sábado, novembro 24, 2012

A incompreensão profunda das diferenças cruciais.

O David Marçal escreveu ser «uma péssima notícia» a de que o governo vai certificar cursos e profissionais das medicinas alternativas (1) porque isto «Induz o público em erro, levando as pessoas a pensarem que estas terapias têm uma validade equivalente à medicina convencional, o que não é verdade.»(2) O Desidério Murcho opôs-se ao post do David «por enfermar de uma incompreensão profunda de uma diferença crucial», alegadamente «uma enorme, uma gigantesca diferença entre argumentar e mostrar que não funciona, e impedir as pessoas de a praticar, ensinar, divulgar, etc.»(3) Parece-me que a incompreensão está mais do lado do Desidério.

No texto do David não encontrei nada que sugerisse proibição, repressão ou censura destas ideias. Encontrei apenas a opinião de que o Estado não deve certificar coisas como homeopatia, e nisso estou inteiramente de acordo. Penso que estamos todos de acordo que quem criar um curso de Ecologia de Gambozinos não deve ser preso, silenciado ou proibido de ensinar tal coisa. Mas o que o David defende, e eu concordo, é que não seria correcto o Ministério da Educação certificar cursos ou profissionais de Ecologia de Gambozinos porque não há qualquer critério objectivo para identificar autoridades nessa matéria. Isto não é «Impor aos outros as nossas ideias»(3). É simplesmente o problema de não existirem gambozinos e, por isso, não haver maneira de certificar gambozinices. O Desidério está a confundir a oposição a que o Estado certifique disparates com a repressão de ideias.

Mas não é só essa confusão. Escreve também o Desidério que «A única coisa relevante é haver pessoas que querem consumir homeopatia. Essas pessoas têm o direito de errar e é por isso que é irrelevante, para efeitos legislativos, saber se a homeopatia é “científica” ou não»(3). Depende dos efeitos legislativos que estamos a considerar. A falta de fundamento científico (sem aspas) para a homeopatia não justifica que se proíba as pessoas de tomar gotas de água ou comprimidos de sacarose. Mas justifica que se proíba a venda de preparados homeopáticos como se fossem medicamentos, porque se não tratam nada isso será publicidade enganosa. Ou seja, o Desidério está a confundir o direito de fazer anéis de latão com a aldrabice de dizer aos compradores que são de ouro.

O Desidério engana-se ao julgar que «A homeopatia não prejudica seja quem for, involuntariamente.» Atrasos no tratamento de problemas graves, como o cancro, sobrecarregam o sistema de saúde. O tratamento ineficaz de doenças infecciosas põe em risco a saúde de terceiros, tal como a má prevenção, por exemplo com oscillococcinum em vez de vacinas. Alem disso, muitos produtos homeopáticos são dados a crianças por decisão dos pais. Mas neste ponto o Desidério está apenas mal informado. A confusão é esta: «É irrelevante se a homeopatia realmente ajuda as pessoas ou as prejudica, dado que as pessoas a escolhem em liberdade.» Aqui o Desidério confunde duas noções de liberdade crucialmente diferentes.

Uma é a liberdade como mera ausência de impedimentos externos. Se o Desidério andar à noite numa rua escura pode cair num buraco destapado. Neste sentido, podemos dizer que é livre de cair porque nada impede que o faça. Mas esta liberdade não é necessariamente boa. O outro sentido, o bom e crucialmente diferente, é aquele em que o Desidério só cai no buraco se o deseja consciente das consequências dessa escolha. Se cai por não saber que tiraram a tampa é queda livre mas não é vontade livre. Nas medicinas alternativas passa-se o mesmo. Quem toma um preparado homeopático porque o comprou na farmácia e está convencido que aquilo cura cai num buraco que teria escolhido evitar se soubesse que aquilo não serve para nada.

Finalmente, parece que o Desidério confunde um outro detalhe. «Isto porque sempre que excluímos dos nossos arranjos legislativos quem acredita nisto ou naquilo ou quem vive desta ou daquela maneira, estamos a oprimir essas mesmas pessoas, não lhes reconhecendo o direito a sentirem-se tão realizadas e aceites quanto nós mesmos.» A certificação de cursos e profissionais não tem como propósito fazer as pessoas sentir-se aceites ou realizadas. O objectivo é proteger o consumidor. Por exemplo, para que quando está doente e consulta um profissional de saúde possa confiar que este sabe diagnosticar e tratar doenças.

O que o David Marçal defende não é uma imposição de ideias. Mesmo sem a certificação oficial da homeopatia e afins as pessoas seriam livres de pensar o que quisessem. Também não é a proibição da prática de disparates; é apenas que o estado não seja cúmplice na venda enganosa de disparates inúteis como se fossem tratamentos eficazes. E não é um ataque à liberdade das pessoas. Pelo contrário, o problema que o David Marçal aponta é que a certificação estatal destas tretas retira liberdade de escolha porque induz as pessoas em erro. Ironicamente, o título do post do Desidério é «Em defesa da aldrabice.» Mais uma confusão entre dois conceitos crucialmente diferentes. Uma é a aldrabice no sentido de trapalhada. A essa todos têm direito. Mas outra, bem diferente, é a aldrabice ardilosa que serve para enganar. Essa não é um direito. É uma violação da tal liberdade que o Desidério diz defender, e é crucial distinguir cuidadosamente entre a liberdade de escolher e a liberdade de aldrabar os outros.

1- Público, Vai ser preciso tirar um curso para praticar acupunctura
2- David Marçal, Regulamentação das medicinas alternativas é uma aldrabice convencional
3- Desidério Murcho, Em defesa da aldrabice.


Adenda: os gambosinos (com s) afinal existem. Obrigado, D. Barbosa, por esta espantosa novidade. No entanto, não são o mesmo que os gambozinos (obrigado, António Parente).

sexta-feira, novembro 23, 2012

Contar feijões.

O Pedro Cosme Vieira sugeriu que a educação em Portugal deixasse de ser sem custos para o utilizador e passasse a «SCUMA - Sem custos para o utilizador no momento da apropriação do bem»(1), mas paga mais tarde, em prestações, descontando-se ao ordenado de cada um o custo da sua educação. Penso que é um bom exemplo de dois problemas comuns neste tipo de argumento económico: seleccionar tendenciosamente os factores a considerar e, pior do que isso, inferir dos alegados factos juízos de valor.

Estima o Pedro que a educação custa uns 70.000€ ao Estado, 100.000€ se for de medicina, pelo que acha «interessante a canalhada brava, esquerdista, recém licenciada vir para a rua gritar que não contribuiu em nada para a dívida pública quando mamou 70000€ no Estado (mais aos país e pelos anos de chumbo).» Como provavelmente sou o que ele considera “canalhada esquerdista”, devo esclarecer este ponto. O Estado gasta uns 100 mil milhões de euros por ano, cerca de dez mil euros por pessoa. Eu pago uns quinze mil em impostos directos, mais uns três ou quatro mil em IVA e nem sei quanto em impostos que o Estado cobra à produção e que se reflecte no preço de venda. Contas por alto, devo pagar ao Estado o dobro do que o Estado gasta em média por pessoa. É provável que, ao longo da minha carreira, acabe por dar mais do que recebo. O que é justo, porque o posso fazer com menos sacrifício do que muitos outros, mas pago do meu trabalho o que o Estado me dá e ainda pago por quem não pode dar tanto.

Mas o argumento central do Pedro é que Quem tem mais escolaridade [tem] um salário mensal mais elevado [e] a probabilidade de um licenciado estar desempregado é 30% menor que a média [...] Desta forma, cria-se a injustiça social de as pessoas que não usufruem da escola terem que pagar o ensino de quem usufrui.» Esta análise falha em dois pontos que deviam ser óbvios até para um economista. Primeiro, se o salário é 30% maior, os impostos que paga são maiores numa percentagem ainda mais elevada, pois quem ganha mais paga uma fracção maior do que ganha. Em segundo lugar, a educação gratuita, mesmo que só alguns tirem um curso, tem benefícios para todos. Se o curso de medicina custasse 100,000€ ao médico, mesmo que descontados mais tarde, haveria menos pessoas a seguir medicina e quem seguisse cobraria mais pelo seu trabalho, por um lado por haver menos oferta e, por outro, para compensar os custos. Isto ia aos bolsos de todos. O que o Estado poupasse nas faculdades de medicina pagava depois nos hospitais públicos e o que o cidadão poupasse nos impostos que não pagava para os estudantes de medicina pagava depois nas consultas ou, pior ainda, ficava sem médico a quem recorrer.

Isto não é só para medicina. Saber ler e escrever, por exemplo, não parece grande coisa mas quem quiser investir numa empresa precisa de empregados capazes de fazer contas, gerir stocks, preencher papelada e afins. Se cada pessoa tivesse de pagar 50.000€ do seu ordenado para ter educação o custo desse trabalho seria muito maior. Isso não só prejudicava todos os clientes da empresa como também prejudicava os donos. No fundo, quem beneficia mais, individualmente, da educação gratuita são os grande accionistas. Pode ser que um empregado da Sonae ganhe mais umas centenas de euros do que ganharia sem a educação que tem. Mas o Belmiro de Azevedo ganha muitos milhões por não ter de pagar a educação dos seus empregados e por poder comprar, mais barato, o trabalho de tantas pessoas qualificadas.

A ideia de que quem tira um curso é o único beneficiário desse investimento é um disparate. A educação beneficia muita gente, e não é só em euros. Quanto maior o nível de educação dos meus vizinhos, nem que sejam licenciados em literatura medieval ou escrita cuneiforme, é mais provável que vacinem os seus filhos, que tomem os antibióticos de forma responsável, que não sejam criminosos e que sejam melhores vizinhos do que se não tiverem ido à escola. Mas assumir que o licenciado é o único beneficiário da licenciatura nem é o maior problema do argumento do Pedro. O pior é inferir daqui que, por isso, cada um deve pagar a sua educação. É uma inferência falaciosa, que parece fazer sentido quando não faz. O propósito do Estado não é cada um comprar o que pode. Não é preciso Estado para cada diabético pagar a sua insulina, cada habitante pagar o seu pedaço de estrada e cada um pagar a investigação do crime de que foi vítima. O papel fundamental do Estado é garantir a todos certas coisas importantes – como saúde, segurança e educação – distribuindo equitativamente o esforço de as pagar. Quando os economistas conseguirem garantir que todos nascem em famílias igualmente ricas e generosas podemos deixar estas coisas por conta do mercado. Se todos puderem participar nas transacções com igual poder de negociação, o princípio do utilizador pagador pode ser justo. Mas, até lá, as coisas mais importantes não podem ficar só para quem pode pagar, e a educação é das coisas mais importantes. Para todos.

1- Económico-Financeiro, Cortar na despesa - a educação.

domingo, novembro 18, 2012

Treta da semana: Biomusicologia®.

O “Instituto de Ciências do Som e Bioterapias” oferece consultas de Biomusicologia®. Atribuindo a Leonardo Coimbra a afirmação de que «a evolução biológica é a construção progressiva que a direção e a herança tenham feito num tempo determinado pelo conjunto das noções geológicas, físicas e químicas», explica a página no instituto que a Biomusicologia® Terapeutica é «Uma Terapia harmoniosa que permite o funcionamento total de um organismo vivo.»(1) Não percebi o que uma coisa tem que ver com a outra. Nem sequer percebi ao certo o que isto quer dizer. E se bem que o funcionamento total do organismo me pareça uma coisa boa, o vídeo deixou-me na dúvida.



Como qualquer pessoa que tem crianças pequenas a acordar todas as noites, percebo o apelo de fazer barulho enquanto alguém tenta dormir numa cama cheia de cordas e tambores. É uma forma de restabelecer um pouco de justiça ao universo, seguindo o princípio milenar do “lixa os outros como te lixaram a ti”. A dúvida é se é o paciente quem tenta dormir enquanto o terapeuta faz barulhos irritantes. Com o que tenho dormido ultimamente, temo que uma sessão destas acabasse com o terapeuta a engolir os instrumentos da terapia.

Além disso, há aspectos destas ciências do som e quejandos que me deixam preocupado. Por exemplo, que «Somos constituídos por um corpo físico, feito de matéria e por uma aura, mais súbtil, ou seja anti-matéria, que é o que reveste os nossos campos de energia.» Espero que se tenham enganado nisto. Não sei o que é um campo de energia, mas se está revestido de anti-matéria quero-o bem longe de mim. Com E=mc2 não se brinca.

No que toca ao espiritual e transcendente, a Biomusicologia® caracteriza-se pela «experiência de ser agarrado, ou levado por uma outra dimensão da realidade, que está para além da materialidade do ambiente que nos rodeia, e mais relacionada com a ambiente último que é infinito no seu desígnio e inesgotável no seu mistério.»

Peço desculpa. A citação anterior é do Miguel Panão, acerca da religião católica (2). A Biomusicologia® é «apreender a transpessoalidade implicada no sentido da existência. É reconhecer o poder de transformar a consciência que adoeceu ao longo do tempo através do despertar consciênte da imortalidade da alma.»(3) Por alguma razão estranha, às vezes confundo estas coisas.

A Biomusicologia® é tão especial, tal com uma data de outras crendices, porque não se sujeita a testes empíricos e porque ninguém pode provar que é falsa. Por exemplo, «A ciência oculta ensina na sua 3ª Lei A LEI DA VIBRAÇÃO, que a vida é movimento e o movimento é a essência da própria matéria. Tudo é incessante vibração. A substância são modos de movimento, distinguindo-se por diferentes velocidades de vibração.»(4) Esta lei da vibração não é como as teorias da física ou da biologia. Não é para se por à prova ou confrontar com observações. Estas “leis” brotam da contemplação de gurus iluminados cujos umbigos são verdadeiras janelas para os maiores mistérios do universo. Basta um olhar de relance e surgem umas dúzias de terapias, bruxarias e seitas. Para os iniciados, afirmações que ninguém pode verificar mas que ninguém consegue refutar são exemplo de conhecimento, sabedoria e até de Verdade, maiúscula e infalível. Eu chamo-lhes tretas a todas, mas deve ser mania minha.

1- Instituto de Ciências do Som e Bioterapias, Biomusicologia® Terapeutica
2- Miguel Panão, A religião é boa
3- Instituto de Ciências do Som e Bioterapias, Biomusicologia® Regressiva
4- Instituto de Ciências do Som e Bioterapias, Biomusicologia®

sexta-feira, novembro 16, 2012

Discernimento.

Segundo o Henrique Monteiro, uma coisa “do arco-da-velha” «é acreditar que um polícia, depois de hora e meia a levar pedradas, tem discernimento para, durante uma carga, saber quem prevaricou e não prevaricou.»(1) Seja com arco ou velha, eu diria que um polícia tem a obrigação de manter o discernimento e distinguir entre culpados e inocentes mesmo que lhe atirem pedras. Afinal, o papel da polícia é fazer cumprir a lei. Para desatar a bater quando se enervam já há bestas que chegue e que o fazem de borla.

A caracterização do Henrique Monteiro, de que «o que não é possível é durante uma carga, um polícia que esteve sob uma tensão enorme durante horas, indagar e interrogar-se sobre a justeza da sua ação», não só é um disparate como desprestigia o corpo de intervenção. A bastonada indiscriminada de uma carga policial não é – pelo menos, não deve ser – por nervos ou frustração. É um procedimento bem ensaiado do qual depende a segurança de cada polícia. Para uma dezena de homens com bastões enfrentarem uma multidão em tumulto não podem parar para distinguir culpados de inocentes. Se fazem isto no meio de uns milhares de adeptos em fúria pelo seu clube ter perdido acabam no hospital, ou pior. Por isso, quando carregam não podem parar a bastonada enquanto não estiver tudo a fugir ou a sangrar no chão. Nem pode, cada agente, decidir por si se acompanha os colegas se fica a identificar meliantes.

A questão importante, neste caso, é se se justificava dar a ordem de carregar desta maneira sobre os manifestantes. Como se pode ver neste vídeo, os imbecis que estavam a apedrejar os polícias estavam mesmo ali ao pé, sem ninguém entre eles e a polícia. Também é aparente nestas imagens que a polícia não enfrentava uma multidão violenta mas sim uma dúzia de arruaceiros e muita gente que não fazia mal nenhum. «Mas porque não foi ao meio da manifestação buscar os apedrejadores? Bem, porque era arriscado.» Isso não pode ser assumido gratuitamente. O que se tem de apurar é se quem ordenou aquela carga policial tinha indícios de algum perigo se simplesmente mandasse prender os arruaceiros. É duvidoso que tivesse. Não houve nada no comportamento dos restantes manifestantes que sugerisse violência contra os agentes nem necessidade de suspender a presunção de inocência e correr tudo à bastonada. É essa também a opinião da Amnistia Internacional (2).

O mais preocupante nisto é tanta gente assumir implicitamente que a polícia fez tudo bem. O Henrique Monteiro justifica a violência da polícia sobre inocentes com um «Quem ainda estava na praça sabia o que ia acontecer». O Carlos Guimarães Pinto pergunta, retoricamente, «se não será apropriado concluir que as restantes pessoas que se mantiveram na manifestação muito tempo depois do tiro ao polícia ter começado estavam ou não a validar com a sua presença as acções daqueles indivíduos.»(3) Todos no governo, e até o Presidente, que devia fiscalizar o governo, limitam-se a dizer que a polícia fez tudo como devia. Mas nem estar na rua onde ocorre um crime nem saber que a polícia vai bater justificam esta violência indiscriminada. Esta atitude de achar que quem levou bastonadas mereceu porque estava lá, que os polícias não precisam de justificar o que fazem e que se bateram em quem não deviam é porque estavam enervados, coitados, é completamente errada. Concedemos autoridade à polícia para fazer cumprir a lei, mas essa autoridade vem com a obrigação de respeitar criteriosamente a lei que queremos cumprida. E a lei não permite bastonadas a alguém só porque “estava mesmo a pedi-las” ou porque quem bateu estava nervoso.

Numa «nota final para os ignorantes que comparam estas cargas às que existiam antes do 25 de Abril», o Henrique Monteiro escreveu que esta foi completamente diferente porque dantes «Batiam em quem podiam, sem que nada fosse arremessado contra eles.» Não é isso o mais importante. A diferença principal entre a polícia de uma ditadura e a polícia de uma democracia está na responsabilidade de justificar o que faz. Ainda temos de ver se esta é das que presta contas aos cidadãos ou se faz o que dá jeito a quem manda sem nos dar satisfações.

1- Expresso, O sôr desculpe, por acaso estava a apedrejar?
2- TVI 24, Amnistia Internacional condena «uso excessivo da força»
3- O Insurgente, As bestas (2)

domingo, novembro 11, 2012

Treta da semana: os bifes da Maria.

Nasceu Maria Isabel Torres Baptista Parreira, cresceu na Linha, formou-se na Católica, casou com Nuno Maria Mariano de Carvalho Jonet, trabalhou em Bruxelas mas acabou por deixar a vida profissional para «acompanhar a integração escolar dos filhos» (1). Talvez tenha sido este percurso de vida que levou Isabel Jonet a expor-se recentemente a críticas por dar como exemplos de austeridade não comer bifes todos os dias ou ter de escolher entre ir a um concerto ou tirar uma radiografia depois de uma queda na ginástica (2). Uns dizem que deve abandonar a presidência do Banco Alimentar (3), outros defendem o seu trabalho «no combate à pobreza e à fome em concreto»(4) e a própria já esclareceu que «não estava a falar para os mais pobres»(5), o que quer que isso queira dizer. Esta polémica interessa-me pouco. Penso que uma pessoa com tempo disponível e contactos pode bem administrar voluntários e stocks de alimentos mesmo que as suas opiniões acerca da austeridade não estejam sequer na vizinhança da realidade. Por outro lado, os bancos alimentares combatem a pobreza da mesma forma que o paracetamol combate a pneumonia. Disfarçam alguns sintomas, o que pode ser melhor que nada, mas importa não os confundir com uma cura. O pobre auxiliado continua pobre à mesma.

Mais importante do que as metáforas infelizes da Isabel Jonet é a ideia de que quem sofre com a austeridade é quem esbanjou o dinheiro. O “nós” implícito em «Vivemos nos últimos anos muitas vezes acima das nossas reais possibilidades»(5). É como se pagássemos agora, todos por igual, uma asneira da qual somos todos igualmente responsáveis. Esta visão predomina na direita política, talvez por ser tão confortável para quem a austeridade é assim, sei lá, tipo não poder ir ao concerto por causa da queda na ginástica. Mas é completamente errada.

Quem paga mais caro esta situação são aquelas pessoas, muitas e cada vez mais, que trabalharam durante anos numa profissão e que agora estão sem emprego. Porque a fábrica fechou, ou o restaurante teve de despedir metade dos empregados, e não há mais ninguém que as contrate. O problema não é terem de comer menos bifes. O conceito pode ser difícil de compreender para alguém como a Isabel Jonet, mas o problema é que todo o rendimento destas pessoas vinha de venderem o seu trabalho. Sem comprador não têm dinheiro. Nenhum. Tanto faz se têm muitas dívidas ou poucas, se comiam muito ou se eram magrinhas. Agora ficaram com zero e não têm como viver.

Ao contrário do que explicou a Isabel Jonet, não perderam o emprego por falta de qualificações ou por alguma “restruturação” do mercado de trabalho. Não foi um enorme avanço na ciência da hotelaria que as tornou irrelevantes. A causa imediata foi a contracção do mercado. Se as pessoas compram menos há menos capacidade para manter empregados. A austeridade pode parecer uma virtude quando olhamos para quem decidiu poupar cortando despesas desnecessárias. Menos bifes, por exemplo. Mas quando o bairro todo faz isso várias pessoas perdem o emprego e já não o conseguem recuperar. O custo do reajustamento não é repartido por todos de forma equitativa.

Esta poupança é consequência dos cortes nas prestações sociais, cerca de metade do orçamento público, e nos salários da função pública, que é cerca de um quinto. Isto corresponde a uns 20% da economia portuguesa, só que estas pessoas gastam quase todo o seu rendimento em bens e serviços, pelo que cortes aqui têm um impacto grande na economia, agravado pela expectativa de mais cortes no futuro.

Por sua vez, estas medidas advêm da ideia de reduzir o défice cortando na despesa do Estado em vez de aumentar a receita. Dito assim soa bem, mas o que quer dizer é redistribuir menos. O Estado, supostamente, obtém mais receita de quem tem mais e gasta com quem mais precisa. Ajustar as contas pela despesa é cobrar o défice aos pobres. Não pagam todos por igual.

Também não somos todos igualmente responsáveis pelo défice. Parte do problema está em diferenças estruturais de logística, tecnologia, formação e cultura que tornam Portugal menos eficiente a vender coisas caras do que outros países como a Alemanha. Isto não é culpa de ninguém vivo hoje nem se pode resolver em poucas décadas. Mas o problema principal é os governos, principalmente os de direita, terem cobrado menos do que gastaram. As Jonets dirão que é culpa dos pobres que se fartaram de comer bifes, mas não é. O défice deve-se, por um lado, a dar dinheiro aos ricos em coisas como PPPs e resgates bancários e, por outro lado, a aumentar quase somente impostos sobre os salários evitando aumentar impostos sobre lucros de empresas, especulação financeira e qualquer coisa que incomode os mais ricos (6). Os ricos preferem dizer que o problema foi gastar-se muito em hospitais e escolas, mas parece-me que o mal foi eles não pagarem o que deviam ter pago e levarem mais do que deviam ter levado.

Ajustar o défice pela austeridade é injusto porque penaliza mais severamente quem tem menos culpa. E é um disparate porque deprime a economia tanto ou mais do que um aumento nos impostos sobre lucros e especulação com a agravante de reduzir o apoio aos mais necessitados. Daí ser tão prejudicial esta ideia hipócrita de que “nós” vivemos acima dos nossos meios e, por isso, “nós” temos de aceitar privações, coitadinhos de “nós”. Uns são mais nós do que outros.

1- Visão, Novembro de 2011, A Sra. Banco Alimentar
2- Alfredo Pereira (YouTube), O inacreditável discurso de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome.
3- Por exemplo, Petição Isabel Jonet: Demita-se !
4- Expresso, Isabel Jonet, as palavras e os atos
5- Rádio Renascença, OPINIÃO DE ISABEL JONET
6- Correio da Manhã, Estado duplica receita com o IRS cobrado

sábado, novembro 10, 2012

Treta da semana (passada): espetar para preservar.

«Perceberam agora?», perguntou a Helena Matos, «Que se acabarem as touradas acabam os touros bravos?»(1) e, como exemplo, deu uma notícia que não tem nada que ver com touradas mas com gado abandonado (2). À parte da incoerência, o argumento de continuar as touradas para preservar os touros bravos é uma treta.

O touro bravo não é uma espécie. É seleccionado e criado para ser agressivo mas não tem importância para a diversidade genética dos bovinos. Nem é uma coisa muito natural. «A raça Brava resulta de um processo de selecção e transformação, até à obtenção de um animal que, não perdendo as suas características de investida, permite ser submetido, através do toureio»(3). É um bicho de circo. Se deixarem de criar estes animais, biologicamente não se perde nada.

O argumento de que se crie o touro bravo pelo valor ecológico do montado também não colhe, e até é inconsistente. É verdade que o montado é um ecossistema importante, com grande biodiversidade e abrigando espécies em perigo como o Lince Ibérico e a Águia Imperial. Tem também um grande valor económico, por exemplo pela produção de cortiça. Mas o touro não faz lá falta e, se o montado é assim tão importante, certamente que não vai desaparecer só por se deixar de fazer touradas. Os montados em Portugal estão legalmente protegidos e, ao contrário do que este argumento assume, o mais plausível é que os proprietários das ganadarias simplesmente aproveitem os montados para criar estes touros. Não é plausível que os montados só sejam úteis por causa dos touros. Parece-me contraditório afirmar que o montado é muitíssimo importante mas que sem o touro bravo ninguém quer montados para nada.

Mas o maior erro da Helena Matos é julgar que torturar os animais em espectáculos públicos é uma forma adequada de os proteger. Se quisermos preservar o touro bravo, então o melhor será criar reservas naturais para esses animais. A solução da Helena faz tanto sentido como incentivar as lutas de cães para promover a criação do Dogue Argentino. Mas isso, dirão os aficionados da tauromaquia, é uma coisa completamente diferente. A tourada é uma tradição milenar na qual o bravo animal é homenageado pelo público por enfrentar o sofrimento até à sua gloriosa morte. A luta de cães, pelo contrário, é um espectáculo bárbaro e antiquada no qual a assistência se entretém vendo animais a sofrer até à morte. Perceberam agora?

1- Blasfémias, Perceberam agora?
2- Esta, no Jornal de Notícias, mas ver também esta, no Público, mais detalhada.
3- Café Portugal, Touro bravo é estudado na Faculdade de Medicina Veterinária

Disto e daquilo, 3.

Aonde?
Num canal qualquer vai dar o filme “Aonde é que pára a polícia?”. Talvez seja da idade, mas estas coisas incomodam-me cada vez mais. Se pára, não é aonde. É onde. Até podem experimentar ler devagar: a onde é que pára. Não faz sentido. Apesar do filme vir com este título em vários sítios (1), quando noticiaram a morte do Leslie Nielsen ou puseram o título original (2) ou corrigiram o português (3). Ao menos isso.

Um milhão de milhões.
Segundo uma notícia no Expresso, a «França exige à Google um milhão de milhões de euros»(4) em impostos. Não sei se terá sido uma tradução apressada de “billion” ou “milliard” para bilião, mas é estranho que passado mais de uma semana não tenham corrigido o título. Possivelmente pensaram meh, mil vezes mais, mil vezes menos, tanto faz. Além disso, quem escreveu isto para o Expresso esqueceu-se das partes mais interessantes. Por um lado, a pressão que Estados como a França e a Alemanha estão a fazer sobre indexadores como a Google para pagarem um género de “direitos acessórios” pelos excertos de algumas palavras que citam acompanhando as ligações para páginas de notícias. Segundo a legislação vigente é perfeitamente legítimo citar pequenos trechos sem pedir autorização ou pagar licenças. Mas na Alemanha já há propostas de lei para obrigar a tais pagamentos e na França estão a pressionar a Google para chegar a acordo com as “empresas de conteúdos” (5). Bem feito era se simplesmente deixassem de indexar sites que exigissem pagamento. Por outro lado, há a situação fiscal escandalosa da Google. No ano passado, tiveram 4,7 mil milhões de dólares de lucros nos EUA, dos quais pagaram 43%. Mas dos 7,6 mil milhões de dólares que ganharam no resto do mundo pagaram apenas 3,2% em impostos (6). E, ao que parece, isto é legal. Talvez se largassem um pouco a austeridade e se dedicassem a tapar os rombos na legislação fiscal para as empresas as coisas aqui na Europa melhorassem um pouco.

Copy right e copy wrong.
No Canadá, o supremo tribunal declarou inválida a patente da Pfizer sobre o Viagra por não incluir os detalhes necessários à recriação do invento (7). Isto é um resultado importante para combater a ideia errada de que a “propriedade intelectual” é um direito do criador. Na verdade, estes monopólios só devem ser concedidos em benefício da sociedade. No caso das patentes, concede-se um monopólio temporário sobre a exploração de uma invenção em troca da divulgação detalhada daquilo que foi inventado. No caso das obras literárias ou artísticas, concede-se monopólios sobre a cópia como incentivo e subsídio à divulgação e distribuição das obras. Em ambos os casos, só faz sentido a sociedade conceder esses monopólios se tirar daí benefícios que compensem os custos. Um exemplo do que não devia ser aceite é a patente que a Microsoft submeteu sobre um método para bloquear a exibição de conteúdos se o número de pessoas a assistir for superior ao permitido pela licença (8). Não é só a parvoíce de conceder um monopólio sobre esta ideia (a troco de quê?) mas a parvoíce ainda maior do sistema legal servir para que, por exemplo, se alugue um DVD com a restrição de só poder ser exibido a quatro pessoas e cobrar extra se a audiência chegar à meia dúzia. Há tempos o Icarus perguntou-me como eu achava que seria o futuro destas coisas (9). Acho que vão acabar. Cada vez é mais fácil ignorar estes monopólios, cada vez é preciso leis mais absurdas para os tentar proteger e enquanto os custos para a sociedade são cada vez maiores os benefícios são cada vez mais pequenos. É uma questão de tempo até o eleitorado abrir os olhos.
1- Por exemplo, aqui e aqui.
2- Visão, Morreu o ator Leslie Nielsen
3- Blitz, Morreu Leslie Nielsen, ator das sagas Onde Pára a Polícia e Aeroplano
4- Expresso, França exige à Google um milhão de milhões de euros.
5- NY Times, A Clash Across Europe Over the Value of a Click
6- Reuters, Google denies 1 billion euro French tax claim.
7- Michael Geist, Supreme Court Voids Viagra Patent as Insufficient Disclosure Means It Fails the "Patent Bargain"
8- US Patent and Trademark office, CONTENT DISTRIBUTION REGULATION BY VIEWING USER (via Boing Boing).

9- Comentário em Treta da semana (passada): 312€ + IVA.

domingo, novembro 04, 2012

Treta da semana (passada): cadeia com eles.

Em Itália, seis sismólogos e um oficial do governo foram condenados por homicídio negligente de 29 pessoas em L'Aquila. no sismo de 2009. As notícias em alguns jornais alegaram que teriam sido condenados por subestimar os riscos do sismo (1) mas, ao contrário do que as notícias dão a entender, os sismólogos não foram condenados pela dificuldade de prever os sismos. O caso é ainda mais sórdido.

Depois de uns tremores que assustaram as pessoas, um responsável pela protecção civil, Bernardo De Bernardinis, convocou um painel de sismólogos para uma reunião com o intuito de assegurar a população de que tudo iria correr bem. Terminada a reunião, foi isso que De Bernardinis disse numa conferência de imprensa. Podiam ir todos para casa beber vinho que os tremores até eram bom sinal, pois descarregavam a energia acumulada e reduziam a probabilidade de sismos mais graves. Só que não foi nada disso que os sismólogos lhe disseram. O que disseram foi, basicamente, que era uma zona de risco mas que não se podia prever que iria ocorrer um sismo forte só porque tinha havido tremores fracos (2). O tribunal não os condenou por subestimar o sismo mas condenou-os porque o oficial do governo, que não era sismólogo, decidiu dizer parvoíces diante das câmaras. Se já é questionável que condenem De Bernardinis por homicídio negligente, que condenem os sismólogos por algo que este tipo decidiu dizer é totalmente absurdo. E as consequências serão trágicas.

Por um lado, dificilmente os cientistas italianos voltarão a colaborar com o governo em problemas importantes para a segurança ou saúde pública. Com esta responsabilização legal arriscam a serem presos pelos disparates que os políticos dizem. Por outro lado, desvia a atenção da verdadeira causa da tragédia de L'Aquila, onde morreram mais de 300 pessoas. Não se pode prever em que dia irão ocorrer sismos como aquele. Não havia nada que os sismólogos pudessem afirmar, com fundamento científico, que salvasse aquelas pessoas naquela situação. A única forma fiável de prevenir aquelas mortes teria sido preparar os edifícios antigos para não soterrarem toda a gente em caso de sismo. O problema é que isso custa muito dinheiro e, por isso, a legislação apenas obrigava os edifícios novos a resistir aos sismos. Aos antigos não era preciso fazer nada. Foi essa decisão que matou 300 pessoas.

1- Por exemplo, o Exresso e o Sol
2- Para mais detalhes ver Cientistas condenados a seis anos de prisão por homicídio no De Rerum Natura, Italy puts seismology in the dock, na Nature News, e Italian earthquake case is no anti-science witch-hunt e Seismologists found guilty of manslaughter na New Scientist.

Moral e ética.

Nos comentários ao post sobre a dignidade, o João Vasco escreveu que «A moral surge da necessidade de conciliar vontades»(1). Se bem que concorde que sem conflito não é preciso moral nem ética, o conflito, por si, não produz moral. A necessidade de conciliar vontades sem qualquer moral é muito comum. A águia quer comer o coelho, a este isso não dá jeito mas algum irá ceder, resolvendo o conflito. Mesmo quando há moral, no sentido lato de normas sociais, esta pode não servir para conciliar vontades de forma justa. A moral da alcateia dita que o lobo dominante coma antes dos outros. A moral no Irão dita que a apostasia deve ser punida. Muitas regras morais parecem ter como propósito impor comportamentos em vez de conciliar seja o que for. Recorro novamente à citação de Pio XII que colei no outro post: «A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la.» As religiões são exímias a inventar regras morais que lhes convenham.

Concordo, no entanto, que conciliar vontades é um problema ético do qual a moral devia depender*. Mas, se bem que o problema só se ponha se houver conflitos, como o João Vasco escreveu, não é do conflito em si que surge a ética. O fundamental é uma escolha pessoal. A ética vem da opção de submeter as regras morais ao crivo de valores imparciais, independentes das nossas tradições, do hábito ou do que nos dá jeito. Basicamente, da decisão de ter consideração pelos outros e conciliar as vontades de forma justa.

O Nuno obstou porque «Se a dignidade humana dependesse de algo tão subjectivo quanto o apetite à consideração que cada um tem por cada qual, era num estalar de dedos que alguém ta podia retirar se para aí estivesse virado.» Precisamente. «E que fundamento materialista arranjas tu para esse respeito automático pela subjectividade alheia? É e deve ser automático porquê?» Não é automático nem tem “fundamento materialista”. É uma escolha e, por ser opcional, pode sumir num estalar de dedos. Pior ainda, apesar de facilmente aprendermos regras morais, a ética tem sido uma coisa rara na nossa história. Basta ver, por exemplo, o tempo que demorou até a maioria perceber que a escravatura é uma coisa má e o que ainda hoje custa, em tantos sítios, explicar que devemos ser todos iguais perante a lei e governados por quem nos representa. Temos muito mais facilidade em aprender a fazer coisas porque “é assim que se faz” do que aferir, de forma crítica, se será essa a opção mais justa.

A ética é frágil precisamente porque é opcional. Entre as tribos do Afeganistão e até aqui por Lisboa, em certos sítios, pode-se ver facilmente como a dignidade e os direitos humanos valem pouco quando a opção de lhes dar valor não é consensual. E um dos maiores perigos para a ética é ignorar essa fragilidade com a ilusão de um fundamento sólido e transcendente que mantenha o universo nos eixos. O Faroleiro comentou que «Para determinar o Mal é necessário um referencial exterior ao sistema senão esse "Mal" é sempre relativo, dependente das relações de força vigentes na sociedade». A ética, realmente, procura uma perspectiva fora de qualquer sujeito. O objectivo não é ver as coisas como eu quero, como tu queres ou como Deus quer mas sim encontrar normas independentes de qualquer sujeito em particular. Mas isso não é um referencial exterior ao sistema. Isso é o sistema, e é um erro confundir a opção pessoal de procurar esses critérios com a imposição de critérios alheios: «Se o amor não corresponder a um mandamento divino, a sua validade lógica é a de uma simples idiossincrasia pessoal ao mesmo nível de uma outra idiossincrasia pessoal qualquer.» Se o amor corresponder a um mandamento divino então não terá nada que ver com a ética. A ética não tem que ver com obediência mas sim com autonomia e responsabilidade.

O que queremos da ética não é uma simples idiossincrasia pessoal mas só podemos ter ética se compreendermos que é uma opção pessoal. Se nos comportamos de certa forma por mandamento, por medo do castigo ou por hábito então temos apenas uma moral sem fundamento ético. As regras estão lá, mas não somos responsáveis por elas nem por garantir que são justas ou boas. Foi essa atitude que permitiu milhares de anos de escravatura, opressão, injustiças e desrespeito até que, nos últimos séculos, finalmente se começou a perceber que a ética não vem de fora – de deuses, bispos ou reis – mas que tem de ser criada por cada um de nós. Infelizmente, delegar os juízos de valor nos “superiores” continua a dar jeito aos que se dizem superiores. O José Policarpo, por exemplo, desaconselha protestos (2) e recomenda respeito pelos órgãos de soberania (3). Em grande parte, a tolerância que a maioria tem pela injustiça que vem de cima – de legisladores, ministros, juízes, bispos e afins – deve-se à ilusão de que a moral também vem de cima, dos soberanos, deuses ou seus representantes, em virtude de estarem lá em cima, e o que importa cá em baixo é obedecer aos mandamentos.

É importante desfazer esta ilusão. A compreensão de que ninguém é “dono” da moral só por ser rei, papa ou deus foi uma grande conquista dos últimos séculos. Deu-nos a democracia, a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e assim por diante. Mas implica que todos nos temos de responsabilizar pela avaliação crítica das normas sociais. É trágico quando a maioria se esquece desta responsabilidade e aceita cegamente ideologias políticas ou mandamentos divinos. É esse o perigo do «referencial exterior». Por outro lado, se tivermos consciência de que cada um só é tão ético quanto queira ser estaremos muito mais atentos às tretas que nos querem impingir e teremos muito mais cuidado com o poder que damos aos que nos governam e aos que policiam o nosso comportamento.

* Há quem use “moral” e “ética” como sinónimos, mas eu prefiro distingui-las e chamo moral às normas de conduta e ética à avaliação crítica dessas normas com o intuito de as fundamentar em princípios justos e imparciais.

1- Dignidade, graças a Deus.
2- Económico, ”Não se resolve nada contestando”
3- Expresso, Cardeal aconselha prudência no exercício dos direitos constitucionais