sido mais uma derrota dos Democratas do que uma vitória dos Republicanos (1).

Boa parte do problema foi Clinton. Ganhou a candidatura graças ao apoio da cúpula do partido Democrata, dos superdelegados ao comité nacional, e da gente importante que queria afastar Sanders. Mas, ao contrário de Sanders, não ofereceu nada de novo que entusiasmasse eleitores fartos do vira o disco e toca o mesmo. Por outro lado, factores sociais e económicos alteraram a demografia do eleitorado republicano e isto acabou por dar a vitória a Trump mesmo ficando atrás no voto popular. Beneficiou também dos votos de protesto contra Wall Street e contra a crescente desigualdade de rendimentos nos EUA (2). Quem sofre injustiças tem mais vontade de partir tudo do que de optimizar racionalmente os seus benefícios. Isto foi importante na vitória de Trump como já tinha sido no Brexit e como será novamente enquanto não resolvermos as injustiças económicas que ameaçam a nossa democracia.

Mas o aspecto mais saliente da vitória de Trump foi o seu populismo racista e xenófobo. Custou-lhe alguns votos, ao alienar a franja menos insana do eleitorado republicano. Mas, feitas as contas, compensou. Ainda que muitos eleitores não tenham votado em Trump por serem racistas ou xenófobos, o facto é que sessenta e dois milhões de pessoas lhe deram o seu voto apesar dele defender políticas obviamente imorais e perigosas, de deportações em massa a perseguição religiosa. A popularidade destes disparates sugere um erro grave na forma de os combater e eu suspeito que esse erro é a crescente intolerância daqueles que, em nome da igualdade, atropelam a liberdade de pensar de forma diferente. Um mal do qual também sofremos por cá.

Se um barbeiro só atende homens, invadem-lhe a barbearia (3). Se um comentador diz mal dos ciganos, fazem uma petição para o proibir de aparecer na TV (4). Se o dono de um hotel pede a homossexuais para não pernoitarem lá, é caso para a ASAE e exige-se legislação à medida para proibir tais pedidos (5). Esta luta pela igualdade não reconhece a diferença entre o que é incorrecto e o que é legítimo proibir. Além de não respeitar a liberdade de consciência dos outros – mesmo quem erra tem o direito de ser como é e de dizer o que pensa – esta atitude é estúpida. Racismo, misoginia, xenofobia e afins são ideias. São sensações, preferências, disposições íntimas que não se pode combater pela força. O ladrão preso não rouba mas o racista censurado ou coagido continua a ser tão racista quanto era. Vai apenas disfarçar até estar sozinho com o boletim de voto.

Para combater ideias más é preciso persuasão, o que exige vontade de dialogar e respeito pela liberdade de discordar. Infelizmente, muita gente que defende a igualdade de direitos fá-lo sob a impressão errada de que a indignação e a força têm mais virtude do que o diálogo. O problema tem-se agravado com a crescente dependência de negócios de venda de publicidade a que chamam “redes sociais”. Para maximizar o tempo que as pessoas lhes dedicam, estes serviços encorajam, e até automatizam, a filtragem de tudo o que possa desagradar ao utilizador. Muita gente até se gaba com orgulho de “limpar” as suas listas de contactos para se isolar de quem pensa de forma diferente. Se bem que, individualmente, esta intolerância é legítima – cada um tem o direito de decidir onde gasta o seu tempo – a morte do diálogo pela indignação do virtuoso é uma oportunidade perdida de esclarecer, de explicar e de vencer este combate onde ele tem de ser vencido. Na mente do outro. Não se consegue persuadir toda a gente com diálogo. Há muita gente demasiado casmurra. Mas sem diálogo o resultado é ainda pior e, como Trump demonstrou, não é preciso persuadir toda a gente. Basta alguns, no sítio certo.

Pior ainda, quando esta atitude de intolerância se manifesta colectivamente, a tendência é estender o filtro para a coerção e censura. Não basta mudar de canal. É preciso proibir o racista de aparecer na televisão, ou banir o vídeo do YouTube, ou retirar a página da Internet, fechar a barbearia e assim por diante. A mensagem que isto transmite a quem tem opiniões politicamente incorrectas é clara. Só terá liberdade para dizer o que pensa quando estiver no poder quem partilhe dessas opiniões. Isto praticamente força as pessoas a eleger alguém como Trump só para poderem dizer o que lhes vai na mente.

Quem usar o diálogo para opor o racismo, a misoginia e demais formas de discriminação tem a vantagem de ter razão. Ter razão não garante sucesso mas ajuda muito. No diálogo. Na coacção e na repressão tanto faz porque aí só conta a força. Nisso, ter razão não adianta de nada. É esta vantagem que perde quem “desamiga” o intolerante, quem assina a petição para censurar o racista e quem exige leis que proíbam hoteleiros de pedir clientes heterossexuais. Barafustar de indignação pode dar likes mas, se querem mesmo combater estas ideias parvas, têm de deixar de se fazer de ofendidos e começar a falar com as pessoas. E admitir que elas discordem.

E aqui fica a versão TL;DR deste post:


1- CNN, Voter turnout at 20-year low in 2016; ver também aqui as contagens actualizadas e aqui o perfil dos eleitores.
2- Wikipedia, Income inequality in the United States
3- Público, 2015, Activistas invadem barbearia de Lisboa onde só entram homens e cães
4- Petição Pública, Afastar Quintino Aires da TV
5- DN, Hotel no Minho veda entrada a "gays e lésbicas"

domingo, agosto 21, 2016

Treta da semana (atrasada): burkini.

A proibição do burkini em algumas praias francesas (1) suscitou uma onda de críticas por, alegadamente, atentar contra a liberdade das pessoas, ser racista e coisas assim. Se bem que me pareça uma medida pouco eficiente, exigindo demasiada fiscalização para tão pouco proveito, acho que as críticas falham o alvo por descurarem implicações importantes da vestimenta.

Por exemplo, Inês Ferreira Leite escreve que se «a proibição da burca ou burkini [fosse] questão de laicidade, então teríamos que proibir qualquer veste ostensivamente religiosa. Contudo, as freiras católicas não estão proibidas de usar o hábito [nem] os monges budistas [proibidos de usar] seus trajes laranjas»(2). Isto omite uma diferença importante. Mesmo entre os fiéis destas religiões, quem não quer ser freira nem monge veste-se como quiser. Mas se Leite for à Arábia Saudita, ao Irão ou ao Afeganistão, irá notar que no Islão as coisas são diferentes.

Leite propõe também que «não é proibindo manifestações religiosas que conseguimos domesticar uma religião organizada de modo a que esta possa conviver com a laicidade, o secularismo e a liberdade individual.» É verdade que proibir não serve para isto. Mas Leite está a assumir que o problema é com o Islão enquanto religião, no sentido moderno do termo. Hoje, pensamos na crença religiosa como algo pessoal, naturalmente separada do Estado e produto da liberdade de acreditar, ou não acreditar, no que cada um bem entender. Foi nisso que se transformou o cristianismo europeu, a muito custo e ao fim de séculos. Mas o Islão é uma religião à moda antiga. É uma mistura de crença religiosa e movimento político e a maioria dos muçulmanos não aceita a laicidade do Estado nem respeita a liberdade individual de crença. Uma católica vestida de freira mostra-me que devo ensinar a minha filha a pensar por si para não cair em contos do vigário. Mas uma muçulmana de niquab manifesta um ideal social e político que, se vingar, será imposto à minha filha e a todas as pessoas. É este o problema do burkini.

Também é popular alegar que proibições destas são islamofobia, discriminação e racismo. Racismo não é porque não depende da raça de ninguém. Mas é islamofobia e discriminação. No entanto, é justo discriminar contra quem quer coagir ou intimidar os outros. E se milhões de pessoas querem impor aos outros aquilo que julgam ser leis divinas, justifica-se ter medo. Eu tenho fobia do Islão como tenho fobia da dinastia Kim, da ditadura de Erdogan e do comunismo chinês. Não é por ser contra uma crença pessoal mas por ter medo que consigam impor essas coisas onde me faça diferença. Enquanto o Islão não se assumir consensualmente como opção pessoal permanecerá uma ideologia política perigosa, merecendo discriminação e fobia.

Finalmente, o argumento da liberdade. Leite aponta que é difícil dizer se as mulheres que andam de burka ou burkini o fazem por escolha livre, porque foram obrigadas ou porque foram condicionadas a vestir-se assim e traça um paralelo entre a burka e os saltos altos, operações plásticas e coisas que tais a que as mulheres se sujeitam por pressão social. Realmente, a “liberdade” de escolher tem que se lhe diga. Eu acho que uma saia deve ser mais confortável do que calças quando faz calor mas, sendo homem, sinto-me inibido de ir dar aulas de saia. Não sou muito livre nessa escolha. Mas entre a burka e os saltos altos há duas diferenças importantes. Primeiro, a mulher que usa saltos altos não o faz por convicção de ser um dever de todas as mulheres usar saltos altos. E, em segundo lugar, as mulheres que usam niquab, burkini e essas coisas fazem-no enganadas com a história de um deus que exige que se vistam assim. Há uma diferença fundamental entre escolher, mesmo que sob pressão, e ser vítima de fraude.

Eu não sei se é boa ideia proibir o burkini e até sou contra proibições que não sejam bem justificadas. Mas é errado apresentar este problema como uma ingerência na liberdade religiosa ou no direito de escolher o que se veste. O burkini foi claramente concebido para se distinguir dos fatos de mergulho que os surfistas usam e das toucas de borracha dos nadadores. Está feito para dizer “Islão!” a qualquer pessoa que olhe. E este Islão não é uma religião no sentido moderno de opção pessoal que cada um pode ter ou não ter conforme queira. É uma ideologia política medieval que executa apóstatas, prende ateus e castiga mulheres que não se vistam segundo as regras da religião. Por isso, proibir o burkini na praia é uma decisão que regula como se pode promover publicamente uma ideologia política. Para mais, contrária aos princípios que regem a nossa sociedade. É análogo a proibir que se ande na praia com suásticas na camisola ou com bandeiras a dizer que os homossexuais merecem o inferno. Se bem que proibir estas coisas seja ineficaz para combater tais ideologias, também não restringe nada que caiba inteiramente na esfera das liberdades pessoais e pode ser uma forma razoável de gerir um espaço público que a maioria das pessoas quer politicamente neutro. Não quer dizer que seja sensato proibir o burkini. Admito que até possa ser asneira. Mas é neste contexto da regulação do activismo político num espaço público que esta proibição deve ser criticada. Em vez de se fingir que, numa religião como o Islão, estes preceitos são vividos apenas como uma escolha pessoal.

1- The Guardian, Nice becomes latest French city to impose burkini ban
2- Capazes, Quão livre é ser livre?

segunda-feira, agosto 15, 2016

Treta da semana (atrasada): Expulsar o Quintino.

É quase unânime a condenação de espectáculos de tortura animal como as lutas de cães. Mas muitos consideram a tourada excepção porque é tradição e assim. É consensual que quem aluga quartos pode escolher os inquilinos. À volta de cada faculdade há dezenas de anúncios de quartos e residências para alugar apenas a raparigas. Ninguém se opõe. Mas quando numa pousada pediram aos homossexuais que não fizessem reservas foi imenso o clamor contra o crime hediondo de discriminação. Apesar dos ideais de igualdade e liberdade terem permitido um grande progresso social nos últimos séculos, ainda há muitos buracos por onde a indignação arbitrária se infiltra. O resultado pode ser caricato como a invasão de feministas a uma barbearia (1), mais sério como condenar à prisão trolhas que formulem propostas de teor sexual (mas não prostitutas, evidentemente) e até, se as coisas correm mesmo mal, meter um Khomeini ou Erdogan no poder. O caso Quintino Aires é mais ridículo que trágico mas ilustra como a arbitrariedade da indignação é inimiga da justiça.

Quintino Aires disse na TVI que «a maioria (dos ciganos) vive dos subsídios, ou trafica droga e não trabalha» (2). Para muitos, é inadmissível dizer tal coisa. Ou até pensá-la. Milhares assinaram uma petição que, inventando o crime opinião racista, exige «o afastamento definitivo deste senhor da TV»(3). Terá Aires passado os limites da liberdade de expressão?

Não. Em rigor, não há limites para a liberdade de expressão. Se queremos que todos sejam igualmente livres e tão livres quanto isso permita, temos de garantir a cada um o máximo de liberdade compatível com liberdades equivalentes para todos. É isto que resolve o problema de um acreditar que quem rejeita Jesus merece arder no inferno, outro achar que isso é disparate e um terceiro defender que os dois vão para o inferno porque não seguem Maomé. Qualquer um pode achar que as tatuagens são feias, que o sexo anal é nojento ou que o boxe é um desporto estúpido. Basta que ninguém pique, enfie ou esmurre contra a vontade do outro e, sobretudo, que não tente enviar terceiros para o inferno antes do tempo, para não haver problema em respeitar por igual a liberdade de todos acreditarem e exprimirem as suas crenças. Esta ideia é tão importante que a sua adopção ou rejeição é a principal diferença entre sociedades onde vale a pena viver e sociedades de onde mais vale a pena sair. É por isso que a liberdade de expressão, enquanto tal, não merece limites.

O problema é que dizer palavras tem outros efeitos além de exprimir uma ideia. São esses efeitos que podem violar liberdades importantes e justificar restrições. Por exemplo, exprimir a ideia de incendiar a embaixada de Israel, em abstracto, é perfeitamente legítimo. Fi-lo aqui agora mesmo sem infringir liberdade alguma. Mas gritar “vamos incendiar isto tudo!” durante uma manifestação neonazi à porta da embaixada já tem o efeito previsível de infringir liberdades mais importantes do que a liberdade de gritar isso, dessa forma, nessa altura. Portanto, se bem que a liberdade de exprimir ideias não mereça limite, a liberdade de agir pela palavra tem de ser limitada para respeitar o princípio de que todo devem ter as mesmas liberdades.

Sendo assim, é fácil perceber que o critério para julgar as palavras de Aires não pode ser o quanto desagrada a ideia subjacente. Deve ser apenas que efeito que as suas palavras possam ter em liberdades tão ou mais importantes que a liberdade dele de dizer o que pensa. E não parece haver tal efeito, porque a liberdade de não se sentir ofendido com o que outros dizem não se aproxima sequer, em importância, da liberdade de dizer o que se pensa mesmo que ofenda.

O mesmo não se pode dizer dos peticionários. Toda a gente tem o direito de dizer mal de Aires, de deixar de ver os programas onde ele comente e de dizer aos responsáveis pela programação que não verão mais televisão enquanto o Aires lá aparecer. Por sua vez, quem dirige a TVI tem o direito de não querer lá mais o Aires. Mas quando se organiza gente para exigir que se expulse o Quintino Aires da televisão, esse acto pretende ter um efeito que já interfere com as liberdades de terceiros. Com a liberdade do Quintino Aires aparecer na televisão, com a liberdade de quem dirige a TVI decidir quem convida para comentar e com a liberdade dos portugueses que gostem de ver o Quintino Aires na televisão e que, independentemente do seu mau gosto, também são gente e também merecem respeito.

A quem quer suspender os princípios da igualdade e liberdade neste caso porque o Quintino fez algo chocante, apresento este outro caso. Na Coreia do Sul, uma actriz de videojogos publicou uma foto vestindo uma camisola onde se lia «as raparigas não precisam de um príncipe». É uma camisola vendida por um grupo feminista polémico na Coreia e a foto levou a imensos protestos de jogadores exigindo que a actriz fosse despedida. Foi despedida (4).

Eu defendo que qualquer actriz tem o direito de usar qualquer camisola, que qualquer jogador tem o direito de jogar, ou não jogar, qualquer jogo por quaisquer razões, mesmo machistas, e que os produtores dos jogos têm o direito de contratar quem quiserem. Mas quando se exige algo não se está apenas a exprimir uma opinião. Mesmo quando essa exigência não tenha a força da lei, visa subordinar as liberdades à mera opinião de quem o exige. E isso pode ser tão injusto quanto incitar a turba a incendiar a embaixada. É isso que me parece imoral no que fizeram na Coreia e no que estão a tentar fazer ao Quintino. Não é pelo mérito ou demérito das opiniões de cada um, do Quintino, dos seus críticos, da actriz ou dos jogadores machistas. É imoral porque exigem que a sua opinião conte mais do que a liberdade dos outros.

1- Observador, Barbearia que proíbe entrada a mulheres invadida em protesto feminista
2- Sábado, Quintino Aires em polémica de "extrema gravidade" com etnia cigana
3- Petição Pública, Afastar Quintino Aires da TV
4- BBC, South Korea gaming: How a T-shirt cost an actress her job

quinta-feira, julho 28, 2016

Treta da semana (atrasada): Sexualização.

Silvana Lima é a melhor surfista do Brasil e foi duas vezes vice-campeã do mundo. Apesar disso, como não é “bonitinha”, não consegue patrocínios (1). A sexualização feminina é muito comum. Enfatiza-se atributos que estimulam a atracção sexual no sexo oposto e usa-se esses atributos para avaliar as mulheres. As mini-saias das jogadoras de ténis, as poses sugestivas das raparigas nos anúncios e a atenção dispensada à roupa da ministra ilustram esta prática que muitos dizem ser machista. Ironicamente, o machismo está no diagnóstico.

A atracção sexual é um impulso irracional que nos chega, como muitos impulsos, pela eliminação gradual das linhagens com menos descendentes. A selecção natural. E o factor mais importante no sucesso reprodutivo de um homem é o acesso sexual exclusivo a mulheres férteis. Todos os outros factores só serão relevantes se o homem ultrapassar este primeiro obstáculo. Por isso, a atracção sexual masculina orienta-se por critérios relativamente simples. Por um lado, o aspecto físico da mulher, que permitia, até à cosmética moderna, avaliar a sua idade e fertilidade. Por outro lado, atributos e circunstâncias que maximizem a sua fidelidade sexual. Este aspecto é menos óbvio mas crucial na diferença entre o mero estímulo sexual e a atracção sexual. É a diferença entre ver pornografia e ficar apaixonado. Até recentemente, o homem só podia confiar que os filhos eram seus se garantisse que a mulher não tinha relações sexuais com outros homens. E isso é mais fácil se a mulher for dependente do homem, se for sua subordinada, precisar da sua protecção e essas coisas que inspiram tantos romances baratos.

Antecipando os comentários indignados, devo frisar que estes impulsos não são boa receita para uma vida feliz. Mas a evolução rege-se por uma álgebra simples: os nossos antepassados foram tendencialmente os que mais sucesso reprodutivo tiveram e nenhum dos nossos antepassados falhou na tarefa de se reproduzir. A felicidade, a realização pessoal e o prazer de uma relação duradoura entre iguais nunca entraram nessa equação. Não recomendo que se guiem por estes critérios mas é importante perceber a origem destes impulsos para compreender a sexualização das mulheres e por que Lima, apesar de ser campeã (ou por causa disso), é sexualmente menos atraente do que uma rapariga “bonitinha” que não faça nada de jeito.

Mas esta parte é trivial. Toda a gente sabe o que os homens procuram quando pensam com a extremidade errada. O que falta é fazer o mesmo exercício da perspectiva das mulheres. Constituem metade dos nossos antepassados e os seus critérios de selecção sexual foram tão importantes como os dos homens. Mas são diferentes. O acesso sexual exclusivo a homens férteis e jovens não contribui para o sucesso reprodutivo da mulher. Espermatozóides há muitos. O que a mulher tem de optimizar é o retorno do investimento, e custos de oportunidade, de nove meses de gravidez e uns anos de amamentação. Para isso, tem de obter os recursos necessários para criar os filhos e maximizar as vantagens que os seus filhos terão para sobreviver e reproduzir-se. Começando pelos genes do pai, que convém serem jeitosos. Isto exige avaliar o seu aspecto, da largura dos ombros à firmeza dos glúteos e simetria facial, mas também outros atributos. Destreza, sentido de humor, personalidade, capacidade de expressão e imensas coisas. Procurar um parceiro com genes bons é uma tarefa mais complexa do que procurar uma parceira jovem e fértil.

Além disso, os filhos também herdam os recursos e o estatuto dos pais. É isto que motiva os homens a investir nos filhos que julgam serem seus mas, como o sucesso reprodutivo dos homens é dominado pela necessidade de garantir o acesso sexual exclusivo a uma mulher fértil, tudo o resto fica em segundo plano nos seus impulsos de atracção sexual. A mulher, tendo pouco a ganhar em aturar vários homens e mais vantagem em convencer um a investir nos filhos dela, está sob pressão para encontrar o melhor*. Ele pesca à rede; ela com o arpão.

Por isso é que se vende cerveja com jovens bonitas de biquíni mas não se vende cápsulas de café com homens de cuecas. Para o café é preciso um George Clooney. Não é novo mas tem bons genes, estatuto e recursos. Considerando os critérios de atracção sexual das mulheres, percebe-se como toda a carreira do George Clooney contribuiu para o sexualizar. Os papeis de galã ou herói, a fama, os prémios, o dinheiro que ganhou, tudo isso acresce à sexualidade considerável dos seus genes e torna-o, enfim, num George Clooney.

O azar da Silvana Lima não foi as mulheres serem sexualizadas no desporto. São, mas, no desporto, os homens são-no ainda mais. A competição desportiva é toda ela um exercício de sexualização masculina. Competem para ver quem é melhor, mais rápido ou mais forte. Os vencedores ganham fama, fortuna e, naturalmente, por muito feios que sejam, namoradas lindíssimas. Para grande inveja dos outros homens, tão obcecados pelo desporto como as mulheres pela moda e cosmética. E exactamente pelas mesmas razões: as preferências sexuais do sexo oposto. O azar de Lima foi ser excelente em algo que sexualiza os homens.

A sexualização é ubíqua. É motor da moda, da publicidade, do desporto, do cinema, e até do capitalismo. O que leva tantos homens a dedicar tanto da sua vida a lutar por mais dinheiro do que conseguem gastar é evidente quando se vê as mulheres que casaram com o Donald Trump. A treta é ver a atracção sexual apenas da perspectiva masculina e julgar que só as mulheres são sexualizadas. As preferências sexuais das mulheres também contam e, para bem ou para mal, determinam muito do comportamento dos homens e do valor que a sociedade lhes atribui.

* Pode ir buscar bons genes a um lado e recursos e estatuto a outro. É uma estratégia mais comum do que muitos homens julgam. Mas tem riscos, porque essa opção também criou uma pressão selectiva nos homens para reagirem violentamente a essas situações. Por isso, em geral, a melhor estratégia reprodutiva para as mulheres tende a ser ter todos os filhos do mesmo pai.

1- DN, Melhor surfista do Brasil não arranja patrocínio: "Não sou bonitinha"

domingo, julho 24, 2016

Treta da semana (atrasada): Foi Deus.

Treta da semana (atrasada): Foi Deus. Questionando os métodos de datação da geologia, o Mats relata que as pegadas humanas na praia de Nahoon foram datadas em 1964 pelo carbono 14 e que, mais tarde, outro método deu um resultado diferente (1). Mas não explica que a rocha é permeável ao carbono atmosférico e que só combinando técnicas recentes, como a datação por luminescência, é que se conseguiu uma estimativa fiável (2). O truque é apontar um erro já corrigido como prova de que a ciência é falível mas não reconhecer a enorme vantagem que há em corrigir erros. É um truque infantil e aborrecido mas, subjacente ao disparate, há um problema mais fundamental e interessante.

A compreensão explícita, aquela que podemos partilhar com outros, exige modelos. Exige alguma representação simbólica daquilo que queremos compreender, seja um mapa, um diagrama, expressões algébricas ou uma narrativa, por exemplo (3). O modelo do Mats diz que a praia de Nahoon, e tudo o resto, tem dez mil anos. O primeiro modelo dos geólogos apontava para trinta mil e o mais recente para cento e vinte mil anos. Apesar dos criacionismos serem mais pobres em detalhe e poder explicativo, tentam representar aspectos da realidade da mesma forma como a ciência o faz. Com modelos. A grande diferença surge quando os modelos falham.

A datação original da praia é inconsistente com os dados de que dispomos. O modelo criacionista também. Mas enquanto o Mats está convencido de que o seu livrinho é «a Infalível Palavra Daquele que estava lá»(1), a ciência é feita por quem admite que pode falhar e quer corrigir os erros que venha a cometer. Por isso, além de modelos, a ciência tem teorias.

Uma teoria não é uma mera descrição daquilo que é. É um esquema mais abstracto, mais abrangente, que relaciona parâmetros para descrever o que pode ser e o que é impossível. É maioritariamente contrafactual. A teoria da relatividade não diz como é o nosso sistema solar. Entre outras coisas, diz como podem ser os sistemas solares, dos quais o nosso é apenas um exemplo. A teoria da evolução não diz como surgiram os coelhos. Diz como umas espécies podem dar origem a outras espécies. E assim por diante. No sentido rigoroso de teoria como um esquema para gerar modelos, as teorias são algo que só a ciência tem. E são ferramentas muito poderosas para identificar e corrigir erros.

Quando confrontados com o problema da datação da praia, os geólogos não ficaram perdidos. Porque tinham teorias. Em vez de terem apenas um modelo de como as coisas são, tinham esse modelo inserido numa compreensão mais profunda daquilo que é possível e foi isso que permitiu corrigir o modelo. Desenvolveram técnicas melhores, recalcularam os parâmetros procuraram um outro ponto, mais adequado, no espaço de possibilidades que a teoria permitia. E mesmo quando as teorias falham, por não admitirem modelos correctos, essa procura pelas relações abstractas que separem o possível do impossível permite aos cientistas substituir as suas teorias sem guerras, cismas ou condenações por heresia. Se há erros, corrigem-se.

O criacionista não pode fazer isto porque não tem qualquer esquema orientador que lhe indique o que há de alterar. O livrinho só diz que o deus fez assim e assado. Se o livrinho erra, ou o criacionista finge que não errou ou finge que não é isso que está no livro. Os criacionistas evangélicos, como o Mats, seguem a primeira via. Teimam que o livrinho é a verdade infalível e que é a ciência que está errada. A ciência, dizem, serve para fazer reactores nucleares, transplantes de coração ou pôr sondas em Marte. Mas para saber a idade de uma rocha tem de ser com o livrinho porque que a ciência só dá erros. Os criacionistas católicos, por seu lado, preferem a alternativa. Dizem que o Génesis é uma metáfora, sem explicar que raio de metáfora é aquela, e que ciência é muito boa mas... (agitando as mãos) Deus, e tal… Não querendo um modelo errado mas também não tendo como o corrigir, acabam por fazer a barba só com a espuma. Pincelam, esfregam, enxaguam e deixam tudo na mesma.

Para podermos compreender a realidade precisamos de modelos. Mas não basta ter modelos. Não basta dizer “é assim”. É preciso manter esses modelos encaixados em teorias que distingam entre o que pode ser e o que não pode ser, e com detalhe suficiente para poder ajustar os modelos, corrigir erros e até substituir essas teorias se necessário. É por isto que o criacionismo religioso é fundamentalmente incompatível com a ciência. A hipótese de tudo ter sido criado por um ser inteligente, se bem que seja quase certamente falsa, até podia ser verdadeira. Mas a opção metodológica de ter um deus como explicação última estraga tudo.

Mesmo que o universo tivesse sido criado por um ser inteligente, ainda assim seria preciso teorias que descrevessem os limites e mecanismos dessa criação. Só neste contexto se consegue corrigir erros, ajustar modelos e compreender cada vez mais. Mas o criacionismo religioso não é compatível com isto*. Qualquer que seja o modelo proposto – um universo com dez mil anos, um Génesis metafórico ou o que calhar – o criacionismo religioso não pode apoiá-lo em teorias inteligíveis. Em vez disso, o fundamento do modelo tem de ser um deus misterioso que se revela aos sacerdotes e que os demais têm de aceitar pela fé. Senão ninguém compra a religião. Esta abordagem é a antítese da ciência. Não permite progresso no conhecimento, nem correcção de erros nem qualquer compreensão fundamentada. Permite apenas ao criacionista teimar no que é obviamente falso ou limitar-se a proferir inanidades.

* A teologia medieval parece ter reconhecido este problema e tentado resolvê-lo formulando teorias acerca daquilo que Deus poderia fazer, não poderia fazer ou teria de fazer. O resultado, no entanto, foi mais absurdo do que esclarecedor.

1- Mats, Os “métodos de datação” evolucionistas funcionam?
2- De 124 mil anos, mais coisa menos coisa: Jacobs, Roberts, 2009. Last Interglacial Age for aeolian and marine deposits and the Nahoon fossil human footprints, Southeast Coast of South Africa. Quaternary Geochronology, Volume 4, Issue 2, Pages 160–169
3- Para mais sobre isto, recomendo os livros Scientific Perspectivism (Giere) e Understanding Scientific Reasoning (Giere, Bickle e Mauldin).

segunda-feira, julho 04, 2016

Treta da semana (atrasada): je suis...

Outro dia vi duas mulheres a beijarem-se e achei nojento. Não por serem mulheres, que até acho mais aprazível beijar mulheres do que homens. Mas uma delas estava a fumar e repugna-me beijar alguém com hálito de cinzeiro. Em defesa da minha tabacofobia, gostaria de dizer três coisas. Primeiro, não sou moralmente culpado por odiar tabaco. Talvez seja genético. Os genes para os receptores do olfacto variam de pessoa para pessoa e não tenho culpa se os que me calharam me fazem enjoar com este cheiro. Ou pode ser trauma de infância. Cresci numa casa de fumadores e numa época em que ninguém se ralava com quem não queria o fumo dos outros. Seja como for, o meu ódio pelo tabaco faz parte de mim não o posso desligar quando queira. Em segundo lugar, odiar tabaco e querer distância de quem fuma não me torna responsável se algum maluco matar fumadores. Odiar e matar não são a mesma coisa. E, terceiro, se bem que eu odeie o tabaco e outros gostem de fumar, podemos conviver perfeitamente uns com os outros. Basta que não fumem para cima de mim.

Esta última condição tem uma característica importante. O equilíbrio óptimo entre posições antagónicas não depende da opinião de ninguém nem exige que alguém mude a sua. Quer se deteste ou adore tabaco, o melhor é permitir que cada um fume quando quiser desde que não obrigue ninguém a fumar. Isto é tolerância. A tolerância não exige amar ou abdicar do ódio. Não requer simpatia, concordância, apoio ou sequer respeito, aplicando-se mesmo ao que se despreza ou odeia. A tolerância está no equilíbrio que melhor concilia as diferentes opiniões. Precisamente para que ninguém tenha de abdicar da sua. Dizem que os direitos de cada um acabam onde começam os direitos dos outros. O tolerante compreende que os direitos de cada um só devem acabar exactamente onde começam os dos outros. Mesmo que sejam exercidos para algo tão repugnante quanto beijar a boca de alguém que fuma.

Este princípio não serve só para a tabacofobia. Deve aplicar-se a tudo, incluindo coisas como a homofobia ou o racismo. Porque a tolerância não é só para aquilo que é fácil de aceitar. É para que todos possam amar ou odiar o que quiserem, exprimir o que pensam e viver de acordo com o que sentem com a maior liberdade que seja possível conceder sem privar outros de liberdades equivalentes. É um problema objectivo e não depende do que nos agrada ou repugna.

O que me motivou a escrever isto foi a reacção ao massacre homofóbico em Orlando. Acerca do massacre não me ocorre nada que não seja óbvio. Mas muita gente apontou o problema errado. Só para dar dois exemplos, no site da ILGA afirma-se que «o ódio que esteve na base do atentado é insuportável» e pedem que «denunciem sempre» quaisquer manifestações de ódio(1); e o Daniel Oliveira escreveu que «[a] homofobia é o mais poderoso dos ódios» e que é falso que sejamos «tolerantes com a homossexualidade.»(2) Isto é errado porque o problema não está no ódio nem a homofobia é necessariamente intolerância. Matar pessoas por ódio homofóbico é tão intolerável como matar pessoas por religião, dinheiro, política ou capricho. Seria fraco consolo para as vítimas e suas famílias descobrir que, afinal, não tinha sido a homofobia a motivar Omar Mateen. O intolerável nisto é matar pessoas. É isso que passa a fronteira entre os direitos de um e os direitos dos outros. O ódio, a fé, a ganância e a sede de poder, por muito repugnantes que sejam, não são intoleráveis porque estão aquém dessa linha. O que cada um sente é um direito seu. Faz parte daquilo que a tolerância obriga a aceitar, quer se goste quer não.

Eu não sou Charlie. Admiro a coragem daquela malta e acho bem que gozem com quem se leva demasiado a sério, mas não gosto daqueles bonecos nem aprecio aquelas piadas. Também não sou gay, nem LGBT, nem Orlando. Não meto o bedelho na vida sexual dos outros nem conheço essa cidade. Não gosto de discotecas, odeio tabaco e repugna-me ainda mais a homofobia. Mas isso sou eu. Um mero ponto numa gama enorme de possibilidades. A tolerância não tem nada que ver com isto. Não tem que ver com o que me agrada, com os amigos que tenho ou com as experiências que tive. Tolerância é reconhecer que os direitos de cada um só devem acabar onde começam os direitos dos outros. E nem um milímetro antes. A fronteira tem de ficar exactamente ali, por muito nojo que me meta o que alguns fazem do seu lado.

É pela tolerância que condeno o homicídio e sou contra a venda de fuzis de assalto. Isso passa a linha. E é também pela tolerância que oponho esta cruzada contra o ódio. A homofobia pode resultar em intolerância se o homofóbico violar os direitos dos outros. Mas isso acontece também com o fumador ou com quem odeia tabaco. Aquém da linha, a homofobia é um direito como qualquer outro. Combater o que as pessoas são e tentar homogeneizar os seus valores é intolerância, porque falta ao dever de respeitar a liberdade de cada um; é ineficaz, pela dificuldade de mudar o que as pessoas sentem; e é contraproducente porque o ódio perseguido torna-se violento com mais facilidade do que o ódio que se pode assumir e exprimir livremente. Se me obrigassem a viver com fumadores e a fingir que não me importava teriam de ter muito cuidado cada vez que acendessem um cigarro.

A violência homofóbica é intolerável e deve ser combatida. Mas deve ser combatida com tolerância. O objectivo deve ser a coexistência pacífica e não a extinção. Os homofóbicos devem poder ser, sentir, e exprimir-se como quiserem sujeitos apenas ao dever, que todos temos, de não negar tais liberdades aos outros. Reprimir a homofobia apenas substitui uma intolerância por outra e piora o que já está mal. Por muito atraente que pareça, é o caminho errado.

1- ILGA, Orlando: contra o medo e os silêncio, o nosso orgulho e liberdade
2- Expresso, Eu fui Charlie e não sou gay?

sábado, junho 18, 2016

Treta da semana (atrasada): mais ou menos empírico.

Entre cientistas que desprezam a filosofia como mera especulação de sofá e filósofos que a dizem intelectualmente superior, muitos alegam que a diferença entre ciência e filosofia é que a ciência é experimental e a filosofia é conceptual. É um erro sedutor mas o exemplo da matemática, alegadamente semelhante à filosofia na sua pureza intelectual, ajuda a duvidar da distinção. Por um lado, a matemática é mais parecida com a física do que com a filosofia. Tão parecida que os físicos mais famosos eram matemáticos. Ou vice-versa. Por outro lado, porque a matemática é fundamentalmente empírica. Só no início do século XX é que se tentou formalizar a noção de número numa teoria lógica sobre conjuntos. Além da noção de conjunto provir também da nossa experiência, durante dois mil e tal anos, de Euclides a Frege, ninguém sentiu falta de uma definição formal de “número”. Aqui estão três cabras, ali duas maçãs e este é um pau para dar na cabeça de quem se puser com perguntas parvas. A matemática sempre foi, e ainda é, uma abstracção da nossa experiência empírica. Tal como a física, a biologia e a química. E a filosofia.

Muitos julgam que há disciplinas filosóficas, como a ética, em que não se pode usar a experiência para seleccionar teorias. A ilusão resulta de haver várias teorias éticas que a experiência ainda não permite descartar. Mas seria trivial rejeitar empiricamente a teoria ética de que tudo é permitido se for azul e condenável se for de outra cor, por exemplo. A nossa experiência diria de imediato que tal teoria não serve. E, tal como na ciência, o progresso na ética foi sempre guiado pela experiência. O que mudou de Sócrates a Singer não foram premissas a priori. Foi o acumular de experiências e observações que permitiu compreender melhor problemas como a escravatura, a igualdade ou o sofrimento dos animais. Nem é por acaso que os argumentos da filosofia ética se baseiam tantas vezes em experiências conceptuais. Estas são uma forma expedita de fundamentar a teoria naquilo que sabemos por experiência.

Ainda assim, parece que a filosofia e a matemática dependem mais de experiências passadas e menos da recolha de novos dados do que a química ou a astronomia. Mas antes de seguir esta linha queria desatar mais um nó. Há quem proponha que esta é uma diferença na quantidade de experiências e implicações empíricas. Mesmo sendo sempre preciso um fundamento empírico, esta tese diz que a filosofia depende menos disso do que a ciência. Um exemplo clássico é a diferença entre uma afirmação como “nenhum solteiro é casado” e outra como “existe água em Marte”. Parece que a verdade da primeira depende apenas do significado dos termos enquanto a verdade da segunda tem mais alcance empírico. Até chega a Marte. Mas isto é falso. Nenhum solteiro é casado se o estado após o casamento não intersectar o estado anterior ao casamento. O que será verdade se o tempo for linear e unidimensional mas pode ser falso se o tempo for um círculo ou se tiver mais do que uma dimensão. Também se tem de assumir que o tempo é igual em todos os referenciais, e isso já sabemos ser falso. Portanto, uma pessoa até pode ser solteira num referencial e casada noutro, no mesmo instante medido em cada referencial. Afinal, a afirmação aparentemente inócua de que “nenhum solteiro é casado” tem implicações empíricas profundas. Talvez até mais do que “há água em Marte”. Seja como for, não conseguimos quantificar devidamente as implicações empíricas de uma afirmação de forma a possamos dizer, por essa quantidade, se é filosófica ou cientifica. Não é uma distinção que faça sentido.

Há diferenças naquilo que é imediatamente mais produtivo para avançar na investigação. O matemático que quer provar propriedades de uma função criptográfica, mesmo dependendo da experiência que fundamenta a matemática, vai precisar mais de pensar nas demonstrações do que de obter dados novos. O astrónomo que estuda supernovas, pelo contrário, vai dedicar mais tempo a recolher dados do que a demonstrar teoremas. Mas isto também faz o matemático que desenvolve modelos de risco para uma seguradora enquanto o físico que tenta normalizar uma função de onda vai recorrer mais à inferência do que à experiência. E mesmo que haja diferenças médias na necessidade mais imediata de recorrer à experiência ou à inferência entre disciplinas como a matemática e a bioquímica, não me parece ser isto que distingue ciência e filosofia.

O mais relevante é que, da matemática à biologia, a investigação tende a seguir um caminho bem delimitado pelos dados experimentais e por teorias dominantes para os interpretar. À parte de ocasiões em que os fundamentos são reformulados – com Copérnico, Bolyai ou Einstein, por exemplo – nas chamadas “ciências exactas” é normal conhecer-se bem o limite do plausível. Na filosofia, e nas “humanidades”, isto já não acontece. Por isso, nestas, a ênfase é na organização de hipóteses, na identificação de lacunas e na procura da fronteira em vez do progresso por um caminho bem definido. Não vale a pena concentrar o esforço da comunidade, durante gerações, numa teoria específica quando se concebeu várias igualmente plausíveis e há, provavelmente, outras tantas por conceber. É por isso que o filósofo tem de estudar muito mais história, e conhecer mais autores, do que o físico. Porque precisa de uma visão panorâmica do terreno que está a explorar. Mas, conforme o acumular de experiências e a sofisticação das teorias que as interpretam vão afunilando as possibilidades, organizar alternativas torna-se menos importante do que compreender a fundo as teorias dominantes, pô-las à prova e melhorá-las.

A filosofia não difere da ciência por ser menos empírica ou mais conceptual. Isso são ambas, conforme dá jeito. O que acontece é que chamamos ciência à filosofia que já encontrou teorias dominantes, como a relatividade ou a teoria da evolução, nas quais valha a pena todos investirem. E chamamos filosofia à ciência que ainda não tem teorias dessas. Chamamos filósofo a quem as procura e castigamos o filósofo que encontre uma passando a chamá-lo cientista.

domingo, junho 05, 2016

Treta da semana (atrasada): discriminação.

As nomeações para os Óscares* causaram polémica por só haver nomeados brancos. Racismo, protestaram muitos. Mas há mais discriminação nesses galardões. A mediana de idades dos homens que ganham o Óscar de melhor actor principal é 42 anos. A das mulheres é 33 anos (1). O prémio de melhor realização foi quase sempre para homens e o de melhor guarda-roupa para mulheres (2). E, se bem que a discriminação seja frequente, o seu repúdio é inconsistente. Segregar os Óscares conforme a raça seria certamente condenado como discriminação. Mas ninguém protesta contra os “Black Movie Awards”(3) ou estranha que se segregue alguns Óscares pelo sexo. Pior ainda do que estas inconsistências é a forma e o alvo das medidas contra a discriminação que, muitas vezes, criam problemas piores do que aqueles que pretendem resolver por não distinguirem entre a discriminação legítima e a discriminação ilegítima.

Todos nós discriminamos e todos temos o direito de discriminar. Concordando ou não com os critérios de outrem, aceitamos ser legítimo recusar ter relações sexuais com mulheres ou não querer namorar com ateus, por exemplo. Se a escolha é legítima, então discriminar é um direito qualquer que seja o critério. Como ninguém tem o dever de tratar todos por igual, até um racista homofóbico e machista tem direito de o ser em tudo o que disser respeito à sua liberdade pessoal, de consciência e de expressão. Só quando passamos para aquilo que se impõe aos outros, como leis, regras sociais ou tradições, é que esta discriminação se torna ilegítima.

Esta distinção importa porque é um erro cada vez mais comum combater a discriminação legítima das opções pessoais com medidas discriminatórias que, por serem impostas, carecem da mesma legitimidade. Por exemplo, um evento académico nos EUA foi cancelado porque as regras da universidade não permitiam que os convidados para o painel fossem todos do mesmo sexo. Eram designers de jogos, uma profissão com poucas mulheres e, apesar do organizador ter convidado uma mulher, ela acabou por não poder ir (4). É um exemplo de discriminação ilegítima criada para contrariar o que era legítimo. Relativamente poucas mulheres se interessam por informática, ainda menos por design de jogos e pouquíssimas se dedicam o suficiente a isto para se tornarem famosas. O que é pena mas resulta de uma cascata de escolhas pessoais legítimas. Em contraste, não é legítimo proibir eventos académicos em função do sexo dos participantes. O sexo é um atributo pessoal que a universidade não deve regular nem usar como discriminante. Ao descurarem a diferença entre a discriminação legítima das escolhas pessoais e a discriminação ilegítima das regras impostas criaram um mal pior do que aquele que queriam corrigir.

Além disso, a discriminação não é determinante para a legitimidade de um acto. Se é legítimo escolher livremente em quem votamos ou com quem saímos para jantar, é legítimo escolher pelo atributo que nos der na gana, seja a cor da pele, seja o sexo ou a profissão. Se a escolha é livre então qualquer critério é legítimo. Por outro lado, sendo ilegítimo espancar alguém com um barrote, tanto faz que seja por racismo, fúria ou para roubar dinheiro porque o mal principal está em bater na vítima com o barrote. As opiniões pessoais do agressor são secundárias.

Descurar isto tem consequências práticas e éticas. É menos provável que a polícia agrida uma pessoa branca do que pessoas de outras raças ou etnias. A maioria das vítimas de homicídios conjugais é do sexo feminino. Estas diferenças estatísticas levam muitos a classificar estes problemas como racismo ou “violência de género”. Mas não é esse o problema importante, até porque ninguém aceitaria como solução satisfatória a mera redistribuição das vítimas de forma a eliminar as diferenças estatísticas. O que importa é a violência e os homicídios, independentemente da distribuição numérica das vítimas, e isto não se resolve regulando as opiniões. Resolve-se mudando o comportamento, muito mais sensível a pressões externas do que as opiniões, que são notoriamente difíceis de alterar. É mais fácil convencer um vegetariano a comer bifes de cão do que convencer um racista a deixar de o ser. Além disso, todos temos direito às nossas opiniões mesmo que sejam repugnantes. Portanto, não é o racismo ou o machismo que temos de combater. É o homicídio, a violência e as normas injustas.

O racismo é um disparate. O machismo e o fascismo também. Mas nisto são como o criacionismo, a homeopatia ou a astrologia. Estas coisas merecem que lhes apontem defeitos, que as critiquem e até que as ridicularizem. Mas sempre reconhecendo o direito que cada um tem de se guiar pelos critérios que quiser em tudo o que lhe seja legítimo fazer. Seja a escolher o namorado, a votar para os Óscares ou a fazer comentários no Twitter, não podemos condenar quem pensa diferente só por não pensar como nós. O que temos de impedir é que imponham esses disparates aos outros. É quando o criacionista quer impingir as suas tretas aos miúdos na escola, ou o neonazi quer expulsar todos os estrangeiros, que temos de dizer não. Pensem o que quiserem, mas portem-se como deve ser. É essa linha que devíamos defender em vez de nos escandalizarmos com o racismo dos Óscares, os anúncios chineses (5) ou a “violência de género” no cartaz dos X-Men (6). Esta reacção exagerada contra quem não fez mal algum além de exprimir ideias que nos repugnam é meio caminho andado para a imposição de medidas discriminatórias, essas sim ilegítimas, como criminalizar actos inócuos (7) ou exigir quotas em função de raça ou sexo (8). Além disso, guiarmo-nos pelo politicamente correcto nestas coisas impede-nos de opor aquilo que realmente merece oposição, que são os casos em que a discriminação é imposta em vez de ser mera opção pessoal. As organizações religiosas são um exemplo monstruoso disso, afectando muitos milhões de pessoas desde a mais tenra idade e impondo aos seus membros regras que seriam crime em qualquer outra organização (9). Mas com isso poucos se importam, preferindo o combate vigoroso contra as nomeações para os Óscares ou os anúncios de detergentes.

* Sim, estou muito atrasado com isto. Não tem sido um semestre fácil e já ando a mastigar este post há carradas de tempo....

1- Wikipedia, List of Academy Award Best Actor winners by age e List of Academy Award Best Actress winners by age.
2- Wikipedia, Academy Award for Best Director e Academy Award for Best Costume Design
3-Black Movie Awards
4- HeatStreet, USC Cancels ‘Legends of the Games Industry’ Event for Not Including Women
5- YouTube, Racist Chinese detergent brand Qiaobi (俏比) ad
6- Hollywood Reporter, Rose McGowan Calls Out ‘X-Men’ Billboard That Shows Mystique Being Strangled
7- Por exemplo, colar fita cola em retratos é um “crime de ódio”, simplesmente porque os retratos eram todos de professores negros: Defaced photos of black Harvard law professors investigated as hate crime
8- Expresso: Governo exige quotas para mulheres nas empresas cotadas (mas só nos cargos de gestão; trabalhos que acarretem perigo ou que sejam especialmente desagradáveis, como em minas, construção civil ou manutenção de esgotos, podem continuar dominados pelo sexo masculino.)
9- Segundo o artigo 240º do Código Penal, quem «desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação [… por causa de …] raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género […] ou que a encorajem [e quem] Participar na organização ou nas atividades referidas [...] ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento; é punido com pena de prisão de um a oito anos.» Parece-me difícil defender que nenhuma organização religiosa cá em Portugal seja culpada de encorajar discriminação pela religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género.

terça-feira, maio 17, 2016

Direitos de autor.

A conversa de ontem, na audição pública sobre censura e internet (1), deu-me inspiração para vários posts. Falta agora o tempo para os escrever mas, para já, aproveito para agradecer o convite do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda e a todos os intervenientes pela estimulante troca de ideias. Nestes anos de crítica aos defensores de direitos exclusivos de cópia, por vezes tenho receado estar a criticar caricaturas exageradas em vez daquilo que realmente defendem. Estou, por isso, grato aos intervenientes que me ajudaram a pôr de parte este medo.

Durante a conversa, muita gente falou sobre direitos de autor. Que são importantes, que temos de os respeitar e assim por diante. Estou inteiramente de acordo. No entanto, penso que há algum equívoco no uso da expressão e espero que este post ajude a desfazê-lo.

O autor tem o direito de criar sem ser perseguido, preso, torturado ou morto por aquilo que criou.

O autor tem o direito a uma educação e ao acesso às obras de que necessita para desenvolver o seu potencial. A todas as obras publicadas, e mesmo que o autor seja pobre.

O autor tem o direito de manter as suas obras privadas e tem o direito de as tornar públicas sem que o forcem, proíbam ou censurem. Tem, em especial, o direito de copiar e distribuir as suas obras como e quando quiser sem que outros reclamem monopólios sobre elas.

O autor tem o direito de transformar as obras dos outros. Ninguém cria do nada e criação é sempre transformação. Por isso, o autor tem o direito de se inspirar no que já foi feito, tem o direito de citar, de adaptar e de combinar o que outros criaram antes. E tem o direito de contribuir para o que os outros vierem a criar depois fazendo o mesmo com as obras que ele criou.

O autor tem o direito de ser reconhecido como criador das suas obras e tem o direito de mudar de ideias e repudiar aquilo que criou mas no qual já não se revê.

O autor tem os mesmos direitos que todos nós temos porque, no fundo, todos somos autores. Todos criamos coisas novas transformando o que já existe e todos contribuímos algo para os que vierem depois. E, como todos nós, o autor tem o dever de respeitar os direitos dos outros.

Além disto, há também uma lei que concede monopólios sobre a cópia de expressões materiais das obras com o propósito de tornar as cópias mais caras. Estes não são bem direitos. São mais como as licenças dos táxis, que podem ir dando rendimento ao dono ou podem ser vendidas a terceiros. Como estes monopólios legais costumam ser vendidos, e como duram até setenta anos após a morte do autor, normalmente nem sequer são do autor. O costume é acabarem nas mãos dos fabricantes de cópias, que são quem mais proveito tira deste sistema. Infelizmente, em muitos casos em que alguém diz defender os “direitos de autor”, refere-se apenas a este disparate ignorando os outros que são mesmo direitos e mesmo do autor.

1- Pirataria e censura digital.

terça-feira, maio 10, 2016

Pirataria e censura digital.

No próximo dia 16, participarei numa audição pública sobre a prática de bloquear sites em defesa de alegados direitos de autor. O evento é organizado pelo Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda e será na Casa Amarela da AR às 15:00 (1). Superficialmente, o problema é claro. A Internet é uma rede de redes locais, como as que temos em casa, com vários computadores partilhando um router. Um site é um conjunto de páginas num servidor, numa rede local que, por sua vez, é ligada ao resto da Internet por um Internet Service Provider (ISP). Em muitos países, existem mecanismos legais para bloquear sites que violem alguma lei. Contacta-se o ISP responsável pela ligação desse site à Internet e, mediante justificação legal adequada, o ISP corta o acesso.

Infelizmente para associações como o MAPINET, o procedimento legal para bloquear um site por violação de direitos exclusivos de distribuição tem de ser iniciado pelos detentores desses direitos. Além disso, o processo não garante o deferimento imediato das pretensões do queixoso. Admite contraditório, exige provas e essa tralha toda que para nós é justiça mas que, para a “industria cultural”, é uma chatice. Como o MAPINET não detém os direitos relevantes e nem é claro que seja mesmo ilegal aquilo que acusam de o ser, precisam de um processo alternativo para impedir que alguém vá ao tugaanimado.net procurar uma ligação para o musical do Panda e os Caricas, um ilícito considerado tão grave quanto «ultrapassar os 120 Km/H quando se vê o sinal de limite de velocidade na estrada»(2). Por isso, em vez requererem o bloqueio junto dos ISP dos sites visados, engendraram com os nossos ISP uma marosca para nos impedir de os encontrar. Como se pode constatar usando outro servidor de DNS que não o fornecido pelos nossos ISP, os sites não estão bloqueados. A nossa ligação é que foi sabotada.

Este é o problema mais óbvio. Não pode ser legítimo sabotar a ligação à Internet a milhões de pessoas, que nem sequer foram acusadas de um ilícito, só para contornar o procedimento legalmente estabelecido para bloquear sites que realmente violem a lei. Mas este é também o problema mais superficial. O problema fundamental é menos óbvio e é deliberadamente obscurecido pela propaganda de organizações como o MAPINET.

Quando este sistema legal de monopólios* tomou a sua forma moderna, há pouco mais de um século, o seu propósito era regular a cópia comercial. Isto foi verdade até às fotocopiadoras, cassetes e gravadores de vídeo. Nos anos 70, a Universal processou a Sony por vender gravadores de vídeo que permitiam às pessoas gravar programas de televisão e vê-los sempre que quisessem (3). A Universal alegou que, como permitiam violar o seu copyright sobre os programas, a Sony devia ser proibida de vender esses aparelhos. Há dois aspectos a salientar neste caso. Primeiro, a Universal não processou as pessoas por fazerem cópias. Seria consensualmente absurdo mover acções judiciais por violação de copyright contra cidadãos privados que gravassem cassetes em casa. Por isso, a Universal processou a Sony. A exploração comercial dos gravadores é que era relevante. Em segundo lugar, o tribunal decidiu que a cópia privada era legal. Era uma excepção justa ao monopólio que se pretendia regular o comércio e não actos do foro pessoal. Havia um limite claro para estes monopólios.

A partir daí, a estratégia mudou. Por um lado, a legislação sobre esta matéria passou a ser decidida por lobbies e burocratas e imposta, em boa parte, por via de tratados internacionais negociados à porta fechada. Por outro lado, investiram milhões na propaganda que apresenta os monopólios comerciais sobre a cópia como sendo “direitos de autor” ou “direitos de propriedade intelectual”. Ou seja, algo que abrange tudo e não apenas a exploração comercial de cópias.

Desta estratégia resultaram aberrações como estes bloqueios ou a protecção legal de medidas tecnológicas de “gestão de direitos”, ou DRM. É crime contornar qualquer medida tecnológica que restrinja o nosso uso daquilo que é nosso. Seja uma consola que só deixa ler certos DVD, um programa que só funciona se estivermos ligados ao servidor da empresa ou até um candeeiro que só acende se a lâmpada for da marca certa(4). Esta lei viola os nossos direitos de propriedade e é uma lei que ninguém nos perguntou se queríamos. Não corrige qualquer problema social nem foi debatida pelos mais afectados. Foi alinhavada por alguns lobbies, transcrita para tratados comerciais e imposta a centenas de milhões pessoas que nem sabiam o que aí vinha (5). Isto não é democracia. É golpe. E, como isto, grande parte do resto da legislação que se aplica no domínio digital, desde a proibição de copiar números até à censura das telecomunicações.

A pirataria é um problema grave. Mas os piratas originais não copiavam músicas, não partilhavam filmes nem faziam downloads. Ganhavam dinheiro pela força, coagindo e ameaçando as suas vítimas sem qualquer respeito pelos seus direitos ou pela sua propriedade. É exactamente isso que fazem agora estas empresas e organizações que querem prender quem usa o que é seu, criminalizar a partilha de informação e censurar o acesso à Internet. Como têm a lei do seu lado, por muito injusta que seja, tecnicamente são corsários e não piratas. Mas a diferença é meramente formal.

* Chamar-lhe “direitos de autor” é parte do truque. O autor tem muitos direitos. Tem o direito de aprender, de criar e de decidir se publica as suas obras ou se as mantém privadas, por exemplo. O que está em causa aqui é apenas a legitimidade de restringir aquilo que outros fazem com o que é deles.

1- Mais detalhes aqui: Pirataria e Censura Digital.
2- Mais sobre este e outros disparates em Treta da semana (atrasada)*: conduta errónea.
3- Wikipedia, Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc.
4- TechDirt, Light Bulb DRM: Philips Locks Purchasers Out Of Third-Party Bulbs With Firmware Update
5- A história de como estas leis são feitas dava para mais uma data de posts. Por agora, deixo apenas uma referência: Bill D. Herman, A political history of DRM and related copyright debates, 1987-2012

quinta-feira, maio 05, 2016

Treta da semana (atrasada): glifosato.

A avaliação de riscos tem de ser quantitativa. Intuitivamente, percebemos isto quando riscos e benefícios nos afectam directamente. Decidindo bem ou mal, muita gente fuma, conduz e bronzeia-se mesmo sabendo que corre perigo. Recentemente, a Visão publicou um artigo alarmista sobre os alegados perigos das redes sem fio. O artigo é um misto de ignorância, deturpação e mau jornalismo (1) mas é o tipo de coisa que assusta muita gente. No entanto, entre o alegado perigo para a saúde e a falta de Internet, a maioria parece escolher a primeira opção. Daí a ausência de petições a proibir telemóveis ou routers. Mesmo que houvesse algum risco, seria obviamente necessário quantificá-lo e pesá-lo com os benefícios da tecnologia antes de deitar fora o bebé com a água do banho.

Infelizmente, quando os benefícios são indirectos ou menos evidentes é fácil pintar o problema a preto e branco. Ou há risco, ou não há. E, se há, então é preciso proibir. Foi o que aconteceu com o glifosato. A petição pela «proibição total de venda, distribuição ou uso do herbicida glifosato em território português»(2) invoca a classificação dada pela International Agency for Research on Cancer (IARC), que pôs o glifosato na categoria “2A”, de provavelmente cancerígeno para humanos. O comunicado da Quercus menciona esta classificação e acrescenta que «entre 2002 e 2012 o uso de glifosato na agricultura mais do que duplicou» e que Portugal «é o sétimo país europeu onde mais se morre de» linfomas não-Hodgkin (LNH) (3). Segundo noticia o Diário de Notícias, «Um estudo realizado com 26 voluntários portugueses, das regiões Norte e Centro do País, detetou a presença do herbicida Glifosato [com uma] concentração média de 26,2 mg/l por pessoa [,] "vinte vezes superior" às que são encontradas, por exemplo, em cidadãos suíços e alemães.» (4) É de preocupar qualquer um. A menos que tentemos quantificar este perigo.

Começando pelos dados da Quercus, quando olhamos para o gráfico da mortalidade por LNH, nota-se que, apesar de estar em sétimo lugar, a diferença entre Portugal e outros países da UE não é muito grande. Além disso, a mortalidade não depende apenas da exposição a factores de risco. Depende também do tratamento. Quando olhamos para a taxa de incidência, obtida da mesma fonte (e é pena que tenha escapado isto à Quercus), Portugal não só cai 4 lugares como fica atrás da Suíça, com uma concentração média de glifosato vinte vezes inferior à dos voluntários do estudo (5).



Isto não prova que o glifosato seja inócuo e, se bem que a evidência seja ténue, é razoável suspeitar que seja cancerígeno. Mas esta classificação de “2A” da IARC não implica que seja perigoso. Outros compostos com esta classificação incluem «emissões da combustão doméstica de biomassa (principalmente madeira)» e «emissões de fritura a alta temperatura», mas não se justifica temer as batatas fritas, proibir as filhoses ou acabar com a consoada à frente da lareira (6). O glifosato é comercializado desde 1974. Foi usado por milhões de agricultores em todo o mundo e em muitas cidades para matar as ervas dos passeios. Centenas de milhões de pessoas foram expostas regularmente a este composto durante quatro décadas. Se o uso que lhe têm dado fosse tão perigoso quanto apanhar sol ou beber cerveja já não seria meramente suspeito de ser carcinogénico (a IARC classifica a luz ultravioleta, seja natural seja de lâmpadas artificiais, e todas as bebidas alcoólicas, na categoria “1”, de carcinogénico para humanos).

Além do risco do glifosato estar quantitativamente aquém daquilo que o alarmismo sugere, proibir a sua utilização também tem riscos. O glifosato é muito usado por ser barato, pois as patentes relevantes caducaram há mais de quinze anos, mas também porque quarenta anos de uso permitem balizar com confiança o perigo da sua utilização. Se proibirmos o glifosato, o recurso a herbicidas alternativos para os quais temos menos informação pode ter consequências graves. O aumento nos custos de produção também afectarão a saúde e o ambiente. Aumentar o preço dos produtos nacionais aumentaria as importações e, com isso, o consumo de combustíveis. Ao mesmo tempo, iria reduzir o consumo de vegetais e agravar problemas de saúde com impacto muito maior do que o dos linfomas não-Hodgkin. Como diabetes, obesidade e outras formas de cancro, por exemplo. Quem tem dinheiro pode comer produtos “biológicos”, se isso lhe der consolo, mas nem toda a gente consegue pagar três euros por um quilo de cenoura “biológica” em vez dos cinquenta cêntimos que custa o quilo da que dizem ser menos biológica.

Além do glifosato, há muita coisa que faz mal. A imperial, o cheiro a fritos, o fumo da lareira e uma tarde na praia. Até os routers podem fazer mal. Não será pela radiação que emitem, porque apanhamos radiação mais intensa e mais energética do candeeiro da mesa de cabeceira do que do router ou do telemóvel. Mas os compostos voláteis libertados pelos transformadores e circuitos quentes dos aparelhos que temos por toda a casa não devem fazer muito bem. No entanto, a pergunta relevante não é se é possível que estas coisas causem cancro. O relevante é perguntar se o risco é suficientemente maior do que o risco das alternativas para que faça sentido abdicar das vantagens que nos trazem. Neste momento, não parece ser esse o caso.

1- Recomendo a carta aberta da COMCEPT acerca disto: Carta aberta à Visão
2- Proibição do Herbicida Glifosato em Portugal
3- Quercus, Glifosato: o herbicida mais vendido em Portugal afinal pode causar cancro em humanos
4- DN, Portugueses têm nível elevado de herbicida cancerígeno no sangue
5- O gráfico completo está aqui: EUCAN, Non-Hodgkin lymphoma
6- A lista completa pode ser descarregada, em pdf, da IARC: Agents Classified by the IARC Monographs

segunda-feira, março 07, 2016

Debate: A violência com nome de religião.

Na próxima quarta-feira, dia 9 de Março, vou participar no debate “A violência com nome de religião”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Será às 18h00 na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa). Participarão também Abel Pego, António Matos Ferreira, Esther Mucznik e David Munir. Mais detalhes na página do evento: Violência religiosa e violência com nome de religião.