domingo, fevereiro 23, 2014

Treta da semana (passada): os argumentos.

Numa entrevista no New York Times, o famoso filósofo e apologista católico Alvin Plantinga argumentou que o ateísmo é irracional e que a explicação para 62% dos filósofos serem ateus é ser psicologicamente difícil aceitarem que Deus existe (1). Mas não explicou porque é que esta alegada limitação psicológica haveria de afectar mais os filósofos do que, por exemplo, os analfabetos, e a pobreza os seus argumentos são uma desilusão, vindos de alguém tão citado pelos católicos.

Primeiro, argumenta que a ausência de evidências para a existência do deus dos católicos só justificaria o agnosticismo e nunca o ateísmo. Quando o entrevistador menciona o bule de Russel, um hipotético bule de loiça a orbitar o Sol entre a Terra e Marte que concluímos não existir mesmo sem podermos prová-lo (2), Plantinga alega que isso é diferente por termos evidências da inexistência do bule: «tanto quanto se saiba, a única forma de pôr um bule nessa órbita seria se algum país com capacidades para tal a lançasse para lá. Mas nenhum país com essas capacidades iria desperdiçar recursos em tal coisa. Além disso, se algum o fizesse apareceria nas notícias e saberíamos que o tinha feito». Este argumento não serve porque, ao contrário do que Plantinga alega, ele invoca precisamente a falta de evidências para rejeitar a existência desse bule. Assume que o bule só pode estar em órbita se algum país o lançar porque não tem evidências de haver outras formas de o colocar lá, como por magia, milagre ou intervenção de extraterrestres. Assume que nenhum país o faria porque não tem evidências de que o faça e que seria tema de notícia porque não tem evidências de haver alguma conspiração secreta para pôr bules em órbita. Inexistência de evidências para algo e evidências da inexistência de algo não são duas coisas independentes e completamente distintas como Plantinga quer fazer parecer.

Outro exemplo de Plantinga torna isto mais claro: «falta de evidências […] não justifica o ateísmo. Ninguém acha que há evidências para a proposição de que o número de estrelas é par; mas também ninguém pensa que daí se conclui que o número de estrelas é ímpar». Neste caso, o agnosticismo é realmente a posição mais justificável. Mas vamos supor que a proposição em causa era outra. Por exemplo, que o número de estrelas é múltiplo de dez. Nesse caso já teríamos de ter em conta que há nove vezes mais possibilidades de não ser múltiplo de dez do que de ser. Se a proposição for de que o número de estrelas é múltiplo de cem, de mil ou de dez mil, a justificação para a rejeitar como falsa é cada vez mais forte, e cada vez menos razoável será ficar indeciso. Se alguém alegar, por exemplo, que o número de estrelas do universo é um múltiplo de 166221987090122196, é perfeitamente razoável rejeitar a alegação simplesmente por não haver evidências suficientes para compensar a sua inverosimilhança a priori.

É este o problema das alegações acerca da existência de algo. Afirmar que algo existe é afirmar como verdadeiras todas as proposições que descrevem as suas alegadas propriedades. Por exemplo, afirmar que o deus católico existe é afirmar que criou o universo, é inteligente, é bondoso, é omnipotente, é pai, filho e espírito santo, morreu por nós, nasceu de Maria, transubstancia hóstias e uma data de outras proposições que têm de ser verdadeiras para ser verdade a proposição de que esse deus existe. Esta conjunção é tão inverosímil à partida que só com evidências muito fortes a seu favor se justificaria sequer o agnosticismo. O bule de Russel, ao qual basta apenas ser bule e estar entre a Terra e Marte, é muito mais verosímil do que qualquer deus de qualquer religião que eu conheça e ninguém duvida da sua inexistência.

Plantinga alega também que o facto de não ser preciso invocar qualquer deus para explicar seja o que for é uma fraca justificação para o ateísmo: «Também não precisamos da Lua para explicar os lunáticos mas não se pode concluir daí que se deva crer que a Lua não existe». Por outro lado, defende que a melhor razão para crer no deus dos católicos é a experiência religiosa. Ou seja, não se trata de acreditar que Deus existe por isto explicar algo mas porque o crente sente que esse deus existe. Há tempos escrevi sobre os problemas de assentar as crenças religiosas numa alegada sensação. Não há consenso, as sensações são pouco fiáveis e nunca uma sensação pode dar o detalhe necessário para fundamentar os dogmas das religiões (3). Mas este argumento de Plantinga mostra outro problema. Nós acreditamos que a Lua existe porque vemos facilmente uma bola grande brilhante no céu à noite. Essa visão é uma experiência imediata, mas a hipótese da existência da Lua não é a mera experiência de a ver; é a melhor explicação para a causa dessa experiência. E de muitas outras coisas, desde as filmagens das missões Apollo até às marés. Isto é verdade para qualquer hipótese acerca do que sentimos: justifica-se crer na hipótese se for a melhor explicação para essa sensação. Também assim, mesmo que alguém creia em Deus porque sente que Deus existe, essa crença é justificada apenas como hipótese explicativa para essa sensação. Por isso, uma boa justificação para o ateísmo, entre outras, é que as sensações dos crentes podem ser melhor explicadas por factores corriqueiros da psicologia e sociologia do que invocando a existência de deuses omnipotentes, criadores do universo e transubstanciadores de hóstias.

Depois de ler os argumentos de Plantinga, parece-me que o que carece explicação não é que 62% dos filósofos sejam ateus. É haver 38% que ainda não admitiram ter percebido que estas coisas dos deuses são todas uma treta.

Errata: O Plantinga não é católico (obrigado pela chamada de atenção). Por isso não deve estar a argumentar a favor do catolicismo. Ainda assim, é interessante apontar que tanto faz, porque os argumentos dele servem igualmente bem para quase todas as religiões.

1- NY Times, Is atheism irrational?. Recomendo também esta resposta do Massimo Pigliucci: Is Alvin Plantinga for real? Alas, it appears so (via Facebook)
2- Wikipedia, Russell's teapot
3-Sentir (aquele) deus.

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Democracia SARL: Parte 1, desigualdade.

Numa troca de posts entre o Henrique Monteiro e o Pedro Abrunhosa, o Pedro alegou que «as democracias ocidentais sucumbiram a outras forças maiores que transformaram os avanços civilizacionais do pós-guerra, para todos, em propriedade de muito poucos: o capital, o lucro, a ganância»(1), ao que o Henrique contrapôs que «nunca houve tanta democracia e participação popular no conjunto dos países do mundo», que «há menos pobreza do que em qualquer outra época» e que isto «deve-se - apesar dos arroubos de Abrunhosa - ao capital, aos mercados, à circulação, à mobilidade»(2). Mais tarde, voltou a frisar que «a pobreza tem diminuído» e acrescentou que «a própria desigualdade no mundo (sublinho no mundo) tem vindo a diminuir»(3). Apesar de não me agradar a retórica do Pedro Abrunhosa, é ao Henrique que gostaria de apontar alguns erros e omissões que, se corrigidos, revelam que as coisas não estão assim tão bem. Vou dividir isto em duas partes. Esta é sobre a ideia de que estamos melhor porque há menos pobreza e menos desigualdade.

Depois de ter aumentado constantemente desde, pelo menos, o século XIX até 2002, o coeficiente de Gini do mundo tem vindo a diminuir ligeiramente na última década (4). É com base nisto que o Henrique afirma que desigualdade tem diminuído. Um erro aqui é o de confundir o coeficiente de Gini com desigualdade. Este valor é um indicador útil por ser objectivo e não depender dos rendimentos totais, mas não corresponde exactamente ao conceito de igualdade. O próprio Henrique, inadvertidamente, demonstra isso quando dá um exemplo de como a pobreza pode diminuir mesmo quando a desigualdade aumenta. «Imaginemos que a pessoa A ganha mil e B ganha 10. Se a B passar a ganhar 20 (aumento de 100%) e a A 1500 (aumento de 50%), apesar de a B ter sido mais aumentada em percentagem, a desigualdade aumentou brutalmente, porque passou de uma diferença de 990 para 1480». É intuitivo que se damos 500 ao mais rico e 10 ao mais pobre estamos a agravar a desigualdade. No entanto, o coeficiente de Gini é ligeiramente menor no segundo caso* porque o mais pobre passou a ter uma percentagem maior da riqueza total. Um exemplo extremo será o de uma aldeia onde só uma pessoa tem dinheiro. Quer essa pessoa tenha 1€ quer tenha um milhão de euros, o coeficiente de Gini será o mesmo (aproximadamente 1). No entanto, intuitivamente a desigualdade é muito menor quando a única pessoa que tem dinheiro apenas tem um euro do que quando tem um milhão. Apesar do coeficiente de Gini ter diminuído ligeiramente na última década, e precisamente porque a riqueza total aumentou muito, não podemos dizer que a desigualdade tenha diminuído. Como mostra o exemplo do Henrique, até pode ter aumentado.

Quanto à tese de que as coisas estão melhores porque a pobreza absoluta está a diminuir, é preciso distinguir dois tipos de problemas. Vamos supor que temos sete mil milhões de pessoas e mil milhões passam fome porque só há comida para alimentar seis mil milhões de pessoas. É uma tragédia mas não há nada a fazer. Não conseguimos semear batatas em Marte e, se não há comida que chegue, vai haver fome. Mas vamos supor que há comida que chegue para todos, que a comida até sobra e se desperdiça (5), mas que, ainda assim, 800 milhões de pessoas passam fome (6). Boa, dirá o Henrique, são menos 200 milhões a passar fome. Mas a tese de que as coisas melhoram ignora que a situação deixa de ser uma tragédia inevitável para se tornar num problema político e social grave. A injustiça e a responsabilidade política não se encontram na diferença entre como as coisas estavam e como estão mas na diferença entre como as coisas estão e como poderiam estar, e nesse aspecto o problema tem se agravado muito. Quanto mais riqueza há no total menos desculpável é que se permita tanto sofrimento apenas por má redistribuição dos recursos.

Um exemplo disto é o resultado de se permitir a participação de fundos de investimento especulativo no mercado de contratos futuros de bens alimentares. Até 1999, este mercado estava fortemente regulado e só empresas com interesse real naqueles bens podiam participar. Mas, graças ao lobbying de grandes grupos financeiros, o mercado foi aberto a fundos de investimento que, por terem muito mais capital disponível, rapidamente inflacionaram os preços para lucrar com a especulação. Entre 2003 e 2011 o investimento anual em contratos derivativos na agricultura aumentou de 3 mil milhões de dólares para 126 mil milhões de dólares (7). Se bem que alguns chamem a isto “criação de riqueza”, o resultado foi que, mesmo descontando a inflação, o preço dos alimentos para o comprador final mais do que duplicou nesta década (8).

Um argumento forte contra a redistribuição é o de que a redução no incentivo para gerar riqueza faz diminuir o tamanho total do bolo. Se não há que chegue para todos, então tentar redistribuir pode agravar o problema. Mas se esse argumento é forte quando os recursos são insuficientes, torna-se tão mais fraco quanto maior for o bolo. Quando 0.7% da população mundial detém quase metade da riqueza total (9) enquanto 12% passa fome estamos claramente fora dessa situação em que o limite era o tamanho do bolo. Assim já compensa redistribuir mesmo à custa do crescimento total. Por exemplo, é evidente que compensa regular os contratos derivativos de bens alimentares para tirar dezenas ou centenas de milhões de pessoas da fome à custa do lucro de alguns bancos e de uma pequena redução no PIB global. Mesmo que se perca “riqueza”, o que não é certo, ganha-se muito mais em troca. Porque é que, com tanta democracia, este tipo de coisas não acontece? Porque, ao contrário do que o Henrique Monteiro defende, a democracia moderna guia-se mais pelo dinheiro do que pelos votos. Mas isso fica para a segunda parte.

*Segundo as minhas contas, 0.829 contra 0.830.

1- Expresso, Pedro Abrunhosa reage a texto de Henrique Monteiro
2- Expresso, Henrique Monteiro responde a Abrunhosa
3- Expresso, O paradoxo da diminuição da pobreza
4- Wikipedia, Gini Coefficient
5- Wikipedia, Food Waste
6- World Hunger, 2013 World Hunger and Poverty Facts and Statistics
7- New Internationalist, The food rush
8- The Independent, Goldman bankers get rich betting on food prices as millions starve
9- Guardian, The world's wealthy: where on earth are the richest 1%?

domingo, fevereiro 09, 2014

Treta da semana: a ameaça.

Segundo um artigo que o Mats traduziu, os ateus deviam batalhar mais pelo fim da ciência do que pelo fim das religiões porque «a ciência é que representa uma ameaça para a Humanidade, e é a ciência que actualmente está a causar imensas casualidades [casualties, presumo] por todo o mundo»(1). O argumento parte da premissa de que «o pior crime religioso de toda a Idade Média foi massacre do Dia de São Bartolomeu onde o Rei Carlos da França ordenou a matança de cerca de 10,000 Huguenotes.» Fica implícito que este massacre de 1572 tenha representado o pior que as religiões fizeram até hoje. Contrasta então isto com as «consequências de um único caso de “má-conduta na pesquisa”: […] ao seguirem directrizes estabelecidas, médicos do Reino Unido podem ter causado até 10,000 mortes por ano [… e …] até 800,000 mortes na Europa, só nos últimos 5 anos.»

Os factos do caso não são triviais. As directrizes referidas recomendavam a administração de bloqueadores beta-adrenérgicos (BBA) em algumas cirurgias. Estas drogas bloqueiam receptores da noradrenalina e servem para controlar problemas de arritmia cardíaca e hipertensão, por isso foram consideradas potencialmente úteis para proteger o coração do stress operatório. Com base nos resultados de sete ensaios clínicos e várias meta-análises, a Sociedade Europeia de Cardiologia recomendou os BBA para pacientes sujeitos a cirurgias de alto risco ou com problemas cardíacos, com uma recomendação fraca para cirurgias de risco médio (2). Entretanto, Don Poldermans, o coordenador do grupo de trabalho que elaborou a recomendação e responsável por um dos estudos nos quais a recomendação se baseou, foi condenado por falsificação de dados (3). Naturalmente, a recomendação foi questionada. Uma meta-análise considerando apenas os estudos que não foram postos em causa pela fraude de Poldermans sugere que a administração de BBA em cirurgias não cardíacas aumenta 27% a mortalidade global, devida a todas as causas (4). No entanto, este efeito já era evidente nos estudos citados pela recomendação (2) e os benefícios dos BBA pareciam ser principalmente na mortalidade por problemas cardiovasculares. Foi por isso que a recomendação focou principalmente os doentes com problemas cardíacos ou operações de alto risco. É evidente que este uso de BBA tem de ser reavaliado – entretanto, as recomendações foram revogadas (5) – mas aquela estimativa do número de mortes é muito especulativa.

Mas vamos supor que o Mats e as suas fontes têm razão e que a administração de BBA nestas cirurgias está mesmo a causar 10,000 mortes desnecessárias por ano no Reino Unido, e algumas 100,000 no resto da Europa. O número de 10,000 mortes no Reino Unido é estimado assumindo que os BBA aumentam a mortalidade pós-operatória em 27% e que são administrados em todas as 2.5 milhões de cirurgias anuais que, no Reino Unido, se enquadram nos parâmetros das recomendações. Como o número total de mortes no período pós-operatório é de 47 mil por ano, isto dá cerca de dez mil por causa dos BBA (4). Mas o Mats e companhia defendem que o problema é a ciência e não apenas o uso preventivo de BBA nestas cirurgias: «a ciência é que representa uma ameaça para a Humanidade». Isto é mais difícil de justificar porque mesmo que administrar BBA nestes dois milhões e meio de cirurgias mate dez mil pessoas por ano, é pouco plausível que esses dois milhões e meio de pessoas que precisaram de cirurgias de médio ou alto risco tivessem ficado melhor sem ciência. Mesmo imperfeita, a ciência parece ser bastante melhor para tratar doenças do que qualquer coisa que as religiões possam oferecer.

Também é relevante apontar que é pela ciência que se vai decidir se é melhor usar os BBA e em que circunstâncias. Não adianta procurar a resposta em livros sagrados nem perguntar a gurus, sacerdotes ou líderes espirituais. Tem de se fazer os ensaios clínicos.

Mas o mais curioso, e irónico, é este comentário final do Mats. «A ciência moderna pode ser perigosa para a Humanidade não porque haja algo de errado com os testes, as experiências e as revisões por pares, mas sim porque grande parte dessa mesma ciência é feita por pessoas que realmente acreditam que os cientistas são a classe elitista da sociedade, e a ciência está maioritariamente certa, e como tal os cientistas não têm que se justificar a ninguém, e nem sofrer as consequências das suas “más-condutas”»(1). Todo este caso foi despoletado porque houve suspeitas acerca da conduta do Don Poldermans, houve um inquérito detalhado aos ensaios clínicos que ele tinha coordenado e, além de ele ter sido demitido, todas as conclusões que dependiam daqueles resultados irão ser revistas. A razão pela qual se apanham estas aldrabices em ciência é precisamente porque todos exigem justificação para todas as alegações e quanto mais importantes forem maior será o escrutínio. Não é entre os cientistas que o Mats vai encontrar os que se julgam detentores da verdade revelada e que têm, sem mais justificação do que a sua fé, certezas tão definitivas que excluem sequer a possibilidade de alguma vez os refutarem.

A ciência permite-nos compreender a realidade, o que nos dá muito mais poder do que os mitos e fábulas que os nossos antepassados inventaram. É verdade que, com esse poder, o impacto das nossas decisões, boas ou más, é maior do que quando a solução para tudo era pedir favores a amigos imaginários. Mas a ameaça, como este exemplo do Mats ilustra, não é a ciência. Pelo contrário. A ciência é a melhor forma de encontrar as decisões certas e evitar as erradas. A maior ameaça vem daqueles que, tendo também acesso a este poder, escolhem irresponsavelmente manter-se ignorantes de tudo o que contradiga a sua fé.

1- Mats, É a ciência moderna mais perigosa que a religião?, do original de Theodore Beale, Science is more dangerous than religion
2- Poldermans et al, Guidelines for pre-operative cardiac risk assessment and perioperative cardiac management in non-cardiac surgery, Eur Heart J (2009) 30 (22):2769-2812.
3- Wikipedia, Don Poldermans
4- Bouri et al., Meta-analysis of secure randomised controlled trials of β-blockade to prevent perioperative death in non-cardiac surgery., Heart. 2013 Jul 31
5- European Society of Cardiology, ‘Guidelines : Pre-operative Cardiac Risk Assessment and Perioperative Cardiac Management in Non-Cardiac Surgery’, Eur Heart J (2013) 34 (44): 3460

sábado, fevereiro 08, 2014

Remuneração.

Quando comecei a discutir copyright nas internets, a justificação mais frequente para estas leis era a de que o direito exclusivo de cópia seria um direito de propriedade. Não sei se por cansaço ou esclarecimento, esta justificação foi-se tornando menos comum e foi sendo substituída pela tese de que o direito à remuneração é que justifica o monopólio sobre a cópia. Ou, nas palavras do Miguel Sousa Tavares, «Eu não ando anos e anos a fio a escrever livros para depois os ver distribuídos livremente em PDF»(1). O problema fundamental desta tese é que uma escolha individual não obriga terceiros a remunerar o autor e ainda menos justifica privá-los dos seus direitos. Mas antes de chegar ao fundamental queria apontar duas diferenças importantes entre o copyright e as leis que regulam a remuneração.

O Miguel Sousa Tavares apresentou uma queixa-crime contra a Margarida Martins por ter enviado um email com digitalizações de livros que o Miguel publicou. A primeira diferença entre isto e o direito legal à remuneração é ser uma queixa-crime. Se a Margarida tivesse encomendado um serviço ao Miguel e não lhe tivesse pago o processo seria civil e não criminal. Uma empresa até pode declarar falência e deixar centenas de trabalhadores com meses de ordenado em atraso sem haver qualquer crime. A outra diferença é a de que o copyright envolve a Margarida e outros dez milhões de portugueses sem que estes tenham celebrado qualquer contrato com o Miguel. Mesmo ignorando os aspectos éticos, é muito estranho haver uma obrigação legal de remunerar alguém sem qualquer acordo prévio. Há quem justifique isto alegando que gostar dos livros do Miguel, por si só, já cria a obrigação de o remunerar. Mas além de isso ser também inédito na lei, o copyright não faz distinção entre quem gosta e quem não gosta. Simplesmente proíbe a cópia e pronto.

Justificar o copyright dos livros do Miguel pelo direito à remuneração é dizer que cada um de nós tem uma responsabilidade tão grande de zelar pela remuneração do Miguel que até responderá criminalmente se, por exemplo, enviar um email com um PDF em anexo. Em contraste, as leis que regulam a remuneração e outras relações comerciais estão no âmbito do direito civil e apenas obrigam quem participar voluntariamente nessas relações. Esta diferença é tão grande que mesmo que houvesse algum dever de remunerar o Miguel Sousa Tavares pelo lindo trabalho que ele fez não se justificava dar-lhe o poder de proibir toda a gente de copiar. No máximo, merecia os mesmos direitos legais de um trabalhador com o ordenado em atraso.

O problema fundamental do copyright é que as restrições que impõe a toda a gente vão muito além das obrigações que essas pessoas possam ter para com o autor. Por isso, não se pode justificar por um direito à remuneração. Na verdade, o copyright nem sequer dá ao autor qualquer garantia de remuneração pelo seu trabalho ou pelo mérito da sua obra. Para ser remunerado, o autor tem de encontrar quem esteja disposto a pagar-lhe, como acontece com os inúmeros trabalhadores cujo trabalho não está abrangido por esta legislação. A diferença é que, com o copyright, em vez de ser remunerado pelo seu trabalho o autor é remunerado pelo poder legal de proibir terceiros de copiar a obra publicada. Superficialmente, isto pode parecer análogo à diferença ente o músico ser pago para tocar numa festa ou cobrar bilhetes para poderem assistir ao seu concerto, mas esta aparência esconde uma diferença fundamental. O copyright não é apenas outro modelo de negócio. É uma lei, e invulgarmente intrusiva.

Os vários modelos de negócio pelos quais uma pessoa pode obter remuneração pelo seu trabalho assentam em leis genéricas que se aplicam a todos. A obrigação de cumprir contratos, direitos de propriedade sobre equipamento e espaços e assim por diante. Sobre este suporte legal, todos são livres de decidir como procurar remuneração. Se um escritor dá um orçamento para escrever um livro e assina um contrato pode ser remunerado como qualquer outro prestador de serviço. Se um músico aluga uma sala e cobra bilhetes para assistirem ao concerto não precisa de invocar direitos especiais de músico; seria o mesmo se organizasse uma jantarada ou um curso de macramé. Mas se quer dar o concerto na rua e incomoda-o que pessoas assistam à janela sem pagar bilhete, azar dele. Seria impensável criar uma lei que proibisse as pessoas de ir à janela nas noites de concerto só para o músico vender mais bilhetes. Pois o copyright que temos hoje é essa lei impensável e é isso que carece de justificação.

O direito à remuneração resulta de um acordo voluntário entre a parte titular desse direito e a parte que se compromete a remunerar, haja ou não copyright. Esse direito já está garantido pela legislação que regula coisas como prestação de serviços, contratos e dívidas. O que o copyright traz de diferente é a criminalização da cópia. O que está aqui em causa não é o direito dos autores negociarem a sua remuneração mas sim a legitimidade de proibir toda a gente de copiar ficheiros ou enviar emails com PDF (ou de ir à janela durante o concerto). O copyright não regula o direito à remuneração. Serve apenas para coagir pagamentos da parte de quem não deve nada ao autor e isso não se pode justificar pelo direito à remuneração.

Concordo que o Miguel tem todo o direito de não andar «a escrever livros para depois os ver distribuídos livremente em PDF». Mas é o direito de ele escolher se escreve ou não escreve e se publica ou não publica. A decisão voluntária e unilateral do Miguel publicar os seus livros não lhe dá o direito de mandar nas casas, computadores ou emails dos outros nem de coagir ninguém a pagar-lhe.

1- DN, "O que ela fez é crime", diz Miguel Sousa Tavares

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Confusões.

O Vítor Cunha faz umas alegações de onde conclui que os ateus que se associam são “maluquinhos”. O texto é desconexo e não se percebe o raciocínio, se algum teve por trás, mas é um apanhado conveniente de disparates e aproveito para agradecer o trabalho que o Vítor teve a compilá-los. Vou seguir a ordem do texto, se bem que seja praticamente indiferente.

O Vítor alega que é paradoxal e irónico que os ateus formem associações «pela colectivização de noções individuais», transformando «os movimentos ateístas em movimentos religiosos»(1). A tese de que é contraditório que movimentos ateístas se constituam em associações dá a impressão de que o Vítor nem leu o que escreveu, mas o problema fundamental é outro e recorrente. Quando se fala em ateísmo é natural pensar em religião. O que faz sentido, porque foram os religiosos que inventaram o termo “ateu” na premissa de que não adorar um deus é uma coisa extraordinária em vez de algo tão banal como não adorar o Pai Natal ou o Homem Aranha. Mas isso leva muita gente a precipitar-se e assumir que uma associação ateísta é análoga a uma organização religiosa, que regula e condiciona as crenças dos seus afiliados. Se, em vez disso, o Vítor pensar em associações como a Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores ou a Associação para a Conservação do Lince Ibérico facilmente perceberá que a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) não exige uma «colectivização de noções individuais». É apenas uma organização de pessoas que se afiliam por já partilharem um tema que lhes interessa e sem sacrificar qualquer individualidade.

Depois, o Vítor conclui que os ateus associados têm de adoptar um «deísmo de [E]stado» porque só assim podem rejeitar as religiões teístas sem aceitar «todas as outras religiões não teístas». A ideia parece ser a de que, se o ateu rejeita os deuses, então tem de aceitar tudo o que não inclua deuses. Além da inferência ser estranha, revela novamente o erro de assumir que o ateísmo é análogo ao teísmo. A crença num deus ou deuses é o fundamento da religião correspondente e, normalmente, é peça central na vida desses crentes. É algo que, para o crente, antecede os seus valores, condiciona os seus hábitos, justifica rituais e orienta decisões. O ateísmo não é nada disso. Na maioria dos casos, o ateísmo é um mero efeito secundário do espírito crítico com que uma pessoa avalia o que lhe dizem. Qualquer pessoa que pense nas crenças religiosas de forma imparcial e crítica facilmente conclui que nenhuma delas é plausível. Tal como acontece com a astrologia, falar com os mortos ou OVNIS a raptar vacas. O ateísmo destaca-se do cepticismo genérico apenas por rejeitar certos mitos que muita gente leva a sério, mas não há contradição nenhuma em rejeitar alegações sem fundamento independentemente de terem ou não terem deuses. Antes pelo contrário. Contradição é fazer de uma delas excepção só porque calha ser aquela que se aprendeu a aceitar desde pequeno.

O Vítor critica também a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) por exigir que a Igreja Católica permita aos baptizados renunciar a sua afiliação. Segundo alega a diocese do Porto, uma alteração do direito canónico em 2009 deixou de permitir o “abandono da Igreja por acto formal”, pelo que já não aceitaram o pedido de apostasia do Carlos Esperança (2). O Vítor, novamente baralhado, acha que «A ideia do desbaptismo é, em si mesmo, uma ideia religiosa: reconhecem a existência de algo em si, neste caso o baptismo, que tem que ser removido», mas não é nada disso. Citando a Comissão Nacional de Protecção de Dados, é apenas «o direito de exigir que os dados a seu respeito sejam exatos e atuais, podendo solicitar a sua retificação»(3). Se incluírem o meu nome em listas de cardiologistas, ou de astrólogos, videntes ou jogadores profissionais de hóquei no gelo, eu tenho o direito de pedir aos responsáveis que corrijam o erro. O problema de eu constar como católico na lista de uma paróquia é análogo, e o meu direito à correcção desse erro implica apenas reconhecer que se trata de um erro. Sou ateu e, como fui baptizado à traição antes de poder falar por mim, sou apóstata. É isso que deve constar no registo.

Por fim, o Vítor chama-me “maluquinho” porque eu e outros associados da AAP somos «pessoas que não acreditam em Deus e, em simultâneo, assumindo que a Sua não existência pode ser provada». No sentido lógico do termo, não se pode provar nada acerca da realidade porque a prova é um processo formal de inferência que só é válido dentro de um sistema lógico formal. Nesse sentido, não posso provar que Deus não existe, nem que Odin não existe, nem que o Pato Donald não existe. No entanto, isto não quer dizer que não possa concluir com confiança que estas coisas não existem. Afinal, também não posso provar que a água da torneira não está envenenada ou que o puxador da porta não está ligado a um cabo de alta tensão mas isso não me impede de viver o quotidiano com a confiança de que, tanto quanto sei, não vou morrer electrocutado por ir à casa de banho nem envenenado por beber um copo de água. O meu ateísmo é uma consequência trivial deste princípio. Tanto quanto sei, o tal Deus que o Vítor escreve em maiúscula é apenas mais um de muitos deuses que as pessoas têm inventado para contar histórias, para se consolarem, para tentarem perceber o que lhes acontecia, para se armarem em importantes ou para enganarem os outros. Esta conclusão parece-me bem menos “maluquinha” do que assumir que não posso saber nada da inexistência do Pato Donald, do veneno na água da torneira ou de qualquer um desses deuses.

1- Vítor Cunha, Associações Socialistateístas
2- Diário de uns Ateus, Ateus querem “despabtizar-se”
3- CNPD, Direitos dos Cidadãos.