domingo, outubro 28, 2012

Treta da semana (passada): na maior.

Soube recentemente da publicação de um livro que pretende ensinar aos alunos universitários como tirar o curso. «Faz o curso na maior – Estuda o mínimo, vive ao máximo», de Nuno Ferreira e Bruno Caldeira. O Francisco Delgado já dissecou várias alegações do livro ou, pelo menos, do primeiro capítulo e da forma como o livro foi apresentado (1). Eu gostava de abordar um problema mais geral.

A ideia fundamental do livro parece ser minimizar o tempo de estudo recorrendo a apontamentos de colegas que se dedicaram a identificar a matéria mais importante, concentrando-se na resolução de exames de anos anteriores e estudando na véspera das avaliações. Parece-me uma ideia muito pouco original. Talvez um título mais adequado fosse “Como descobrimos a roda e como a podes descobrir também”. E não merece ser tão generalizada como os autores propõem.

Resolver exames de anos anteriores é boa ideia. Como o exame visa testar o conhecimento do aluno tem de cobrir, pelo menos, a matéria mais importante e não pode variar muito de ano para ano. Estudar de véspera também dá para safar. Fica tudo amontoado no cérebro, desmorona uns dias depois mas, se mantiver alguma coerência até a dia da prova lá fica a disciplina feita. O problema é que mecanizar exercícios em cima da hora dá trabalho, é chato e não satisfaz. Depois do exame só sobra uma baralhada de truques para resolver alguns exercícios e não fica nada que faça sentido. Penso que qualquer pessoa com um curso superior conhece a sensação mas, se queremos optimizar o retorno do investimento, é má ideia fazer disto a norma.

Mas o maior erro dos autores parece-me ser a premissa de que «O importante é passar às disciplinas com boas notas», seja por que truque for. O autor até dá um exemplo: «Tive colegas de curso que sabiam muito mais do que eu sobre determinada cadeira mas no final acabaram por chumbar ou por ter uma nota mais baixa do que a minha.» Que tansos, subentende-se. Mas o que é importante depende da pessoa e da disciplina. Para mim também houve disciplinas de fazer e esquecer, como química orgânica ou mecanismos das reacções químicas. Hoje guardo apenas uma vaga memória de umas setinhas nas fórmulas que pareciam surgir mais por magia do que por ciência. Na maioria fiz precisamente o contrário do que este autor que «Raramente estudava pelos livros recomendados, porque sabia que alguém já os tinha lido e havia algures uns apontamentos resumidos com a matéria que era preciso saber». Eu preferia ler os livros. Em alguns casos, como química inorgânica e química física, com livros do Atkins, até os lia de ponta a ponta sem me importar se era matéria da disciplina ou não. Gostei imenso do que aprendi e fiquei com uma ideia muito mais clara do que se tivesse estudado por apontamentos dos colegas ou decorado exercícios e as disciplinas em que tive boas notas, quer na licenciatura quer no mestrado, foram aquelas que não me custou estudar porque gostava da matéria. Nessas não fazia sentido minimizar o tempo de estudo. Em geral, sempre me pareceu mais importante perceber o que estava a aprender do que treinar para o exame. Isto prejudicou-me as notas em muitos casos, admito, mas deixou-me muito mais satisfeito do que ficaria se tivesse optado pelo método recomendado neste livro. E deu-me muito menos trabalho porque ler coisas com interesse não é trabalho nenhum.

Mas isto sou eu. Outros terão outras experiências e preferências. É precisamente esse o maior problema deste livro. Não há uma receita para o “sucesso académico”. Não só pela complexidade de factores que condicionam o percurso do estudante e pelas diferentes prioridades e objectivos que cada um tem mas até, mais fundamentalmente, pela subjectividade do conceito de sucesso. A entrevista para a Visão dá uma ideia do que é sucesso segundo este livro: «Ir a festas e fazer muitos amigos, pois, no futuro, essas pessoas podem ser determinantes - eis uma das ideias-chave do livro. "Há uns anos, fui convidado para fundar uma revista de economia, por um colega de turma; é assim que as coisas acontecem"». Talvez sim, e mais vezes do que deviam. Mas não é correcto assumir que fazer as coisas “na maior” é necessariamente isto.

1- Francisco Delgado, Uma ova. Ver também a entrevista na Visão e o capítulo online.

sexta-feira, outubro 26, 2012

Dignidade, graças a Deus.

Há uns posts atrás, citei o catecismo da Igreja Católica, «A razão mais sublime da dignidade humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus. […] O homem é, por natureza e vocação, um ser religioso. Vindo de Deus e caminhando para Deus, o homem não vive uma vida plenamente humana senão na medida em que livremente viver a sua relação com Deus.» Por isto afirmei considerarem que «não sou plenamente humano, não estou à altura do próprio ser nem poderei viver de forma livre e plena», visto ser ateu. Entretanto, o Alfredo Dinis, citando o que disse ser o «Catecismo da Igreja Católica», apontou que «”Deus não faz distinção de pessoas” (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2, 6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e semelhança»(1). O trecho que o Alfredo citou não está no catecismo (2) mas sim no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (3). No entanto, como não sei a posição relativa destes documentos na escala da infalibilidade católica, vou considerar que a proposta católica é a de que eu sou exactamente tão digno como o Alfredo, por sermos ambos imagem do deus católico, apesar de eu não estar à altura do próprio ser, não viver como ser plenamente humano e me faltar aquela vocação que propõem ser a «razão mais sublime» da minha dignidade.

O primeiro problema, como de costume, é epistémico. Para a Igreja Católica determinar que a minha dignidade é igual à do Alfredo, por este critério, tem de determinar que somos igualmente imagem de Deus. Sabendo tão pouco acerca de mim e ainda menos acerca de Deus, não me parece haver católico que consiga justificar essa conclusão. Principalmente quando a própria Igreja afirma que eu não tenho uma vida plenamente humana nem estou “à altura do ser”. Se Deus criou os humanos à sua imagem, quem não está à altura de o ser será certamente uma imagem de pior qualidade. Por outro lado, também não me parece que Deus seja católico. Tal como os ateus, Deus não louva um deus, não depende de padres ou bíblias para orientação moral, não venera santos ou Jesus nem se ajoelha perante mistérios da fé. Se Deus existir até pode ser mais parecido comigo do que com o Alfredo por ser ateu como eu. Sem evidências concretas, não podemos concluir que eu e o Alfredo somos igualmente “imagem de Deus”.

Além de afirmarem como certa esta hipótese acerca da qual nada podem saber, os católicos criam um problema ainda mais sério ao fazer toda a ética depender da existência desse deus. Isto é uma chatice quando se quer discutir se ele existe. Eticamente, para mim tanto faz se Deus existe ou não existe. A dignidade é a propriedade de merecer consideração, respeito e, por isso, direitos, e eu considero que esta surge automaticamente do próprio problema ético de respeitar a subjectividade dos outros. Não importa se são imagem de algum deus, se são humanos, golfinhos ou macacos, ou mesmo se só existirão numa geração futura. Assumir responsabilidade pelo que fazemos implica reconhecer a dignidade de qualquer sujeito que seja afectado pelos nossos actos. Isto tem duas implicações importantes para a discussão com os crentes. Primeiro, permite-me discutir se Deus existe ou não existe de forma objectiva, olhando para os factos, sem sentir os meus valores ameaçados pelo resultado. Além disso, permite-me encarar as divergências éticas que tenho com os crentes como divergências pessoais, sem ter de assumir que alguém peca só porque discorda de mim.

Quem levar a sério esta doutrina católica, ou outra semelhante (estas coisas são comuns na religião), não poderá ter a mesma atitude. Por um lado, porque a hipótese de Deus não existir é mortal para os seus valores. Ao assumir que a dignidade humana vem de sermos imagem de Deus e que só somos plenamente humanos na relação com Deus subordina a estas premissas morais subjectivas a questão factual da existência de Deus. Isto torna impossível discuti-la de forma objectiva. Por outro lado, ao assumir que a moral é uma estipulação divina, condena a priori qualquer dissensão ética. Discordar acerca da existência de Deus não é um direito ou uma opinião legítima. É um pecado e, em muitas religiões, é mesmo o pior pecado de todos.

Amarrar as alegações factuais do dogma religioso aos princípios fundamentais da moral é aldrabice. A dignidade humana vem da consideração que cada um tem pelos outros e não dos deuses que os homens inventam. Mas esta aldrabice confere uma resistência enorme ao dogma religioso porque convence o crente de que precisa do dogma para ter ética e que questionar o dogma é em si imoral. Ou, como diria Pio XII, «A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la. Se alguém presumir intentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus [omnipotente] e dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo»(4). Daí a grande dificuldade em discutir com os crentes o fundamento factual dos dogmas que defendem.

1- Treta da semana: humano ma non troppo, post e comentários.
2- Catecismo da Igreja Católica
3- Compêndio da Doutrina Social da Igreja
4- Definição do dogma da assunção de nossa senhora em corpo e alma ao céu.

quinta-feira, outubro 18, 2012

Treta da semana (passada): 312€ + IVA.

Há dias, a preparar um trabalho prático de programação para alunos de engenharia geológica, fui à página do LNEG procurar dados que pudesse usar para fazer algo relacionado com a área deles. Encontrei umas cartas geológicas engraçadas, em formato digital(1), que poderiam servir de tema. Infelizmente, custam 312€ mais IVA e ainda se tem de assinar um termo de responsabilidade proibindo «a reprodução ou distribuição (divulgação ou comercialização) dos CD-ROM ou ficheiros que contêm o produto, sendo este penalmente protegido contra reproduções não autorizadas»(2). Isto ilustra uma data de coisas erradas, e até revoltantes.

Primeiro, a asneira de transpor cegamente para o domínio digital uma legislação de direitos de autor concebida quando as canetas eram de aparo e o lápis tecnologia de ponta. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos reconhece como obras originais «Ilustrações e cartas geográficas», o que faz sentido se são desenhadas à mão. A cartografia manual tem tanto de artístico como de científico. Mas quando as cartas são ficheiros digitais gerados por computador a partir de dados geológicos não faz sentido que essa sequência de bytes a descrever rios e formações rochosas seja considerada uma obra original e protegida por direitos de autor. É como conceder o estatuto de obra a um sismograma ou a um espectro de absorção.

Em segundo lugar, o abuso da legislação. Não sei se esta exigência da parte do LNEG é legal e até tenho esperança que não seja. Mas, mesmo que seja, não é aceitável que façam isto. A geologia não é propriedade deles, os formatos com que a descrevem foram criados pelos fabricantes do software que usam e alguns até são públicos (3), e o trabalho de recolha e processamento destes dados foi pago pelos contribuintes nos salários das pessoas que trabalharam nisto. Não há qualquer justificação para o LNEG impor estas restrições a quem financia o seu trabalho.

Finalmente, e talvez o mais revoltante, é isto: «Para fins académicos (teses de mestrado e de doutoramento) devidamente comprovados, haverá uma redução de 30% nos preços de venda da informação cartográfica digital.»(1) É isto que passa por serviço público no LNEG. Um aluno de geologia que precise de dados sobre a geologia de Portugal tem de pagar mais de 200€ por carta geológica, e ainda fica proibido de divulgar a informação.

O argumento para isto é, provavelmente, que se não cobrassem pelo acesso à informação teríamos de pagar mais para financiar o LNEG. Só que não adianta de nada pagarmos 90% do custo de algo se depois não temos acesso ao que pagámos. Isto é novamente o truque de ficarem com um pé no público outro no privado: os custos vão para o erário e os lucros ficam para eles. Devíamos acabar de vez com este cancro na economia. Qualquer organização que queira fazer negócio fica por sua conta e não recebe financiamento público. Qualquer organização que tenha financiamento público tem de disponibilizar o que produz a todos os cidadãos, que são quem lhe paga.

É irónico que se alguém disponibilizar gratuitamente estas cartas online é um pirata e criminoso enquanto que quem produz esta informação com financiamento público e depois a vende, com restrições, a quem já pagou o trabalho é empreendedor e protegido pela lei.

1- LNEG, Carta Geológica de Portugal, na escala de 1:25.000
2- Termo de Responsabilidade (pdf).
3- Por exemplo, o shapefile.

Se interessar a alguém, o enunciado do tal trabalho está aqui. Acabei por me basear num artigo de acesso aberto: J. C. Kullberg et al, “A bacia lusitaniana: estratigrafia, paleogeografia e tectónica”

terça-feira, outubro 16, 2012

A religião, a evolução e a pila do gorgulho.

Infelizmente, tenho tido pouco tempo para acompanhar algumas conversas interessantes nos comentários. Vou tentar remediar a lacuna começando por esta, sobre a origem da experiência religiosa. O Duarte Meira argumenta que a experiência religiosa humana tem de ter causas «independentes do universo espacio-temporal»(1) porque se simplesmente herdámos a nossa propensão religiosa dos nossos antepassados, e estes dos seus, temos uma regressão infinita cuja origem não podemos explicar. Falta aqui uma terceira opção, que me parece bastante evidente. A evolução dotou-nos de um cérebro muito especializado para lidar com seres inteligentes, pela necessidade de lidarmos uns com os outros. Assim, somos especialmente dotados para inferir o que os outros querem, para negociar, para prometer, ameaçar, trair ou ser fiéis. Com uma ferramenta dessas, não surpreende que tratemos tudo assim. Que insultemos o computador quando encrava, que expliquemos ao cão porque não deve comer coisas do chão e que roguemos pragas à chuvada que nos apanha à saída do autocarro. Daí a rezar, louvar e bajular deuses, e até sentir que há alguém do outro lado a ouvir, nem sequer é preciso dar um passo. Já temos tudo o que é preciso. Mas a ideia mais relevante, pelas vezes que já a vi proposta, é a de que a religião só pode ter surgido por um processo evolutivo se tiver trazido algum benefício à espécie humana. Esta inferência é inválida e é uma interpretação fundamentalmente errada da teoria da evolução.

A evolução de ideias – os memes – não corresponde exactamente à evolução biológica, mas a nossa propensão para a religiosidade parece ter muito de biológico e algumas ideias, como as das religiões, parecem propagar-se de forma parecida com a dos replicadores que a teoria da evolução descreve. Por isso, não rejeito que se aplique estes conceitos à origem da religiosidade humana e até das religiões em particular. O problema é julgar que a selecção natural só favorece o que é benéfico à propagação da espécie (2). Não é nada disso. Muitas características propagam-se pelo seu sucesso na competição com alternativas mesmo à custa do indivíduo, do grupo ou da espécie. Por exemplo, para optimizar a capacidade reprodutiva da espécie humana bastava um homem para cada cem mulheres ou mais. Isto dava uma taxa de reprodução muito maior e muito menos perdas por violência e guerras. Só que, nessas condições, um filho daria muito mais netos do que uma filha. Isto criaria uma pressão selectiva em favor de qualquer mutação que aumentasse o número de filhos até que a proporção de filhos e filhas fosse aproximadamente a de um para um. O mesmo se houvesse muito mais homens do que mulheres. Nesse caso, a maior parte dos filhos não traria netos, criando uma pressão selectiva para gerar mais filhas. O resultado é gerarmos, aproximadamente, o mesmo número de filhos e de filhas apesar de não ser o ideal para a espécie.

Um exemplo mais dramático é este.

Ouch/

Isto é o pénis do gorgulho do feijão, Callosobruchus maculatus (3). Os espinhos, como é fácil de perceber, causam danos à fêmea. Também não devem ser particularmente confortáveis para o macho. No entanto, como parecem servir para eliminar esperma de algum encontro anterior, dão uma vantagem reprodutiva ao macho que os tiver em detrimento do sucesso reprodutivo de outros machos, e eventualmente da fêmea também. Isto acaba por ser prejudicial à espécie, como um todo, mas é uma característica que se propaga pela sua vantagem competitiva. Outro exemplo é o da mosca da fruta, cujo macho produz no sémen uma substância tóxica que desencoraja mais encontros amorosos e ajuda a eliminar o sémen que tenha ficado de outros machos, com a desvantagem de reduzir significativamente a esperança de vida da fêmea (4).

Além de uma característica poder surgir e vingar mesmo sendo prejudicial ao indivíduo ou ao grupo, simplesmente por prejudicar mais os que não a tiverem, também pode propagar-se pela população por estar associada a características de sucesso. Por exemplo, haver muito mais pálpebras de pombo do que de águia imperial ibérica não é evidência da superioridade da pálpebra do pombo. A diferença está noutras características que dão grande vantagem ao pombo na reprodução em habitats infestados com humanos.

No caso da religiosidade e das religiões vemos claramente estes elementos. A facilidade com que adoptamos posturas religiosas surge naturalmente da nossa propensão para ver intenções e inteligência em tudo o que ocorre, e a tendência para inventar narrativas que relacionem, mesmo que de forma fictícia, as nossas experiências. E o sucesso de algumas religiões também está muito relacionado com características que beneficiam a sua propagação, mesmo em detrimento do hospedeiro. Os dogmas auto-justificados do livro que é Verdade porque lá está escrito que é Verdade, a exortação aos pais ensinarem aquela, e só aquela, religião aos filhos, os credos que não fazem sentido e que, por isso, têm de ser memorizados à letra, e assim por diante. Concordo que muito na nossa religião, desde a experiência religiosa em si aos detalhes de alguns dogmas, é fruto da evolução. Quer da evolução biológica, quer da evolução, num sentido mais lato, de ideias em competição por cérebros que as alberguem. Mas é uma grande confusão inferir daqui que há algo de vantajoso ou verdadeiro nestas experiências e nas religiões.

1- Comentários em Não é tanto o que faz mas o que é.
2- Por exemplo, neste argumento do Duarte Meira: «[a religiosidade] ou é favorável, ou é neutra, ou é desfavorável relativamente aos [processos] de selecção natural [...] Mas, obviamente, não tem sido desfavorável: o sapiens sobrevive e multiplicou-se. [e não é neutra] Logo, é ( tem sido) favorável.»
3- Not Exactly Rocket Science, Horrific beetle sex – why the most successful males have the spikiest penises.
4- Nature, Cost of mating in Drosophila melanogaster females is mediated by male accessory gland products, via (3).

Editado no dia 18 para corrigir uma gralha no "fiéis". Obrigado ao Zarolho pela correcção.

domingo, outubro 14, 2012

O caso ACAPOR.

No ano passado, a ACAPOR entregou à PGR duas mil queixas contra “piratas informáticos” identificados apenas pelo endereço IP, data e hora dos alegados crimes. Trinta queixas foram pela divulgação indevida dos emails da ACAPOR e as restantes por violação de direitos de autor. No mês passado a PGR notificou a ACAPOR de que todas as queixas tinham sido arquivadas (1). A ACAPOR critica que «o Ministério Público não requereu a identificação dos titulares dos IP’s apontados nas queixas porque tal seria “impossível em face do número de IP’s e do que em termos de trabalho material e gastos tal pressupõe (…)” . [P]ara justificar a inércia de nada fazer existem vários apontamentos trágico-cómicos, como seja [...] não ser público e notório que os titulares das obras não cedem os direitos para que as mesmas sejam partilhadas em redes P2P [...] ou ainda a tentativa de fazer acreditar que nenhum crime cometido na internet pode ser investigado face à “difusão do Wireless e a facilidade de acesso à internet, designadamente por recurso aos Cybercafés”» (2).

O despacho da PGR é bem mais razoável do que a ACAPOR dá a entender. Primeiro, as trinta queixas de violação de correspondência privada foram arquivadas porque a ACAPOR não forneceu à PGR os elementos pedidos pelos investigadores para averiguar se a correspondência era mesmo privada ou apenas assuntos da associação. Sem a colaboração do queixoso, não me parece estranho que a investigação seja arquivada. Aparentemente, a ACAPOR concorda, visto que no comunicado apenas menciona as queixas por violação de direitos de autor.

A ponderação dos custos da investigação e probabilidade de identificar os culpados também é correcta, e penso que a ACAPOR até concordaria se os detalhes fossem diferentes. Por exemplo, segundo o código penal, a condução perigosa é punível com até três anos de prisão, a mesma moldura penal da partilha de filmes e músicas. Mas se entregar na PGR queixas, por condução perigosa, contra dois mil indivíduos desconhecidos e identificados apenas pela matrícula, data e hora de cada ocorrência, suspeito que me mandam dar uma curva. A matrícula identifica o carro e não o condutor, investigar dois mil proprietários de automóveis para determinar se estavam a conduzir nos momentos referidos teria um custo enorme, e a probabilidade de conseguir provar o crime específico que a queixa refere é quase nula. Não se justifica o custo de tal investigação. É claro que se seguissem estes condutores durante uns tempos provavelmente iriam apanhá-los em flagrante numa contra-ordenação qualquer, mas isso já não teria nada que ver com a investigação dos crimes mencionados na queixa.

Além disso, enquanto a condução perigosa é sempre crime e uma matrícula corresponde sempre ao mesmo carro, a partilha de ficheiros só é crime se não for autorizada e os endereços IP são quase todos dinâmicos. Não detendo direitos sobre os ficheiros alegadamente partilhados, a ACAPOR não tem legitimidade para decidir se há ou não crime na partilha, e a investigação criminal não pode assumi-lo só porque a ACAPOR o diz. Além disso, a ACAPOR recolheu os endereços “de sites”(3), provavelmente trackers, o que é pouco fiável porque qualquer pessoa pode submeter qualquer endereço nesses “sites”, mesmo que não seja o seu, e cada endereço pode ficar registado no “site” mesmo depois de já ter sido atribuído a outra pessoa. Com um fundamento tão fraco e evidências tão dúbias, parece-me justo que as queixas da ACAPOR tenham sido arquivadas. Além disso, por razões práticas, não é boa ideia incentivar este comportamento de enviar milhares de queixas indiscriminadas de cada vez.

Agora a ACAPOR pergunta «Quem vai querer alugar um DVD se pode na mesma hora sacá-lo da internet e vê-lo, sem pagar nada a ninguém, tudo na máxima legalidade?» Eu diria que praticamente ninguém. Mas este é um problema comercial para ser resolvido pelos comerciantes. Não é um problema para leis, polícias e tribunais. E o próprio comunicado da ACAPOR sugere uma medida imediata. «[E]m Portugal, na realidade, quem paga para ter DVDs, Cds, livros, videojogos, programas informáticos, ou é estúpido ou é benemérito. O problema é que a indústria depende dos estúpidos e dos beneméritos para continuar o seu caminho.» Eu não tenho muito jeito para o negócio mas, intuitivamente, parece-me que chamar estúpidos aos clientes não é boa ideia. Especialmente quando não o são.

Quem não é estúpido sabe que o serviço de distribuir filmes, músicas e software não tem qualquer valor. O serviço que o clube de vídeo presta vale exactamente zero, e ainda custa o tempo e trabalho de lá ir. Quem gosta de música, livros e programas informáticos sabe que o que custa, e vale a pena pagar, é o serviço de criar as obras. O que vale é o original, que é só um, o primeiro de todos. Não são as cópias que os distribuidores rotulam de “originais” só porque cobram dinheiro por elas mas que são tão cópias como quaisquer outras. É precisamente porque não são estúpidos que muitos estão dispostos a pagar aos criadores para criarem (4). A ACAPOR quer salvar pela multa o seu negócio inútil da distribuição, entregando a fiscalização da Internet «a uma entidade administrativa»(2). Além de ser uma intromissão inaceitável na nossa vida pessoal, isto não resolve nada. A indústria clássica de distribuição está ultrapassada e não há lei que a salve. Por outro lado, a criatividade floresce graças à mesma tecnologia que está a lixar a ACAPOR. Se querem ter um negócio com sucesso vendam alguma coisa que valha a pena comprar. Sejam criativos. Porque isso de vender o acesso à cópia já deu o que tinha a dar.

1- Despacho disponível no Público, DespachoDIAP.pdf.
2- ACAPOR, Ministério Público torna Portugal no único país da União Europeia onde partilhar filmes na Net é legal
3- Fórum do PPP, ACAPOR ameaça processar Partido Pirata por calúnia.
4- Por exemplo, o Kickstarter, em três anos e pouco, angariou 350 milhões de dólares de dois milhões e meio de pessoas para financiar trinta mil projectos.

domingo, outubro 07, 2012

Treta da semana: humano ma non troppo.

«A razão mais sublime da dignidade humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus. […] O homem é, por natureza e vocação, um ser religioso. Vindo de Deus e caminhando para Deus, o homem não vive uma vida plenamente humana senão na medida em que livremente viver a sua relação com Deus.» Catecismo da Igreja Católica (1)

«Para se reencontrar a si mesmo e reassumir a própria identidade verdadeiramente, para viver à altura do próprio ser, o homem deve voltar a reconhecer-se criatura, dependente de Deus. Ao reconhecimento desta dependência — que no fundo é a descoberta jubilosa de ser filho de Deus — está ligada a possibilidade de uma vida deveras livre e plena.» Bento XVI (2)

Segundo o que ensina a Igreja Católica, e opina o seu dirigente, eu não sou plenamente humano, não estou à altura do próprio ser nem poderei viver de forma livre e plena. Enfim, é a opinião deles; têm direito a ela. E até explica porque é que o diálogo entre católicos e descrentes é tão improdutivo. Talvez se um dia me considerarem tão humano quanto eles me expliquem melhor como sabem tanto acerca destas coisas. Há, no entanto, uma coisa que me preocupa. O Programa de Educação Moral e Religiosa Católica tem como primeiro ponto das Competências Específicas, em todas as unidades lectivas, «Reconhecer, à luz da mensagem cristã, a dignidade da pessoa humana»(3). Será que os meus impostos servem para ensinar às crianças que eu sou menos que plenamente humano?

Via Michael Nugent.

1 - Catecismo da Igreja Católica, Primeira Parte.
2- Mensagem do papa bento XVI aos participantes no XXXIII meeting para a amizade entre os povos.
3- Programa de Educação Moral e Religiosa Católica (pdf)

sábado, outubro 06, 2012

Consequencialismo.

Há uns posts atrás propus que a religião é intrinsecamente má, avaliando-a de forma independente das suas consequências. A razão principal para isto é que as consequências da religião, boas ou más, nem são consequências necessárias de ser religioso nem necessitam da religião como causa. Mas o João Vasco discordou, «Como consequencialista», de que eu separasse «as consequências da religião "na prática" de uma avaliação dos seus méritos» (1). Eu também sou consequencialista e não vejo problema nesta separação, pelo que devemos estar a dizer coisas diferentes com este termo. Como não sei exactamente onde divergimos, vou tentar explicar o que eu entendo por consequencialismo.

Primeiro, que não é uma forma de determinar o valor das coisas. Se avaliarmos tudo pelas suas consequências não chegamos a conclusão nenhuma porque a cadeia de consequências é infinita. A única forma de atribuir valor a um certo acontecimento ou estado é pelos seus atributos e independentemente das consequências. É verdade que um acontecimento pode ter consequências com valor, mas cada uma dessas terá o seu valor intrínseco. O consequencialismo não diz qual é esse valor. O consequencialismo é a ideia de que uma decisão vale pelo valor de todas as suas consequências. Depois de estimarmos as consequências de cada uma das alternativas e sabermos o valor de cada uma dessas consequências é que o consequencialismo permite atribuir a cada escolha possível o valor total estimado das suas consequências. Por exemplo, um consequencialista avaliará a decisão de bombardear uma fábrica de armamento considerando o número de vidas salvas por privar o inimigo dessas armas e o número de vidas perdidas pelas mortes de civis que vivam ou trabalhem na zona bombardeada. Em contraste, a doutrina do duplo efeito, por exemplo, dirá que o efeito pretendido, de destruir as armas, conta mais do que o efeito secundário, não intencional, de matar civis. Isto não implica qualquer diferença no valor atribuído às vidas em causa. A diferença está apenas na forma como esses valores são agregados para avaliar a decisão.

Este ponto é importante para a nossa discussão porque o consequencialismo, e doutrinas concorrentes, não servem para avaliar cada acontecimento ou estado em si. Apenas agregam valores pré-determinados. Assim, o consequencialismo pode ser útil para decidir se adoptamos uma religião – nesse caso, concordo em considerar também as consequências – mas não serve para estimar o valor da religião em si. Essa estimativa tem de preceder o consequencialismo.

Também seria má ideia assumir uma abordagem consequencialista para avaliar a religião porque muitos religiosos não são consequencialistas. A maioria parece preferir alternativas como a do duplo efeito, dos direitos naturais, da deontologia kantiana, éticas de virtude e assim por diante. Além disso, para muitos religiosos a religião não é um meio para obter algo mas um fim em si mesmo. Por isso, o melhor é focar valores mais consensuais e ficar-me pelo que a religião é, independentemente das consequências. O argumento de que a religião é má porque implica aceitar, como virtude, crenças impossíveis de testar vindas de fontes que não podem ser validadas é forte porque todos os religiosos rejeitam todas as religiões, excepto a sua, precisamente por concordarem que isto é má ideia. Um argumento assente em premissas consensuais é melhor do que assumir que todos são consequencialistas como eu. O que, além disso, não resolveria o problema fundamental de avaliar a religião em geral. Só diria como agregar os valores de cada religião em particular com os valores das suas consequências.

O consequencialismo é útil para regular a prática religiosa. Nesse caso estou de acordo com o João Vasco. É importante considerar as consequências, principalmente para terceiros. Mas isso é um problema diferente. Uma coisa é respeitar o direito de um adulto informado rejeitar uma transfusão de sangue, mesmo que morra por isso, só porque acredita que um deus assim o deseja. Outra, bem diferente, é avaliar o mérito de tomar decisões com base nessas crenças. É neste último ponto que se encontra a maior divergência entre crentes e ateus. Os ateus acham que é má ideia basear-se na fé em alegadas autoridades do sobrenatural, seja qual for a religião. Os religiosos, por seu lado, acham que isso é má ideia quando se trata das outras religiões, mas não no que toca à sua. Que todos acham que isto é má ideia na maioria dos casos, pelo menos, é um bom ponto de partida para o diálogo. Muito melhor do que o consequencialismo.

1- Comentários a A Incongruência faz mal

sexta-feira, outubro 05, 2012

Treta da semana (passada): life coaching.

Segundo a página no site da Akademia do Ser, o life coaching «tem como princípio a exploração dos recursos inerentes ao individuo, tendo em vista o reequilíbrio da vida, o atingir de objetivos, melhorar a comunicação e a definição de um caminho nas várias áreas da vida»(1). Parecem-me bons princípios. Menos clara, e mais duvidosa, é a afirmação de que «Utilizando conceitos da psicologia, filosofia, espiritualidade, entre outros, o LifeCoaching, permite um trabalho a nível individual, sendo facilitador da mudança e potencializador do desempenho.» Para tentar perceber como se potencializa o desempenho com estes conceitos, e o que é o life coaching na prática, fui dar uma olhada nos vários treinadores de vida que a Akademia do Ser recomenda. A sua formação e especialização é bastante diversificada. O Pedro Sciaccaluga (2) é engenheiro civil e certificado pela European Coaching Association (3). A Lígia Neves (4) tem experiência em marketing, um curso de PNL e uma formação em Eneagrama (5). Parece ser também a mais careira, cobrando até 65€ por cada treino de vida, se bem que em treinos de hora e meia. O Pedro leva 60€ por uma hora, por isso, para quem estiver destreinado da vida, a Lígia sai mais em conta. A Susana Vieira é a mais económica, só 25€ por consulta, mas não sei qual a duração dos seus treinos (6). Além de ter «muito gosto e profundo respeito pelo ser humano», o que é inegavelmente bom, é certificada pela ECIT e pela CCF e também dá consultas de florais de Bach (estas 35€, mas com os florais incluídos).

Se bem que esta amostra de treinadores já me tenha permitido formar uma opinião acerca do life coaching, foi na página da Maria Melo, uma das fundadoras do site, que encontrei o indicador mais claro. Segundo esta, a eficácia do treino de vida foi empiricamente comprovada: «Em 1979 foi realizado um estudo com os alunos de Harvard e apenas 3% dos finalistas tinha definido e escrito objectivos, 13% tinha definido objectivos mas não os tinha escrito e 84% não tinham qualquer objectivo definido. 10 Anos mais tarde os mesmos estudantes foram entrevistados, o grupo dos 13 % que tinha definido mas não tinhas escrito os objectivos ganhava o dobro do grupo dos 84% que não tinham qualquer objectivo definido. O grupo dos 3% que tinham definido e registado os objectivos ganhava em média 10 vezes mais do que os outros.»(7) Estes resultados são uma demonstração clara e objectiva de que as técnicas do life coaching funcionam. Só é pena serem fictícios.

O estudo mencionado, sem qualquer referência bibliográfica, é treta (8). Por vezes referem que foi feito em 1953, outras em 1979, umas vezes em Yale outras em Harvard, mas sempre sem qualquer correspondência com a realidade. O que há é um estudo de 2007, da Dominican University of California, que tentou testar a eficácia de três métodos base do tal coaching, incluindo esse de escrever os objectivos. Pediram a alguns voluntários para escrever os seus objectivos para as quatro semanas seguintes, a outros que só pensassem nos objectivos e, findo esse período, pediram para cada um classificar o sucesso que tinha tido a atingir esses objectivos. O resultado foi que quem tinha escrito relatava um maior sucesso, em média, do que quem só tinha pensado. A diferença foi modesta e totalmente subjectiva, ao contrário do que seria se tivessem um salário dez vezes maior. Além disso, o estudo não permite distinguir várias explicações alternativas. Por exemplo, se quem escrevia atingia mais objectivos do que quem só pensava nos seus ou se apenas arriscava menos, por ter de escrever, eliminando da lista os objectivos menos realistas (9).

Subjectivamente, tanto os testemunhos positivos na página da Maria Melo como os testemunhos negativos (10) indicam que o contacto íntimo com o “treinador” pode ter um grande impacto no cliente. Afinal, ter alguém que oiça e dê algumas palavras de apoio, mesmo que pago à hora, pode ser muito importante para algumas pessoas. Se esse impacto é, em última análise, positivo ou negativo penso que será sobretudo uma questão de sorte. Parece-me que é como escolher alguém que não se conhece de lado nenhum e tratá-lo logo como um amigo de confiança. Mesmo pagando, é arriscado. Objectivamente, suspeito que os resultados serão tão fiáveis como os do tal estudo de Harvard.

Mais fundamental do que isto, parece-me haver algo errado, e até contraditório, em contratar-se um treinador para «desenvolver o seu potencial máximo como pessoa». Errado porque desenvolver o potencial como pessoa não é como desenvolver o potencial na patinagem, matemática ou mecânica de pesados. Nestas áreas há medidas claras de desempenho que o perito pode usar para avaliar e orientar. Não é claro que critérios o life coach pode usar para saber se o cliente está a ficar mais pessoa ou menos pessoa durante o treino. E é contraditório porque ser pessoa é ser-se a si próprio. Não quero pôr em causa as competências da Maria Melo em coaching, PNL, Filosofia de Vida ou lá o que seja, se bem que recomendava um pouco mais de cuidado com as referências bibliográficas. Mas não me parece que seja a pessoa mais indicada para me dizer como eu melhor posso ser eu. Julgo até que descobrir isso por si próprio é a parte mais importante de ser pessoa.

1- Akademia do Ser, Coaching.
2- Akademia do Ser, Pedro Sciaccaluga
3- ECA, Potugal
4- Akademia do Ser, Lígia Neves
5- Wikipedia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Eneagrama de Personalidade
6- Akademia do Ser, Susana Vieira.
7- Akademia do Ser, Maria Melo
8- Mike Morrisson, RapidBI, Harvard Yale Written Goals Study – fact or fiction?
9- Resumo aqui, em pdf, via (8).
10- Por exemplo, este

segunda-feira, outubro 01, 2012

Não é tanto o que faz, mas o que é.

Há dias defendi que a religião, enquanto categoria genérica, não deve ser avaliada por aspectos circunstanciais como atentados bombistas ou actos de caridade. Isso serve para avaliar religiões específicas, em contextos sociais e culturais específicos, mas não para avaliar a religião em geral. Como isto motivou críticas de ambos os lados, quer do João Vasco quer do Alfredo Dinis, penso que merece mais umas linhas.

O Alfredo Dinis escreveu-me que «Dificilmente encontrarás alguma religião que não tenha como ponto fundamental a qualidade da relação com os outros» (1) e o João Vasco que «a religião influencia as acções das pessoas. [...N]a medida em que as influenciar, isso é relevante para aferir se a religião é perniciosa ou benéfica. Tentar compreender a influência da religião "na prática" é o mais importante para responder a essa questão.»(2) O defeito destas objecções é que ambas se afastam do conceito genérico de religião e se aplicam apenas a casos particulares. Não é impossível encontrar religiões que não tenham «como ponto fundamental a qualidade da relação com os outros.» O budismo, por exemplo, visa libertar-nos do ciclo ilusório de sofrimento e reencarnação perdendo o apego às coisas, às pessoas e ao próprio eu. Só pelo desapego total se chega ao nirvana. A relação com os outros, tal como a crença no Espírito Santo ou na reencarnação, ou a interpretação literal do antigo testamento, podem ser fundamentais numa religião em particular mas não servem para distinguir entre o que é religião e o que não é religião. Também a influência de cada religião, na prática, envolve muito mais factores do que aquilo que define a categoria de religião. Factores económicos, sociais, culturais e assim por diante. Portanto, ainda que os aspectos que o Alfredo Dinis e o João Vasco apontam sejam relevantes para avaliar certas religiões em certos contextos específicos, não servem para decidir se a religião em si é coisa boa ou má. Ou seja, dirão que é boa por ser caridade ou má por rebentar bombas mas ficam sem dizer se, tudo o resto sendo constante, fica melhor ou pior por ser religião.

O que proponho é que, mesmo sem especificar os dogmas em detalhe e sem saber se uma certa religião vai dar em atentados ou caridade, podemos ainda assim formar um juízo de valor acerca da religião em si avaliando as características essenciais para que seja religião. Primeiro, a crença em algo sobrenatural, que distingue religião de ideologia política ou outros sistemas filosóficos. Em segundo lugar, a confiança numa suposta autoridade cuja fiabilidade não pode ser verificada. Essa fé é essencial para haver coesão de crenças que não podem ser validadas de forma independente. Finalmente, a atribuição de um valor moral a essas crenças, necessária para promover uma superstição corriqueira ao estatuto de religião. Se a crença é assumida como meramente opcional, desprovida de qualquer mérito ou virtude, não será uma religião.

São estas características que me levam a dizer que a religião é má, independentemente de outros efeitos que possa ter. A correlação com o terrorismo indica que certas religiões, em certas condições sociais, culturais e económicas, contribuem para que certas pessoas façam coisas más. Mas isso é nesses casos. Avaliar a religião, em geral, pelo terrorismo é como avaliar o etanol pelo perigo de conduzir bêbado. O problema é conduzir bêbado e não a molécula em si. Além disso, o terrorismo é mau por ser terrorismo, seja religioso ou não, e não é por medo de me suicidar com uma bomba que rejeito a religião. Por outro lado, as coisas boas que atribuem à religião não precisam de religião. Com vacinas, democracia, justiça, educação, segurança social e afins, a sociedade moderna ajuda muito mais gente, e muito melhor, do que todas as religiões conseguiram ajudar durante milénios. Não é preciso acreditar no sobrenatural ou nos padres para fazer o bem. Como a relação entre a religião e o comportamento de cada um é tão sensível a tantos outros factores temos de separar estas duas questões. Uma é o valor de uma religião específica num certo contexto social e cultural. Por exemplo, o fundamentalismo islâmico no médio oriente ou o catolicismo medieval. A outra é decidir se, sendo tudo o resto constante, a religião em si é uma coisa boa, má ou neutra. Numa sociedade secularizada como a nossa parece-me que esta questão pode ser tão ou mais importante do que a primeira.

Neste sentido, eu considero que a religião é uma coisa má porque é má ideia acreditar em coisas para as quais não há evidências, aceitar como autoridade fontes cuja fiabilidade não pode ser confirmada e julgar que há virtude em acreditar por fé. O Alfredo acusou-me de preferir «acentuar o aspecto dogmático, mas as diversas religiões têm dogmas diferentes». É precisamente isso que digo. Eu não considero a religião, enquanto categoria, uma coisa má por ter este ou aquele dogma específico. Considero-a má pela forma como desencanta os dogmas, quaisquer que sejam. Também é falsa a acusação de que «Não poderás nunca reconhecer que alguma religião tem algo de inerentemente positivo». Eu reconheço que, por exemplo, “não matarás” é uma prescrição muito positiva. Mas o que defendo é que, para essas coisas, não é preciso religião nenhuma. É o velho problema que já vem de Platão: se reconhecemos que uma religião tem aspectos positivos, então é porque conseguimos reconhecê-los como positivos sem precisar da religião, independentemente desta. Caso contrário o raciocínio seria circular. O problema da religião é que não há nada de positivo na religião que precise da religião para ser positivo e a forma religiosa de lá chegar é em si negativa. Quanto ao João Vasco, a nossa divergência parece dever-se principalmente à aplicação do consequencialismo. O consequencialismo é uma boa forma de avaliar regras morais, mas não serve para avaliar tudo. Só que isso tem de ficar para outro post. Para este adianto apenas que, aqui em Portugal e neste momento, penso que o principal defeito da religião está nos seus princípios fundamentais e não na possibilidade dos religiosos desatarem a matar gente ou coisa assim.

* Há quem acrescente coisas como rituais e tradições, mas isso não é importante para esta discussão nem me parece essencial.

1- Comentário em Os equívocos fazem mal.
2- Comentário em A incongruência faz mal.