sábado, maio 31, 2014

Treta da semana (passada): eucaristia pirata.

As bênçãos de Deus são infinitas. Tal como um ficheiro pode ser copiado sem gastar o original, também uns podem ser abençoados sem que se desabençoem terceiros. Nesta economia da abundância seria de esperar que não houvesse problemas em partilhar bênçãos e ficheiros. Mas há. Porque há direitos exclusivos de distribuição. Por violar o contrato de exclusividade que Deus terá celebrado com a Igreja Católica há dois mil anos, Martha Heizer foi excomungada pelo Jorge Bergoglio, o gestor de direitos e representante exclusivo do Criador do Universo.

Segundo relata o João Silveira, «O caso Heizer eclodiu em 2011, quando a professora de religião em Innsbruck (Áustria), decidiu desafiar o Vaticano sobre a questão da ordenação de mulheres, anunciando a sua intenção de celebrar a Eucaristia em sua casa, em Absam, uma pequena cidade perto de Innsbruck.»(1) A usurpação dos direitos de distribuição de bênçãos e comunhões «é considerada pela a Igreja como "delicta graviora", tal como a pedofilia e os crimes contra a Penitência.» É de notar, no entanto, que aqui o João Silveira exagerou um pouco. Obviamente, o crime de uma mulher celebrar missa não está ao nível do crime de um padre violar crianças. São delitos graves, mas não são a mesma coisa. É por isso que nenhum padre foi ainda excomungado por abusar sexualmente de menores.

Heizer é «co-fundadora e presidente da "Wir sind Kirche" (Nós Somos Igreja)», um grupo de católicos que defende «o sacerdócio feminino, além de uma maior democracia, a abolição do celibato dos sacerdotes e a adequação da moralidade sexual aos costumes modernos» Estas ideias são tão estranhas – democracia, igualdade e uma atitude moral com menos de cem anos – que o grupo só conseguiu reunir quinhentas mil assinaturas na Áustria e um milhão e oitocentas mil na Alemanha. Claramente, Bergoglio devia seguir os conselhos de Lilian Ferreira da Silva, que comenta assim no post: «É importante que sejam excomungados todos os que assim procedem e todos os que se sentem atraídos por tais tendências.» (2) Eu diria que era bom excomungarem não só essa gente mas também todos os católicos que usam contraceptivos, todos os que não vão regularmente à missa e todos que não considerem dever obediência total ao Papa. Não só expurgavam os hereges como ficávamos com uma ideia mais correcta da verdadeira importância que o catolicismo tem na Europa. Infelizmente, a Igreja é muito parca na excomunhão. Nem a mim excomungam, que só sou oficialmente católico por me terem baptizado mal nasci. Mas também, verdade seja dita, eu só nego a existência de Deus, ridicularizo o Espírito Santo e critico a Igreja post sim, post não. Nunca cheguei ao delito extremo de ser mulher e celebrar missa.

O João Pedro BM explica assim a gravidade do crime desta senhora, e o porquê da Igreja Católica não poder ordenar mulheres: «Cristo nao ordenou mulheres, também nao o fará a Igreja que Cristo fundou.» É uma hipótese interessante mas tem algumas falhas. Por exemplo, Cristo também não ordenou sul-americanos nem pessoas que não fossem judeus de nascença. Talvez, à cautela, fosse melhor excomungar também o Jorge Bergoglio e quaisquer outros sacerdotes que não tenham nascido judeus na palestina ocupada pelo império romano. Afinal, foi só entre esses que Jesus escolheu os seus apóstolos.

Também achei interessante, e reveladora, a solução que vários católicos propuseram para as reivindicações do grupo “Nós somos Igreja”. A Teresa Chaves, por exemplo, escreveu que «Se "Nos somos Igreja" tem uma visão diferente da doutrina católica, criem uma nova religião e deixem os cristãos em paz!» Esta proposta demonstra um enorme progresso na mentalidade católica. Antigamente, a atitude seria a de que os hereges mereceriam a morte por estar em jogo almas imortais e a vontade divina. Agora já admitem, ainda que implicitamente, que as religiões são meras invenções humanas e que quem não estiver satisfeito com uma que invente outra.

É curioso descobrir uma analogia tão forte entre dois assuntos que me têm interessado tanto e que, até agora, me pareciam completamente diferentes. Mas, no fundo, a legitimidade da doutrina católica tem tanto que ver com a vontade de Deus como o copyright do Rato Mickey tem que ver com incentivar o Walt Disney a desenhar mais bonecos. O que se passa aqui é simplesmente o esforço por parte de um grupo influente em controlar a distribuição de bens que são trivialmente duplicáveis e transmissíveis. Seja ficheiros, seja missas, o problema nesta economia não é a escassez mas apenas a ganância dos intermediários.

Editado às 20:12 para corrigir o apelido do Papa. Obrigado à Cristina Sobral por apontar o erro.

1- Senza Pagare, Papa Francisco excomungou a fundadora do "Nós Somos Igreja"
2- Nos comentários ao post: Papa Francisco excomungou a fundadora do "Nós Somos Igreja"

quinta-feira, maio 29, 2014

Caros abstencionistas,

Não defendo que percam o direito de se queixar só por não terem votado. Enquanto os outros conseguirem manter a democracia, vocês terão sempre esse direito. Também não quero que vos obriguem a votar ou que vos castiguem se não o fizerem. Um voto tem de exprimir uma escolha própria e informada, e isso não se faz à força. Não me convencem as vossas desculpas de que se abstiveram para protestar caladinhos em casa ou que vos é realmente indiferente quem são os legisladores que vos representam. Se não encontraram diferenças é porque não se deram ao trabalho de as procurar. Mas também não vou invocar deveres abstractos de civismo e democracia para censurar a vossa preguiça. O meu problema convosco é mais concreto.

Gerir uma sociedade livre e justa é um berbicacho. É preciso saber o que cada um quer, entre o que querem é preciso identificar o que é justo, daquilo que é justo e desejável há que determinar o que é possível e, finalmente, perceber como o obter. E é um trabalho constante, porque há sempre muito que temos de melhorar e, sobretudo, muito que temos de impedir que piore. Para conseguirmos isto distribuímos a decisão por todos os envolvidos na esperança de que os erros e enviesamentos individuais se diluam no grande número de participantes e, assim, se encontre o melhor caminho. No entanto, a democracia só funciona se cada um tentar perceber os problemas, estudar as propostas, pensar nas consequências, escolher as opções que prefere e der o seu parecer. Dá trabalho, demora tempo e é uma chatice, mas tem de ser assim porque não há alternativas aceitáveis. Esperamos por um ditador? Atiramos a moeda ao ar? Damos tudo aos interesseiros e fanáticos? A democracia é um sistema muito mau mas os outros são todos piores.

Por isso, o que me chateia na vossa abstenção é a falta de colaboração num trabalho importante. Não é uma questão de direitos ou deveres cívicos em abstracto. O problema é concreto. Temos uma tarefa difícil, da qual depende o nosso futuro, e vocês ficam encostados sem fazer nada.

Isto tem consequências graves para a democracia. Quando a maioria não quer saber das propostas dos partidos, está-se nas tintas para o desempenho dos candidatos e nem se importa se cumprem os programas ou não, o melhor que os partidos podem fazer para conquistar votos é dar espectáculo. Insultarem-se para aparecerem mais tempo na televisão ou porem o Marinho Pinto como cabeça de lista, por exemplo. Vocês dizem que se abstêm porque a política é uma palhaçada mas a política é uma palhaçada porque vocês não votam.

A culpa é vossa porque não é preciso muita gente votar em palhaços para os palhaços ganharem. Basta que a maioria não vote. Também é por vossa culpa que os extremistas estão a ganhar terreno, e pela mesma razão. É fácil pôr os fanáticos a votar. Basta abanar o pano da cor certa e, se mais ninguém vota, eles ficam na maioria. Mas se vocês colaborassem e se dessem ao trabalho de avaliar as propostas dos partidos, se os responsabilizassem pelas promessas que fazem e votassem de acordo com o que acham ser a melhor solução, deixava de haver palhaços, interesseiros e imbecis na política.

Não presumo que vocês fossem todos votar no mesmo que eu. Não temos todos as mesmas prioridades nem as mesmas opiniões acerca do que é viável e de quem merece confiança. Mas pelo menos acabava a palhaçada. Se a maioria votasse com consciência em vez de ficar em casa obrigávamos os partidos a prometer soluções viáveis e a cumprir o que prometessem. Parece-me que este resultado valeria bem o trabalho de ler uma dúzia de panfletos, pensar um pouco e pôr uma cruz no papel. Mas não é trabalho que se possa deixar a uns poucos enquanto a maioria coça o umbigo.

Nós não precisamos dos votos de quem tem certezas. Precisamos de quem tem dúvidas e que, por ter dúvidas, questione, informe-se e pense no que faz. Não precisamos dos votos dos militantes. Precisamos dos indecisos, porque o que é preciso é tomar decisões em vez continuar a repetir o que evidentemente não funciona. E nisso estamos bem. Há muita gente com dúvidas e capaz de decisões novas que, em conjunto, podia mudar isto tudo. Vocês. Basta apenas que se deixem de tretas e ajudem de vez em quando.

domingo, maio 25, 2014

Treta da semana (passada): o combate da FEVIP.

Para desenjoar de posts sérios, este é dedicado às páginas de combate à pirataria da Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais, também conhecida por FEVIP. A sigla vem de se ter chamado originalmente Federação de Editores de Videogramas, mas o nome não era bom. É importante deixar claro que esta organização se preocupa com os interesses dos autores e do público. O outro nome dava ideia de serem só negociantes a meter-se no meio para cobrar pela cópia. Por isso, sabendo o bem que o copyright faz ao património cultural (1), usam-no para defender as obras do perigo da partilha. Deve gastar os bits ou coisa que o valha.

Explicando que «a tecnologia digital […] está cada vez mais ubíqua em todos os dispositivos electrónicos que coabitam com o público», a FEVIP manifesta-se «interessada em promover e proteger todas as obras audiovisuais para que estas sejam usadas nos mais diversos meios com o fim de beneficiar o consumidor»(2). É uma linguagem cuidadosa que, nos detalhes, esclarece muito e ajuda a desfazer mal entendidos. Como, por exemplo, a ideia de que será ilegítimo que sejam os senhores da FEVIP a dizer o que podemos fazer com a nossa propriedade. Com os nossos computadores, os nossos tablets, telemóveis e leitores de música. Seria realmente estranho quererem mandar no que é nosso, mas nada disso é nosso. Os dispositivos electrónicos apenas coabitam connosco. Estão nas nossas casas, mas é a FEVIP quem melhor poderá dizer que uso é legítimo darmos a esse equipamento. Também corrigem a ideia caluniosa de que só fazem isto porque querem ganhar dinheiro a vender mais cópias. Claro que não. São movidos por puro altruísmo. Imaginem só o que é descarregar um ficheiro de graça e ver logo o filme onde se quiser. Uma miséria, porque priva o público do prazer de pagar caro pelas maravilhosas restrições do DRM ou por uma magnífica rodela de plástico que, além de vir com o Ratatui a dissertar sobre a pirataria, ainda serve para pousar o copo depois de ver o filme.

Mas a FEVIP não descura o aspecto económico: «Em Portugal, o sector da indústria audiovisual alberga milhares de postos de trabalho e contribui com 1 por cento de todo o PIB nacional.» É muito dinheiro, perto de 160 milhões de euros. No entanto, talvez por descuido, esqueceram-se de indicar qual o sinal desses 1% que a indústria contribui para o PIB. É que as importações são subtraídas ao PIB e a maior parte dos audiovisuais que se compra por cá é importada. Em livros e revistas, por exemplo, o défice da balança cultural ronda os 70 milhões de euros (3). Se gastarmos mais em filmes e discos do que em livros, o que não me parece improvável, esses 160 milhões podem estar a ir todos lá para fora. Fica então a sugestão para quem se preocupar com a economia nacional: em vez de irem ao cinema ou comprarem um DVD, vão antes jantar fora e depois saquem o filme. Como bónus, ainda se safam do Ratatui a inventar tretas acerca da qualidade das “cópias pirata”.

Noutra página, fazem uma pergunta interessante: «Gostaria que um projecto seu, no qual tivesse investido milhares de horas, milhares ou milhões de euros e muitos meios humanos, se encontrasse disponível em meios completamente alheios ao seu controlo, e sem qualquer possibilidade de recompensa pecuniária legítima e honesta que pudesse compensar o seu esforço?»(4) A pergunta parece um pouco enviesada, mas vamos por partes.

Já investi milhares de horas a criar conteúdos e a transmiti-los aos alunos para depois ficar tudo completamente fora do meu controlo. Este blog já conta com 1807 posts, e também tenho disponibilizado gratuitamente sem controlo software que me levou bastante tempo a criar. Por isso, quanto às horas e ao esforço, resposta é sim. Milhares ou milhões de euros nunca investi, nem meios humanos ou humanos inteiros, mas imagino que se alguma vez o fizesse não o faria às cegas. Por exemplo, se realizasse um filme e depois descobrisse que o andavam a partilhar no Bittorrent só me surpreenderia haver alguém a querer ver o meu filme. A tecnologia em si não seria novidade. Finalmente, quanto à «recompensa pecuniária» só vejo três opções. Ou trabalho sem a querer nem exigir, como é o caso deste blog, ou trabalho com um contrato e então tenho direito, de forma legítima e honesta, a exigir que paguem o meu esforço, ou então arrisco e logo se vê. Se ganhar ganhei, mas se não ganhar não tenho nada que chorar porque só arrisquei o que quis. De resto, não sou de fazer trabalho que não me encomendem e depois ficar zangado se não mo pagarem.

Para terminar, deixo-vos este conselho da FEVIP. Não o acho especialmente útil mas revela bem a atitude destes defensores das obras culturais. «A Internet é uma ferramenta que possibilita ao ser humano alcançar formas incríveis de comunicação e aprendizagem, além de estar apta a estimular e a desenvolver práticas laborais e lúdicas como nunca possíveis em épocas passadas. Todavia, para que o utilizador possa dar um uso adequado à Internet, e usufrua desta em segurança, existe uma forma bem simples de o fazer: Quando está online não faça nada que não fizesse quando se encontra offline.»(5). Ou seja, não partilhem ficheiros nem descarreguem ficheiros. Nem naveguem na Web, nem vejam o email, nem joguem, nem nada que não fizessem se estivessem offline. Talvez assim a Internet se vá embora e os senhores da FEVIP possam voltar a rebolar em recompensas pecuniárias.

1- Por exemplo, impedindo a restauração de filmes e dificultando a reedição de livros.
2- FEVIP, Combate à Pirataria
3- Jornal de Negócios, Exportações de bens culturais cresceram 30% em 2012
4- FEVIP, Sou um pirata.
5- FEVIP, Sites Maliciosos

sábado, maio 24, 2014

O meu voto.

Suspeito que, só por ir votar, já estarei na minoria. Temo que a maioria vá protestar não votando, o que é tão eficaz como não dizer nada quando nos pisam os calos. Muitos possivelmente também acham que as eleições europeias são pouco importantes. Tendo em conta a natureza da crise por que passamos e os políticos que temos no tal “arco da governação”, eu diria que as eleições para o Parlamento Europeu são até mais importantes do que as eleições para o nosso.

Ideologicamente, não sou compatível com o CDS e muito dificilmente com o PSD. Talvez se Sá Carneiro reencarnasse, e mesmo assim não sei. O PS também não inspira confiança, por uma data de razões, entre as quais o Seguro. Além disso, o cabeça de lista do PS para as europeias parece só querer ir lá passear. Entre 2005 e 2014, o Francisco Assis foi relator de um parecer, fez nove perguntas no Parlamento e 26 intervenções (1). Em nove anos. Comparado com quem não está lá só pelo tacho, é uma miséria de desempenho (2). Há muitas coisas que me incomodam nestes três partidos, como o que têm feito no governo, o que têm feito na oposição e a campanha ridícula e infantil que têm conduzido. Mas posso salientar uma que, por si só, já bastava para não votar neles. O PS, o PSD e o CDS chumbaram uma proposta de lei que obrigaria os deputados a exercer o cargo em regime de exclusividade (3).

Caso pareça exagero não votar nestes partidos por causa disto, permitam-me deixar claro o problema. Penso ser evidente para todos que não podemos ter polícias, juízes, ou até avaliadores de exames de condução, a exercer esses cargos ao mesmo tempo que trabalham para entidades privadas. Qualquer pessoa encarregue de decisões que se queira imparciais não pode ser empregado de alguém com interesses no assunto. Tendo isto em mente, é fácil perceber que quem está a fazer as leis não pode estar a soldo de entidades privadas. O que este voto do PS, do PSD e do CDS nos diz é que os deputados destes partidos são da opinião contrária. Acham normal, por exemplo, que um deputado a legislar sobre regulação bancária seja consultor num banco privado ou que qualquer deputado possa trabalhar para uma empresa de advogados. Dá sempre jeito poder contratar uma empresa de advogados cujos empregados fazem as leis. Curiosamente, o António José Seguro acha que os enfermeiros «não devem exercer funções para o Estado e no setor privado em simultâneo»(4). Com os deputados é que, aparentemente, não vê problema nenhum.

Das opções à esquerda tenho de largar também a CDU. Não só pelos disparates que de vez em quando de lá saem acerca de países como a Coreia do Norte – a união dos trabalhadores do mundo é um ideal bonito, mas há coisas que não se desculpam – como também pelo nacionalismo do PCP. Não quero uma política patriótica de esquerda. Quero uma Europa unida, porque só isso é que nos safa a todos.

Excluí também uma data de partidos que, admito, não tive tempo nem interesse em considerar com atenção. Os racistas, o Marinho e Pinto, os monárquicos que não se entendem acerca de quem deve ser o rei, a Carmelinda Pereira, que só aparece quando há eleições, a alternativa socialista, cujo site parece a revista Despertai de tanta desgraça que preconiza, e talvez mais um ou outro que me tenha escapado.

Sobraram três possibilidades. Ideologicamente, identifico-me muito com o BE e os 12 compromissos do partido parecem-me aceitáveis (5). No entanto, além de vagos, muitos parecem ser para fazer em Portugal e não no Parlamento Europeu. O PAN tem um programa com muitas coisas boas (6). Por exemplo, o rendimento básico incondicional, a renegociação da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, garantias e liberdades digitais – que inclui «Legalizar a partilha de materiais com direitos de autor para fins não-comerciais» – toda a parte dos direitos dos animais e a proibição de patentes sobre sementes. O LIVRE também tem um programa com o qual concordo, com a vantagem de ser mais detalhado nas medidas económicas e de ser formulado com uma ideia mais clara do que se faz no Parlamento Europeu, mas com a desvantagem de não ter nada sobre direitos digitais e privacidade, o que para mim é uma lacuna séria (7). No entanto, este partido tem uma enorme vantagem em relação aos outros. Todos. É o único partido português cuja lista de candidatos foi decidida em eleições abertas em vez de ser ditada pela direcção do partido (8). Independentemente do meu voto ajudar ou não a eleger algum deputado para o Parlamento Europeu, serve também para indicar a todos os partidos em que direcção quero que se mexam. Por concordar com o programa do LIVRE, pela prestação do Rui Tavares na legislatura que agora termina (no mesmo grupo parlamentar dos partidos pirata europeus) e, especialmente, porque quero que os outros partidos também seleccionem as suas listas de forma democrática em vez de por amiguismos, vou votar no LIVRE.

Um ponto que quero salientar é que o voto não serve só para eleger deputados. A ideia de evitar partidos pequenos por causa do voto “útil” é um disparate não só por levar os eleitores a votar sempre nos mesmos, com os resultados desastrosos que vemos, mas também porque um efeito do voto é indicar o que exigimos de quem quiser o nosso voto. Votar num partido que faz as coisas como queremos que sejam feitas é a melhor forma de levar os outros partidos a fazer o mesmo. Pensem nisso antes de optarem pela abstenção ou de votarem na pandilha do costume só por os outros serem pequenos.

Adenda: O João Vasco (nos comentários) chamou-me a atenção para este compromisso sobre direitos digitais, assinado pelo Rui Tavares, pela Marisa Matias e pelo João Vasco.

1- Parlamento Europeu, Francisco Assis
< 2- Vejam, por exemplo, a Marisa Matias, o Rui Tavares ou o João Ferreira.
3- i Online, PSD, PS e CDS-PP ‘chumbam’ obrigatoriedade do regime de exclusividade dos deputados . 4- PT Jornal, Médicos querem “transparência” na separação entre privado e público, enfermeiros preferem “aumentos”
5- Bloco de Esquerda, Europeias 2014
6- Partido pelos Animais e Natureza, Programa Político Europeias (pdf)
7- LIVRE, Programa
8- LIVRE, A nossa lista para as Europeias 2014

quinta-feira, maio 22, 2014

Filosofar.

O Niel DeGrasse Tyson disse que a filosofia é uma perda de tempo, não serve para nada e não sai da cepa torta. O Massimo Pigliucci contrapôs que, pelo contrário, a filosofia é uma actividade meritória, útil e que demonstra progredir, mesmo que progrida de forma diferente da ciência (1). Eu estou de acordo. Com ambos. Gosto especialmente da forma como Pigliucci descreve a filosofia:

«Podes pensar na filosofia como uma exploração do espaço conceptual, em contraste com o empírico, acerca de muitos tipos de questão que vão da ética à política, da epistemologia à natureza da ciência. Imagina um terreno multi-dimensional de formas de pensar acerca de cada questão (como: será que teorias científicas descrevem o mundo como ele é ou devemos pensar nelas como apenas empiricamente adequadas?). O filósofo explora esse terreno construindo argumentos, considerando contra-argumentos e descartando ou refinando certas perspectivas.»

Esta descrição da filosofia como a exploração de formas de pensar acerca das questões em contraste com o teste empírico de hipóteses exprime bem a tese que já tenho aqui defendido: não há uma separação entre filosofia e ciência. Consideremos, por exemplo, o trabalho de Sara Seager (2), professora de física no MIT e consensualmente reconhecida como cientista. Em 2010 publicou o Exoplanet Atmospheres:Physical Processes, a bíblia dos processos atmosféricos de planetas fora do nosso sistema solar. Se bem que, agora, já haja dados espectroscópicos acerca da composição química das atmosferas de alguns desses planetas, os dados são mais recentes do que a maior parte do trabalho de Seager neste campo. Ela doutorou-se em 1999 com uma dissertação sobre atmosferas cuja composição ninguém conhecia. Ou seja, na acepção de Pigliucci – com a qual concordo inteiramente – a maior autoridade científica sobre atmosferas de planetas de outros sistemas solares é tão filósofa quanto cientista, pois o seu trabalho principal foi o de explorar o espaço conceptual de como pensar acerca da modelação dessas atmosferas. E se vos parecer estranho chamar a isto filosofia, pensem no que as pessoas diriam há uns séculos de quem especulasse sobre a atmosfera de planetas de outros sistemas solares*.

Isto é verdade por toda a ciência. A teoria da relatividade também resultou de Einstein ter explorado o espaço conceptual das formas de pensar acerca do espaço e do tempo antes ainda de ter dados concretos que fundamentassem a sua teoria. Em geral, antes de se poder testar empiricamente qualquer hipótese é preciso explorar o espaço conceptual onde a hipótese se encontra, esse tal espaço das formas de pensar acerca do problema. Portanto estou de acordo com Pigliucci. A filosofia é uma parte essencial da procura pelo conhecimento e da forma como compreendemos a realidade.

Mas também concordo com Tyson porque me parece que, infelizmente, para a maioria dos que se dizem filósofos e são reconhecidos como tal, a filosofia não é tanto uma exploração do espaço conceptual para além dos dados conhecidos mas mais uma desculpa para ignorar os dados que já se tem. Esta atitude pode ir de meramente ignorante a deliberadamente desonesta e está enraizada na cultura de muitos filósofos. Se alguém num departamento de filosofia quiser escrever uma tese sobre o tempo vão mandá-lo ler Platão, ou Agostinho, ou Heidegger ou o filósofo preferido do orientador. Mas será raro o filósofo que mande o orientando aprender matemática e estudar a teoria da relatividade ou mecânica quântica. Isso é ciência, não é filosofia, justificará o filósofo.

Este problema pode ser ilustrado com uma experiência conceptual, uma abordagem característica da filosofia. Vamos imaginar que 99% dos biólogos se dedicavam a escrever sobre os pântanos e as florestas húmidas de Vénus. Até meados do século XX era comum pensar-se que as nuvens de Vénus eram água e que Vénus era um planeta tropical húmido. Depois descobriu-se que a temperatura média de Vénus é de 420ºC e as nuvens são de ácido sulfúrico, mas vamos imaginar que a maioria dos biólogos descartava esses dados (“isso é física, não é biologia”, diriam), prosseguindo a tradição de escrever sobre pântanos e florestas em Vénus. Nestas circunstâncias, teria razão quem dissesse que a biologia era perda de tempo. Afinal, só uma pequena parte do que a disciplina produzisse teria interesse. Mas também teria razão quem dissesse que a biologia era uma parte importante da procura pelo conhecimento porque a biologia em si, tirando os 99% de trapalhice, seria à mesma legítima e útil.

A impressão que tenho do contacto com a filosofia, desde as aulas de mestrado ao que leio e discuto, é a de que a filosofia tem muito valor mas muitos filósofos abordam esta pesquisa pelo espaço conceptual da forma errada. Por um lado, porque não reconhecem a importância dos dados empíricos e da filosofia que se faz em ciência e agem como se fosse melhor explorar conceitos ignorando a realidade. Por exemplo, na filosofia da mente há muita gente séria que julga mais importante ler Husserl do que saber uma pontinha que seja de neurologia. Depois só lhes sai disparates. Por outro lado, esquartejam o espaço conceptual em coutadas estéreis de onde se recusam sair. É comum formarem cliques de fulanistas ou sicranélicos, cada um com a sua “tradição”, como se a filosofia fosse um clube de futebol ou uma religião. Entalam-se assim em preconceitos que impedem qualquer progresso. Por exemplo, andam há vinte séculos às voltas com o tal “problema do mal” que não é mais do que o problema de partirem de uma premissa falsa acerca da existência de certo deus.

A filosofia, enquanto pesquisa por um espaço conceptual, é fundamental para o progresso intelectual. Infelizmente, para muitos “filosofia” é apenas uma desculpa para inventar tretas sem ter de considerar os factos. Isto pode dar literatura com piada mas fica-se por aí.

* Admito que, além de dizerem que era filósofo, provavelmente diriam também que era herege e que tinha de morrer na fogueira. Mas o que me interessa aqui é a primeira parte, antes de vir a Inquisição.

1- Massimo Pigliucci, Neil deGrasse Tyson and the value of philosophy (via Facebook).
2- Wikipedia, Sara Seager.

domingo, maio 18, 2014

Treta da semana (passada): Diz que é uma espécie de activista.

Na semana passada fui expulso de um grupo no Facebook, o Rastos Químicos Portugal (1). Nunca descobri como lá fui calhar, durante muito tempo não comentei nada e já desconfiava que a primeira vez que opinasse fosse também a última. Mas como surgiu um comentário mais razoável (2), pedindo opiniões acerca dos artigos da COMCEPT sobre os “chemtrails”, não resisti. Quanto à expulsão em si não tenho nada a dizer. Os administradores do grupo têm o direito de bloquear o acesso a quem quiserem, por que razão seja. Mas achei interessante a implementação disto no Facebook. O grupo é “aberto”, o que quer dizer que qualquer pessoa com conta no Facebook pode participar, excepto quem é expulso. Isto permite divulgar publicamente textos e ideias ao mesmo tempo que se veda o acesso aos opositores*.

Segundo o Tiago Lopes (3), o moderador que me expulsou, eu estava a mais naquele grupo porque «esta página não é para falar de cristais de gelo» e «não ficas aqui a gozar com ninguém»(2). Esta última parte refere-se provavelmente à ironia com que comentei a alegação de um dos membros, segundo o qual o aquecimento global é uma conspiração. É mesmo irónico. Nem a discussão sobre o aquecimento global nem a causa apontada para esse aquecimento exigem qualquer conluio. Qualquer um pode opinar e basta que cada pessoa e nação continue a queima irresponsável de combustíveis fósseis para que o planeta aqueça. Não é preciso conspiração nenhuma. A tese dos activistas anti-chemtrails, pelo contrário, exige uma conspiração de âmbito, segredo e organização muito para além do que parece humanamente possível. Segundo o Tiago Lopes, «Centenas de aviões passaram por cima de Portugal a poluir a atmosfera com rastos que contêm alumínio, sulfato de bário e dezenas de outros químicos, a quantidade e a natureza dos químicos permite observa-los a partir de imagens de satélite por 3 horas e por vezes mais, isto seria impossível se os rastos fossem como o estabelecimento científico declara de cristais de gelo. Essa mentira faz parte da mentira totalitária com que mantêm a população estupidificada enquanto a adoecem para terem lucro com a sua miséria» (4).

Mas o mais interessante, e revelador, foi a reacção à possibilidade dos rastos serem cristais de gelo. Segundo o Tiago Lopes, «Se um avião lançasse partículas de gelo elas caiam muito rápido (o ar é mais rarefeito a essa altitude) e passavam rapidamente a liquido e depois evaporavam, nunca acontecia o que podemos observar, o céu a ficar todo branco.» Isto sugere que o auto proclamado activista dos fenómenos atmosféricos nem sequer sabe o que são as nuvens. É muito estranho que alguém tão interessado e empenhado num tema seja, ao mesmo tempo, tão ignorante acerca daquilo que supostamente lhe interessa.

Ou talvez não seja assim tão estranho. O activismo pode exigir muita coragem para denunciar os podres de organizações poderosas. Pessoas como Manning e Snowden, para escolher apenas dois exemplos recentes (5), merecem admiração pelo muito que sacrificaram quando expuseram verdadeiras conspirações. Mas esse heroísmo não é para todos. É preciso ser a pessoa certa na situação certa e tomar as decisões certas, o que é raro. A alternativa, mais fácil e corriqueira, é combater conspirações fictícias. Finge-se a bravura do activista de verdade mas sem correr grandes riscos. A denúncia da conspiração dos “chemtrails”, por exemplo, apenas arrisca o ridículo. Nem sequer é preciso saber muito sobre o assunto. Para imitar o activista sem ter de o ser basta isolar a audiência de qualquer indício de que os moinhos não são gigantes malvados. Daí a importância de deixar bem claro que as nuvens até podem ser de algodão doce mas «Não podem ser nunca cristais de gelo, como defende a comunidade científica!»(6).

* A menos que criem uma conta descartável.

1- Rastos Químicos Portugal (requer conta no Facebook).
2- Chemtrails Portugal, Post de 4/5 às 23:03
3- Facebook, Tiago Lopes
4- Chemtrails Portugal, Post de 18/5 às 10 horas.
5- Mais aqui: List of whistleblowers
6- Tiago Lopes, Post a 11/5

sexta-feira, maio 16, 2014

Ineficiências.

Há dias critiquei, mais uma vez, o mito de que o sector privado é mais eficiente do que o público apontando que também há muita ineficiência no sector privado. O leitor LL comentou que «Desculpar o "mau" do sector publico com o facto de o privado não ser perfeito parece-me ser uma grande falácia, dado que são coisas demasiado diferentes.»(1) Realmente, argumentar que uma coisa não é má por outra também o ser seria falacioso. Mas não é esse o meu argumento. O meu argumento é que o sector privado não é mais eficiente do que o público porque ambos são ineficientes e, para certas medidas razoáveis de eficiência, o privado é até menos eficiente do que o público. Não estou a desculpar a ineficiência do sector público mas apenas a discordar de que seja essa a maior.

O mercado livre é muito eficiente a informar os agentes acerca dos melhores negócios. Seja bolachas, armas, casas, massagens ou medicamentos, a forma mais eficiente de cada um descobrir com quem deve trocar o quê de forma a maximizar o seu ganho é todos serem livres de decidir por si. Se o sector privado for bem regulado, o mercado livre resultante é melhor do que qualquer planeamento central para optimizar as escolhas individuais. No entanto, além do defeito de só servir quem tenha riquezas para trocar, a optimização é local, resultando de cada agente escolher o melhor para si dentro daquilo que individualmente pode fazer. Isto não é necessariamente bom para todos. Por exemplo, se o dono da fábrica de torradeiras consegue um euro extra por torradeira usando um método poluente de fabrico, vai poluir e os outros que se lixem. Além dos problemas éticos, isto até será economicamente ineficiente, no cômputo geral, quando os custos impostos a terceiros ultrapassarem a poupança na produção das torradeiras.

Este problema não se restringe a externalidades negativas. O sector privado também não consegue aproveitar externalidades positivas, muito comuns e valiosas. Quem anda de carro, ou simplesmente quem respira, também beneficia do metro, comboio e autocarro pelas centenas de milhares de carros que esses transportes retiram das estradas. Quem está saudável ou vai a clínicas privadas também beneficia de um sistema de saúde que trate doenças contagiosas aos pobres, dado o notório desrespeito dos germes pela classe económica do hospedeiro. Mesmo quando estas externalidades têm grande valor económico o sector privado não consegue aproveitá-las porque estes benefícios não são escassos. Uma empresa privada de transportes não consegue cobrar aos automobilistas o serviço de retirar automóveis das estradas nem uma clínica privada consegue cobrar aos clientes ricos as doenças que lhes previne tratando quem não pode pagar. Só pelos impostos é que se consegue estes benefícios e, se atribuirmos um valor monetário a tudo o que contribui para a nossa qualidade de vida, estou confiante que a maior parte do valor que calha a cada um vem deste tipo de externalidades e só uma pequena parte vem das transacções em que participa directamente.

Outra fonte de ineficiência no sector privado é o mecanismo que torna alguns agentes economicamente eficientes. Cada café, restaurante, fábrica ou agência de viagens em actividade tende a ser economicamente eficiente porque um grande número de concorrentes que não era acabou na falência. Quando olhamos para os casos de sucesso vemos grande eficiência. Mas se incluirmos nos cálculos o desperdício dos milhares de falências anuais o resultado final é mais modesto.

Mas o mais importante nesta discussão acerca da eficiência relativa do sector público e privado é perceber que mesmo a eficiência económica estreita e localizada do mercado livre só é possível quando o sector privado está sob o controlo de um sector público forte. Podem dizer que é ineficiente mas é absolutamente necessário. É preciso imensa infraestrutura e regulação para garantir que cada agente no mercado pode tomar decisões livres e informadas. É preciso impedir coação e burlas, é preciso punir de forma justa quem violar contratos, seja pobre ou rico, é preciso garantir simetria de informação nas transacções e uma data de outras coisas sem as quais o sector privado passa de mercado livre a assalto à mão armada. É principalmente aqui que se nota o erro desta narrativa do Estado inchado, ineficiente e com gorduras que se tem de cortar para melhorar a economia. Nós temos Estado a menos, não a mais, como é evidente pela facilidade crescente com que os ricos privados se apoderam do bem público.

As medidas que têm tomado para aproximar o sector público do sector privado, em nome da eficiência, têm essencialmente dois efeitos. Por um lado, a degradação do sector público elimina preciosas externalidades positivas, resultando imediatamente num fraco retorno pelo esforço – a poupança efectiva é apenas um terço da austeridade imposta (2) – e em prejuízos que se sentirão durante muitos anos na saúde, na educação e qualidade da força laboral, no aumento da criminalidade e do crédito mal parado, entre outros. Por outro lado, as alterações na administração pública, as privatizações, as PPP e a desregulação de actividades privadas tornam o mercado livre cada vez menos livre e mais controlado pelos ricos.

Há ineficiências tanto no sector público como no privado. Mas enquanto o sector privado é muito ineficiente nas tarefas importantes de garantir uma sociedade justa, permitir a participação de todos num mercado livre e optimizar as externalidades, a maioria das ineficiências que apontam ao sector público são necessárias para proteger a sociedade da corrupção e possibilitar um sector privado saudável. A burocracia ineficiente do Estado é a única coisa que impede que o dinheiro tome conta de tudo. Sem um sector público forte a mão invisível deixa de beneficiar a maioria e passa a servir só para os ricos coçarem as costas aos amigos. Como, aliás, se vê cada vez mais, das prescrições às nacionalizações e até à defesa dos direitos adquiridos de quem tem casas na praia enquanto se sacrifica os direitos dos pensionistas (3).

1- Austeridade, parte 4: pagar o sector público. 2- Notícias ao Minuto, Por cada 3 euros de austeridade apenas 1 euro foi abatido ao défice
3- Notícias aos Minuto, Freitas do Amaral "Nova lei pode levar à privatização das praias",

domingo, maio 11, 2014

Treta da semana (passada): Olavo de Carvalho.

De vez em quando, acusam-me de desprezar a filosofia. É falso. Eu acho que a filosofia é uma disciplina importante e uma peça crucial na procura de conhecimento. Não se consegue esclarecer nada sem pensar com clareza, especificar bem os termos e encontrar as distinções relevantes. Mas prezar a filosofia não é o mesmo que prezar tudo o que se diz ser filosofia. Há umas semanas, partilharam comigo este vídeo de um defensor do cristianismo, conservador, e alegado filósofo Olavo de Carvalho (1). Contornando a forma como o argumento é apresentado, ignorando uma série de disparates e reduzindo-o ao essencial, Carvalho propõe que é mais fácil acreditar que Jesus foi mesmo a encarnação terrena do criador do universo porque o que está relatado nos evangelhos é um facto.



Mas talvez estivesse num dia mau quando gravaram este vídeo e não é justo julgá-lo apenas pelo que aparentou ser nesse episódio menos feliz da sua carreira filosófica. Por isso, fui procurar outros exemplos. Textos escritos, onde a prosa é mais ponderada e se evita o “cêtáentenden?” a cada três palavras. Por exemplo, criticando ateus como Dawkins e Dennett, Carvalho afirma que «você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência»(2). Há aqui um erro categórico fundamental que qualquer respeitador da filosofia deveria evitar. Não se discute o objecto nem se define o objecto. O que se define é um conceito e o que se discute é a hipótese desse conceito corresponder a algum aspecto da realidade. Parece uma distinção desnecessária mas, em filosofia, estes detalhes são importantes.

Se seguíssemos a regra que Carvalho propõe, então ninguém poderia rejeitar a existência do “deus esparguete voador que existe”. Se alguém o fizesse estaria a discutir outra coisa que não este deus esparguete voador que, por definição, existe. Obviamente, essa regra é um disparate. Se percebermos que a definição não é do deus esparguete em si mas apenas de um conceito e que o que está em causa é a hipótese desse conceito corresponder a alguma coisa real, então é evidentemente legítimo rejeitar essa hipótese em favor da alternativa de que este conceito é meramente fictício e não corresponde a nada de real. Cêtaentenden? Passa-se o mesmo com as conversas acerca de qualquer outro deus. Carvalho defende que há um «Deus onipotente, onisciente e onipresente» que podemos conhecer «apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se pergunta por Ele.» Também aqui é legítimo, e não é «trocar de objeto e discutir outra coisa», considerar que esta alegação não corresponde à realidade por esse tal Deus ser apenas um personagem fictício de algumas histórias antigas. Carvalho alega também não se poder concluir que Deus não existe porque «Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa [...] que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano». Confunde novamente o que está em causa. O primeiro passo não é analisar esse Deus assumindo essa definição. Antes disso é preciso decidir se há alguma justificação para considerar que essa definição corresponde a alguma entidade real. Não há. Daí o ateísmo.

Noutro texto, Carvalho começa por alegar que «Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível.»(3) Na verdade, quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber duas coisas mais fundamentais. Primeiro, que a facilidade ou impossibilidade de demonstrar algo logicamente depende totalmente dos axiomas de onde se parte. E, em segundo lugar, que a demonstração lógica apenas garante a consistência formal com os axiomas escolhidos e não nos diz nada acerca da realidade. Por exemplo, se ignorarmos a viscosidade do ar e a turbulência, podemos demonstrar logicamente que é impossível uma abelha voar. Para a abelha, a conclusão é irrelevante.

Pela incapacidade de disfarçar estes erros crassos, suspeito que o Olavo de Carvalho não seja um filósofo muito conceituado fora do seu grupo de seguidores no Facebook. No entanto, estes erros de confundir a definição de um conceito com os atributos de algo real e de julgar que uma demonstração lógica garante que a conclusão corresponde à realidade estão na base de quase todos (se não todos) os argumentos em suporte da existência de Deus que passam por filosóficos. O desprezo que sinto e manifesto por esse tipo de argumentos não vem de qualquer desprezo pela filosofia. Pelo contrário. É precisamente o apreço que tenho pela filosofia que me torna avesso a tais imposturas.

1- O Olavo de Carvalho tem um curriculum variado. Alguns exemplos: «Colaborou no primeiro curso de extensão universitária em astrologia na PUC de São Paulo para os formandos em psicologia em 1979. Aproximadamente na mesma época, realizava consultas astrológicas e lecionou na Escola Júpiter, escola de astrologia em São Paulo que chegou a receber 140 alunos. […] Além da manutenção periódica da página pessoal com novos artigos e ensaios, Carvalho ministra, com certa frequência, cursos à distância de Filosofia». Mais em Olavo de Carvalho.
2- Olavo de Carvalho, O deus dos palpiteiros.
3- Olavo de Carvalho, A chacota geral do mundo

domingo, maio 04, 2014

Treta da semana (passada): três cabelos.

«Ensine-se aos fiéis que os veneráveis corpos dos santos Mártires e dos outros que vivem em Cristo devem ser venerados, por terem sido membros vivos de Cristo e templos do Espirito Santo (cfr. l Cor 3, 16; 6, 19; 2 Cor 6, 16), que serão por ele ressuscitados e glorificados para a vida eterna, pois Deus tem concedido muitos benefícios aos homens por sua intercessão.» (1)

Felizmente para a paróquia da Calheta, na Madeira, as relíquias dos santos são eficazes para a concessão de benefícios divinos mesmo em quantidades homeopáticas. Assim, estando agora oficialmente outorgada a santidade do senhor Karol Józef Wojtyła, Deus já pode enviar os seus poderes mágicos pelos três cabelos que o santificado Papa tão generosamente doou à Igreja do Atouguia (2).

Tendo em conta que estes três cabelos são as únicas relíquias do Papa João Paulo II em Portugal, eu sugeria que os repartissem pelo menos por três paróquias, triplicando assim o número de potenciais beneficiários dos poderes milagrogénicos da santa queratina. Pelo menos até que a Igreja em Portugal consiga obter mais umas aparas de unhas, pestanas ou outros vestígios do santo padre, que possam ser usados para a canalização da vontade divina. É que está matematicamente comprovado, pela existência de um elemento neutro na multiplicação, que os pedidos de intervenção divina dirigidos a restos orgânicos de católicos santificados são várias vezes mais eficientes do que orações equivalentes dirigidas directamente a Deus.

1- CONCÍLIO ECUMÊNICO DE TRENTO (985).
2- DN, Três cabelos brancos de João Paulo II na Madeira

sábado, maio 03, 2014

Austeridade, parte 4: pagar o sector público.

Subjacente às justificações para a austeridade tem estado a ideia de que o sector privado produz riqueza que depois o sector público gasta e, não havendo dinheiro, é essa despesa que temos de cortar. Nomeadamente, pensões, hospitais, escolas e luxos desses, deixando apenas o essencial como submarinos, a nacionalização de bancos falidos e os contratos de associação com colégios privados. Além das aldrabices do governo no alegado “corte de gorduras”, o princípio em si está fundamentalmente errado.

Se por “riqueza” nos referirmos à criação de bens ou serviços úteis, o sector público é tão ou mais produtivo que o sector privado. Podem alegar ser ineficiente manter centros de saúde ou escolas em regiões com pouca população, ou que os funcionários públicos trabalham pouco, mas no sector privado também se faz muita coisa inútil. Imaginem o transtorno que seria uma semana de greve dos vendedores porta-a-porta, dos consultores de imagem, de barbeiros, designers de moda, cantores pimba ou futebolistas. Mesmo olhando apenas para circulação de dinheiro, é preciso frisar que todo o dinheiro gasto pelo sector público vai para o sector privado. A propaganda que pinta o sector público como um parasita da economia privada é falsa. A forma mais correcta de ver a relação entre estes dois lados da economia é pensando na circulação do dinheiro como um incentivo ao trabalho e na diferença entre o sector público e o privado como estando apenas no nível em que é decidido como este incentivo é usado. No sector privado, o indivíduo que tem dinheiro incentiva o trabalho que lhe der jeito. No sector público – a menos de tachos e aldrabices – o dinheiro é posto a circular para benefício de quem precisa em vez de quem tem. Mas como o dinheiro circula por todo o lado e a economia funciona como um todo é enganador pensar no corte de uma parte como uma “poupança”.

Resta, no entanto, o problema de como o sector público pode obter dinheiro para incentivar o serviço público. Pode fazê-lo por três vias: cobrando impostos; pedindo empréstimos a investidores privados; ou criando dinheiro. Uma diferença fundamental entre o sector público e o privado é que todo o dinheiro que existe é criado no sector público. No caso do Euro, os políticos decidiram que o BCE só pode emprestar o dinheiro que inventa aos bancos privados, mas esta opção de não fazer esse dinheiro circular primeiro por hospitais ou escolas continua a ser uma opção política. Basta haver vontade para que o BCE se torne um credor de último recurso dos Estados da UE, como é norma em qualquer banco central.

Se bem que seja má ideia o Estado criar todo dinheiro de que precisa e dispensar empréstimos e impostos, é importante perceber porquê. É má ideia porque se a quantidade de dinheiro crescer mais depressa do que cresce a produção de bens e serviços o dinheiro passa a valer cada vez menos. É a inflação, uma coisa boa em quantidades moderadas – o BCE tem como mandato mantê-la próximo dos 2% ao ano, ou seja, de criar dinheiro apenas 2% mais depressa do que cresce a economia – mas que pode ser um problema se for excessiva. E é importante perceber porque é que a criação de dinheiro não é uma solução mágica para todos os problemas para compreender que, em rigor, os impostos e a dívida pública não servem para financiar o Estado. O Estado podia financiar-se criando dinheiro. A função dos impostos e da dívida pública é apenas a de controlar a inflação retirando dinheiro à economia privada para compensar o dinheiro que o Estado lhe acrescenta com a despesa pública. Ou seja, servem para manter o valor do dinheiro. Perceber isto é fundamental para compreender os interesses por trás da austeridade.

As contas públicas dependem da combinação de quatro factores: a despesa do Estado, os impostos, a dívida pública e a inflação. Reduzir a despesa do Estado prejudica principalmente quem tem menos, não só directamente por diminuir a redistribuição nas prestações sociais mas também indirectamente pelo aumento do desemprego e consequente redução dos salários. O aumento dos impostos tanto pode afectar mais os ricos ou os remediados conforme forem impostos progressivos ou não. O aumento da dívida geralmente favorece os ricos, a menos que haja grandes reestruturações e se passe o risco a quem cobrou por ele. A inflação é a única medida que claramente prejudica mais quem tem muito dinheiro do que quem vive do seu trabalho, porque quando os preços sobem o preço do trabalho também sobe. Só o dinheiro em caixa e as dívidas é que desvalorizam.

Quando percebemos que, a nível europeu, há uma margem considerável para ajustar o peso relativo destes quatro mecanismos compreendemos como as medidas que estão a ser tomadas estão enviesadas para favorecer quem mais tem. Temos austeridade, temos aumentos no IVA enquanto se negoceia reduções no IRC, temos aumento da dívida pública que ninguém quer reestruturar e continua a haver um controlo apertado sobre a inflação mesmo contra a recomendação do FMI (1). Em vez de se tentar dividir o esforço de forma equitativa, com a aldrabice de que “não há dinheiro” vão sacrificando quem tem menos em benefício de quem já tem tudo. A austeridade não é um mal inevitável. Não é sequer um mal menor. É uma burla.

1- Krugman, Euphemistic At The IMF



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