terça-feira, novembro 11, 2014

O piropo e a lei.

Um vídeo com os comentários que alguns homens dirigiram a uma mulher que caminhava por Nova Iorque (1), apesar de ter suscitado algumas críticas (2), tem estimulado uma discussão acesa sobre este assunto. Infelizmente, a discussão tem sido pouco esclarecedora porque não foca o verdadeiro problema. Assume que o mal é o piropo ou a arrogância dos homens que se metem com as mulheres (3), o que faz naturalmente confusão a qualquer homem que se imagine na posição delas. Se as mulheres se dirigissem aos homens na rua com piropos ou propostas de teor sexual, quer fosse um singelo “estás lindo” quer fosse um “chupo-te todo”, não era provável que muitos homens se considerassem vítimas de assédio e os que o fizessem seriam gozados pelos outros. No entanto, a mera inversão de actores não inverte a situação porque o problema fundamental é outro.

Segundo as estatísticas da APAV sobre crimes sexuais, aproximadamente 95% dos agressores são homens e 95% das vítimas são mulheres (4). Este é apenas um indicador, entre muitos, daquilo que é óbvio. As diferenças físicas entre homens e mulheres estão associadas a diferenças comportamentais que vão desde disposições até escolhas deliberadas. As hormonas que determinam as características sexuais físicas também influenciam o sistema nervoso. A possibilidade de engravidar ou de ser enganado a criar um filho que não é seu diferem entre homens e mulheres. Factores como estes levam a diferenças médias de atitude na relação com o sexo oposto. Infelizmente, há uma grande relutância em admitir a importância destes factores por se confundir o seu fundamento biológico com determinismo ou por se temer que a biologia venha a justificar o mau comportamento. É um disparate. O facto de alguém ser mais forte ou agressivo não lhe dá o direito de bater nos outros. Pelo contrário. E é evidente que a educação e a sociedade podem moldar estes comportamentos. A actriz caminhou dez horas em Nova Iorque e, apesar dos piropos, ninguém lhe tocou. Em Kabul ou Jabalpur o resultado poderia ter sido bem diferente.

Discute-se a legitimidade do piropo quando o problema é as mulheres se sentirem ameaçadas pela atenção indesejada. Mesmo que, objectivamente, o verdadeiro perigo seja o ex-namorado e não um estranho numa rua cheia de gente, a verdade é que estes piropos só servem para uns parvos se sentirem mais machos assustando as mulheres que lhes passam à frente. Apesar do respeito pela liberdade de expressão e do “és muita gira”, por si só, ser inócuo, isto não é aceitável e devemos educar as pessoas para que não aconteça e, principalmente, para que não surta este efeito se acontecer.

No entanto, considero um erro atacar o piropo com legislação, como propõe a Fernanda Câncio (4). A lei é um instrumento demasiado grosseiro para regular algo tão subjectivo como o hipotético delito de piropo na via pública. Além disso, o verdadeiro problema é muito mais complexo e não se resolve multando os piropeiros de rua. Mas estas objecções são secundárias. A principal é outra.

Câncio relata uma experiência determinante para a sua reacção aos piropos. «Tinha uns 12 anos, vinha do liceu e um homem com idade para ser meu avô disse, quase ao meu ouvido: "Lambia-te toda."» Eu também tive experiências desagradáveis com essa idade. Uma vez, à saída da escola, três ciganos deram-me uns pontapés e levaram-me o dinheiro e os bilhetes para o autocarro. Tive de voltar a pé para casa. Outra vez foi um cigano com um canivete. Esse só me levou um bilhete de autocarro porque eu já tinha aprendido a não levar dinheiro, e nem tive de voltar a pé porque levava outro bilhete escondido no forro do casaco. Noutra ocasião, eu e o meu irmão mais novo tivemos de fugir de uma meia dúzia de ciganos que vieram a correr atrás de nós, a atirar pedras e a ameaçar bater-nos. Não chegámos a apurar se a ameaça era para cumprir, mas a fuga custou o pacote de leite que o meu irmão teve de largar pelo caminho. Por estas e outras, se um cigano hoje me perguntar “tens trocos?” eu tenho tanta razão para ter receio como Câncio terá se um homem lhe disser “és toda boa”. Mas sou contra punir os ciganos que perguntem se alguém tem trocos porque isto seria punir algo objectivamente inofensivo apenas porque quem o faz é parecido com outros que cometeram crimes. Por muito desagradáveis que tenham sido as minhas experiências com ciganos quando era miúdo, não concordo que se descarte a presunção de inocência só por isso.

Infelizmente, é verdade que há homens que agridem mulheres. Por isso, as mulheres têm alguma razão em sentir receio de homens estranhos que mandem piropos. Não muita razão, mas certamente alguma. Tal como eu teria razão para ter medo de ciganos. No entanto, não é justo pintar todos com o mesmo pincel e menos ainda castigar quem não faz nada de objectivamente danoso só porque outros do mesmo grupo são criminosos. Câncio escreve que «Contra a penalização formal destes comportamentos ridiculariza-se; alega-se o não terem "dignidade penal", ou até a "defesa da liberdade de expressão"» mas o problema principal não é esse. O problema principal é que “és boa todos os dias” só parece ameaçador porque uns brutos com órgãos sexuais parecidos com os do piropeiro esfaquearam a mulher ou a ex-namorada. É uma razão inadequada para punir legalmente algo que, a menos desse paralelo, não passaria de má educação.

1- Youtube, 10 Hours of Walking in NYC as a Woman
2- Nomeadamente, por parecer racista. E.g. Women Of Color React To That Viral Catcalling Video.
3- Por exemplo, nesta entrevista: Meet the woman from NY street harassment video
4- DN, Boas todos os dias

1 comentário:

  1. Embora possa parecer que estou a fazer publicidade à Gradiva, da qual sou um especial comprador assíduo da colecção "Ciência aberta", sugiro a leitura de A Rainha de Copas de Matt Ridley. É um excelente livro sobre a sexualidade humana e a sua evolução (sim é um livro de biologia evolutíva!).

    Em especial, aos amigos criacionistas e a todos os defensores da moral e dos bons costumes, garanto-lhes que é boa leitura!

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.