sábado, setembro 29, 2012

Treta da semana (passada): a fábula.

No domingo passado, o Miguel Macedo disse que Portugal «não pode continuar um país de muitas cigarras e poucas formigas», aludindo à fábula que, disse, é «pedagogia para os tempos difíceis»(1). Explicou mais tarde que a sua intenção foi fazer «uma homenagem ao trabalho de todos aqueles que criam riqueza no país […] aos trabalhadores por conta de outrem e aos pequenos e médios empresários, comerciantes e agricultores, que, pelo trabalho de formiga que todos os dias fazem, criam riqueza, mantêm empregos e criam postos de trabalho em Portugal» (2). Ou não percebeu a fábula ou é a treta do costume.

A fábula da formiga e da cigarra tem várias variantes, mas sempre a mesma mensagem. Quem é prudente trabalha, poupa e arrecada quando a vida corre bem. Assim, tem com que se safar quando chega o inverno. Quem é mandrião trama-se. Isto é pedagogia, mas não é para os tempos difíceis. No inverno já não há nada a fazer. Também não é uma homenagem ao esforço da formiga. É um aviso. E não tem nada que ver com a nossa sociedade.

Até há poucos anos, as formigas europeias foram arrecadando o que ganhavam pelo seu trabalho. Infelizmente, durante esse verão, nem todas as cigarras andaram por aí a cantarolar. Se assim fosse, estávamos bem. Na Europa temos que chegue para pagar comida e abrigo a quem precisar para não passar fome e frio. É bem mais barato do que as negociatas das privatizações, do BPN, das PPP e dos submarinos. O problema é que, ao contrário da formiga da fábula, as formigas da Europa têm de guardar as poupanças nos bancos e não no formigueiro. E os bancos são das cigarras. Como as formigas alemãs trabalham bem, as cigarras alemãs viram-se com uma dispensa cheia de provisões. Em conjunto com as cigarras portuguesas, espanholas, gregas e irlandesas, desataram a apostar as poupanças das formigas. Nem interessava em quê. Casas, estradas, empresas, o que calhasse, porque o importante não era dar lucro a longo prazo. Era sacar comissões até rebentar a bolha. Afinal, o dinheiro era das formigas.

As cigarras dos governos foram fazendo o mesmo. Não a troco de comissões, que seria ilegal, mas a troco de cargos de administração e consultoria, que é apenas imoral. Os impostos das formigas seriam, em teoria, parte do pé-de-meia que lhes valeria se alguma coisa corresse mal. Hospitais, pensões, apoios sociais. Mas as cigarras no governo decidiram que isso é desperdício. É despesa. Por isso toca a cortar nos subsídios, serviços e salários, a vender o que é de todos e a meter ao bolso o que se puder. E depois há que recapitalizar os bancos. Temos de fazer mais esse sacrifício porque as desgraçadas das cigarras banqueiras estão a ficar sem dinheiro dos outros para apostar e é óbvio que não vão meter do delas. Isso seria imprudente.

O Miguel Macedo quer que nos preocupemos com o número de cigarras. Quer mais formigas a trabalhar para ele. Mas o número de cigarras importa pouco. O Miguel Macedo até pode continuar na política, a receber o ordenado de ministro ou deputado e a cantar até que a voz lhe doa. Mesmo com ajudas de custo isso paga-se bem e sempre é menos um a arrumar carros. O que é mesmo importante é as cigarras como ele devolverem a chave da dispensa, porque enquanto andarem a desbaratar o que as formigas arrecadam não há austeridade nem esforço que nos safe.

1- Público, Portugal não pode ser “país de muitas cigarras e poucas formigas”, diz Miguel Macedo
2- Público, Miguel Macedo quis homenagear trabalhadores quando falou de cigarras e formigas

quinta-feira, setembro 27, 2012

A incongruência faz mal.

O Alfredo Dinis escreveu vários posts intitulados «O desconhecimento faz mal»(1) com o intuito de refutar a ideia de que a religião é má. Para isso, apresenta «coisas boas que se fazem em nome da religião» e que, pelo título, deve presumir serem desconhecidas dos críticos da religião. São exemplos de trabalho voluntário como o do “Serviço Jesuíta aos Refugiados”, acompanhamento de crianças, apoio a toxicodependentes e assim por diante. São realmente coisas boas e são praticadas por alguns religiosos, mas parece-me que o esforço do Alfredo tem o efeito contrário ao pretendido.

A cardiologia é uma coisa boa. Se alguém me pedir para justificar porquê direi que é boa por ser bom compreender, prevenir e tratar problemas cardíacos. Ou seja, a cardiologia é boa porque é bom aquilo que é essencial na cardiologia. Mas se, em vez desta justificação, eu dissesse que a cardiologia é boa porque há cardiologistas que fazem voluntariado em programas de acção social, cuidam de crianças nas férias e dão apoio a refugiados seria justo perguntar como é que isso faz da cardiologia uma coisa boa. É que nem é preciso ser cardiologista para fazer isso nem é preciso fazer disso para ser cardiologista. São coisas independentes.

Os próprios apologistas da religião invocam esta independência sempre que os religiosos fazem algo reprovável. Por exemplo, a propósito da violência dos muçulmanos por causa do filme e das caricaturas, o Miguel Panão escreveu que isto não indica que a religião seja má porque «Não foi a religião que praticou o ato terrorista, nem sequer se tratou de ato religioso»(2). Apesar desta violência dos muçulmanos cumprir o critério do Alfredo Dinis, de coisas «que se fazem em nome da religião – institucionalmente, e não apenas com base nos sentimentos religiosos subjectivos», concordo com o Miguel Panão. Não é por isto que se pode concluir que a religião é má porque nem é preciso ser religioso para praticar estes actos violentos nem é preciso praticar destes actos violentos para ser religioso. Mesmo que a religião seja usada para levar pessoas a cometer actos violentos, esta violência é apenas um aspecto mau da forma como alguns usam a religião e não algo essencial na religião.

Mas o mesmo se aplica a todos os exemplos do Alfredo. Ajudar as crianças, os pobres, os enfermos e os refugiados são aspectos bons da forma como alguns usam a religião. Mas não são aspectos essenciais da religião. É possível ser-se religioso sem fazer nada disto e é possível fazer estas coisas sem se ser religioso. Na verdade, em sociedades como a nossa o principal agente deste tipo de acções é o Estado. Os serviços de saúde, as escolas públicas, os planos nacionais de pensões e os fundos de desenvolvimento regional fazem muito mais por muito mais gente do que as caridades religiosas. E sem ser preciso religião.

Para avaliar se a religião é uma coisa boa ou má temos de ver se são boas ou más as suas características intrínsecas. E essas o Alfredo evita sequer mencionar, razão pela qual me parece que os exemplos dele indicam o contrário do que ele gostaria que indicassem. Uma destas características é a crença firme em alegações factuais acerca de entidades sobrenaturais, alegações para as quais não há quaisquer evidências. A reencarnação, a origem divina do corão, a alma, a vida eterna e assim por diante. Outra característica das religiões é que estas crenças são justificadas pela autoridade de fontes que, em rigor, não sabem mais acerca disto do que qualquer outra pessoa. Os sacerdotes que interpretam os livros sagrados, os gurus infalíveis, os representantes dos deuses e essa malta toda sabem exactamente zero acerca das entidades sobrenaturais de que se dizem peritos. Finalmente, é parte essencial da religião associar este tipo de crença um forte valor moral. Não se crê em Deus apenas por julgar que ele existe, tal como se crê que a Lua tem uma parte que não vemos daqui da Terra. Crê-se em Deus, principalmente, porque é imoral duvidar da sua existência.

Estar convencido de coisas sem fundamento pela falsa autoridade de quem não sabe nada do assunto e, ainda por cima, julgar que é virtude ter tais crenças e imoral livrar-se delas é uma coisa má por si. É um erro, uma confusão entre factos e valores e uma oportunidade perdida para pensar nas coisas de forma adequada. É verdade que estes erros podem ter consequências graves para todos quando estas pessoas são levadas a fazer coisas como queimar embaixadas. No entanto, isso é um factor extrínseco à religião. Não é por isso que eu digo que a religião é uma coisa má. Também é verdade que se pode usar estas convicções para levar as pessoas a fazer coisas boas mas, tal como com as coisas más, isso também não é parte essencial da religião. Não é por isso que se pode dizer que a religião é uma coisa boa.

A cardiologia é boa pelo mérito das suas características essenciais. Continuaria a ser boa mesmo que alguns cardiologistas queimassem embaixadas e não seria melhor do que é só por alguns cardiologistas ajudarem a cuidar de crianças pobres durante as férias. Da mesma forma, a religião é má pelo demérito das suas características essenciais. Não é intrinsecamente pior só porque alguns religiosos matam em nome da sua religião, mas continua a ser má mesmo que alguns religiosos ajudem os pobrezinhos em nome da sua religião. Os exemplos do Alfredo Dinis não contribuem nada para determinar se a religião é intrinsecamente boa ou má. Esta incongruência mais parece uma admissão de que aquilo que faz uma religião ser religião não tem nada de bom.

1- Alfredo Dinis, o desconhecimento faz mal (5), o desconhecimento faz mal (4), , 3, 2 e 1.
2- Miguel Panão, Pessoas mal formadas, não que a religião seja má.

domingo, setembro 23, 2012

Os ricos que paguem a crise.

É um chavão gasto mas, neste momento, faz sentido. Logo à partida porque aos pobres é obviamente impossível pagar seja o que for. Cobrar a maior fatia aos remediados também já se viu que não funciona. Sem grande surpresa, aliás. Economicamente, também seria uma boa medida. Um dos principais problemas estruturais da nossa economia é a má distribuição de rendimentos e da riqueza em geral (1). Além do impacto negativo a nível psicológico e social, da maior criminalidade à apatia cívica, esta injustiça constitutiva também deprime a economia. Um mercado livre funciona melhor quando o poder de compra está bem distribuído e pior quando uma minoria acumula muito mais riqueza do que quer gastar enquanto a maioria não consegue comprar quase nada. Aumentar os impostos aos ricos em vez de cortar prestações aos pobres seria economicamente mais proveitoso do que a “austeridade” defendida por quem anda de motorista.

Moralmente, também seria o mais justo, não só porque custa menos pagar quando se tem mais mas, especialmente, porque esta crise foi criada pelos ricos e para os ricos. Tanto a crise bancária internacional como a alavancagem do nosso sector privado e até a nossa dívida pública se devem principalmente a acções tomadas pelos ricos em seu proveito. O problema da nossa dívida pública está muito mais nos negócios como estádios, autoestradas, BPN, submarinos e PPP do que no dinheiro “esbanjado” a melhorar a educação ou a reduzir a mortalidade infantil.

Sobretudo, os ricos devem pagar a crise porque esta crise do Euro é, essencialmente, um problema de disparidades económicas regionais. Há muitos factores que contribuem para isto. Em Celorico de Basto, devido à infraestrutura e densidade populacional, o custo da educação por aluno, da saúde por utente e da canalização por habitação é muito maior do que em Lisboa. A economia predominantemente rural também faz com que o poder de compra e a produtividade em Celorico de Celorico de Basto sejam muito inferiores às de Lisboa. Perante isto há duas opções. Ou se exige que as pessoas de Celorico de Basto vivam de acordo com as suas possibilidades e abdiquem de luxos como escolas, médicos ou água canalizada; ou se admite que vivam acima do que podem pagar transferindo para lá dinheiro cobrado aos contribuintes de zonas mais ricas. Penso não ser preciso argumentar em favor desta última. É fácil perceber que atacar a desvantagem económica de Celorico de Basto aplicando um regime estrito de austeridade e eliminação de “gorduras” seria, além de injusto, uma parvoíce que só agravaria o problema fundamental.

O problema fundamental na União Europeia é o mesmo, só que entre países em vez de concelhos. Há países com melhor infraestrutura, mão de obra mais qualificada, melhor legislação e sociedades mais justas onde as pessoas acreditam que vale a pena ser honesto. Por exemplo, na Alemanha o ministro da defesa demitiu-se depois de se ter descoberto que tinha plagiado partes da sua dissertação de doutoramento (2). Por cá até lhes pode sair a licenciatura na farinha Amparo que poucos se incomodam. É preciso atacar estas disparidades resolvendo os problemas que se possa resolver, como a educação e a justiça, e compensando os que não têm remédio, como estar na periferia e ter menos recursos naturais. Mas isto não se faz cortando as pensões aos reformados de Celorico de Basto, fechando as escolas e aumentando os impostos aos seus trabalhadores. Estes problemas só se resolvem com investimento público. Ou seja, pondo os ricos a pagar.

Editado às 19:15 para corrigir o Celorico, que é de Basto e não de Baixo, e as sociedades. Obrigado ao Zarolho e ao João Vasco pelas correcções.

1- Económico, Portugal entre os países mais desiguais na distribuição de riqueza
2- Guardian, German defence minister resigns in PhD plagiarism row

sexta-feira, setembro 21, 2012

Treta da semana (passada): o filme.

“A inocência dos muçulmanos” é um filme horrível que, dizem, insulta Maomé (1). O filme foi produzido inicialmente com o título “Guerreiro do deserto” mas depois, sem conhecimento da maioria dos participantes, foi alterado para dizer mal de Maomé (2). A licença de filmagem foi obtida por uma organização fundamentalista cristã e o filme produzido foi por um cristão copta, aparentemente para chatear os muçulmanos (3,4). Depois de uns meses esquecido no YouTube, agora parece que suscita protestos violentos. Nos países mais civilizados, onde a religião tem menos poder, repudia-se a violência mas manifesta-se solidariedade com os muçulmanos ofendidos. No Brasil, até os participantes na Caminhada pela Liberdade Religiosa, ironicamente, condenaram o filme porque «desrespeita o profeta Muhammad»(5). Liberdade sim, mas respeitinho. Nos países e grupos onde o Islão tem mais influência o filme é desculpa para partir, incendiar e matar. Não é por ser uma religião mais violenta do que as outras, porque a violência de qualquer religião depende apenas do que lhe deixam fazer. Até o budismo, agora tão fofinho, foi bem tramado quando estava por cima (6). Também não é por a violência vir de quem não entende o verdadeiro Islão. Os que partem, incendeiam e matam são muçulmanos desde que nasceram. Têm tanta legitimidade como qualquer outro para dizer o que é verdadeiro na sua religião. O problema fundamental é a deturpação generalizada do tal “respeito”.

O respeito é a aversão a fazer mal ao outro. Portanto, não faz sentido respeitar crenças ou ideologias. Esse chavão comum, em qualquer discussão sobre crenças, de se dizer respeitador da opinião contrária é absurdo. Pode ser boa educação, como tirar o chapéu, mas não passa de um berloque retórico (7). E quando é levado a sério é uma chatice porque respeitar opiniões implica desrespeitar quem delas discorde. Eu não respeito o islamismo, nem o cristianismo nem o ateísmo, tal como não respeito a regra de três simples, nem a raiz quadrada de dois nem a Serra de Montejunto. Eu só respeito seres que sentem, como cães, golfinhos, macacos e humanos. Por isso não vou condenar ninguém por “insultar” o ateísmo, Darwin ou o Judo Clube de Odivelas e não vou “respeitar” crenças ou preconceitos em detrimento das pessoas.

Infelizmente, religiões e ideologias dessa índole têm de o fazer. Respeitar as pessoas implica, pelo menos, reconhecer-lhes liberdade de consciência e de expressão. Mas se uma religião não subjuga este respeito a um “respeito” ainda maior pelos dogmas que a identificam acaba por se desfazer ou por se transformar noutra que o faça. A violência à conta deste filme é apenas um de muitos exemplos do que acontece quando se respeita mais as ideologias do que as pessoas.

Pode-se dizer que este desrespeito não é a categorias religiosas abstractas sim às pessoas que se ofendem com o filme. Mas dá no mesmo porque o que ofende estas pessoas é o ataque ás suas crenças. A propósito do filme, a presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro disse que «são condenáveis quaisquer ataques a personalidades e símbolos religiosos», explicando que «Não gosto que façam com os meus, não farei com os outros»(5), mas é óbvio que esta não pode ser a justificação completa. Nem a ofensa é só questão de gosto nem o gosto justifica a condenação. A premissa implícita é de que esta categoria arbitrária das «personalidades e símbolos religiosos» merece mais respeito do que as pessoas a quem nega o direito de a “atacar”. E isto é verdade para a ofensa em geral. Sentir-se ofendido com a expressão de uma ideia não é um acto meramente passivo de desagrado. Exige decidir que essa expressão desrespeita alguma categoria que é ilegítimo desrespeitar, seja a profissão da mãe, a honestidade do clube ou a sacralidade do profeta. Ou seja, decidir que essa categoria merece mais respeito do que as pessoas.

As reacções ao filme, e as reacções às reacções, ilustram este problema fundamental na religião. Não acho o filme uma boa ideia, tal como não me agrada, por exemplo, alguns posts do Luís Grave Rodrigues (8). Por respeito pelas pessoas evito provocar só para chatear. No entanto, se alguém foi enganado e lhe posso explicar o embuste, maior desrespeito seria ficar calado e ajudar o vígaro com o meu silêncio. Por isso, chamo a treta pelo nome e quem se ofender que se ofenda. Seja como for, se respeitamos as pessoas temos de aceitar que se exprimam como entenderem, gostemos ou não. Até o tipo que fez este filme merece respeito e tem o direito de dizer o que pensa. Reprimir qualquer expressão por não se conformar a uma ideia do que é aceitável, próprio ou sagrado é “respeitar” a categoria desrespeitando a pessoa, um erro absurdo que é evidente em muitas facetas da religião. Na retórica vácua do respeito pelas opiniões quando o politicamente correcto o recomenda. Nas queixinhas de intolerância e ofensa quando faltam os argumentos para defender uma crença mais querida. Na importância auto proclamada das autoridades religiosas e na condenação de «quaisquer ataques a personalidades e símbolos religiosos». E, finalmente, na violência contra pessoas em nome de seres míticos e conceitos abstrusos. O traço comum nesta gama do inconsequente ao intolerável é sempre o de respeitarem mais os dogmas do que as pessoas. O caso à volta deste filme mostra-o claramente, felizmente sem sequer ser preciso ver o filme.

1- YouTube, Innocence of Muslims
2- Huffington Post, Anna Gurji & 'Innocence Of Muslims': Horrified Actress Writes Letter Explaining Her Role
3- Huffington Post, 'Innocence Of Muslims' Shot On Hollywood Set, Film Permit Connected To Christian Charity
4- Huffington Post, Christian charity, ex-con linked to film on Islam
5- ECB, Caminhada da Liberdade Religiosa condena filme com ataque a Maomé
6- Wikipedia, Human Rights in Tibet, the teocratic system
7- Por exemplo, estes posts do JFD, Ateísmo, Ateísmo, uma re-resposta., Ateísmo, finalizando, têm sempre a ressalva do respeito pelo ateísmo e outros ismos em geral. O que não é claro é que diferença isso faz.
8- Como estes Conversas com Deus, Pai. Não é o meu estilo. Mas, ao contrário da presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro, não defendo que se proíba só por isso.

sábado, setembro 15, 2012

Uma hipótese.

O Passos Coelho quer passar 2.500 milhões de euros de TSU dos trabalhadores para as empresas. Por ano. Digo que é o Passos Coelho porque não há consenso nisto nem no PSD nem no governo. Que o Passos Coelho faça coisas com “custos políticos” (i.e. contra o que prometeu e para que foi eleito) não me admira. Ele já deve contar reformar-se nas próximas eleições, com cargos de gestão em meia dúzia de empresas. O estranho é fazer algo que ameace até os tachos dos colegas, do PSD e arredores. Tem de haver uma razão para isto.

O combate ao desemprego não é certamente. Ao contrário do que apregoa a propaganda de direita, as empresas não servem para dar trabalho. Servem para dar lucro. Com a economia nas lonas, nenhum empresário vai estoirar dinheiro em novos empregados para produzir o que não consegue vender. Ainda por cima, haverá menos poder de compra. Se a quebra no consumo fosse igual ao ganho das empresas isto seria só mau para os trabalhadores. Só. Mas o consumo não é função apenas do rendimento presente. É também afectado pela perspectiva de rendimentos futuros. Por exemplo, o rendimento do meu agregado familiar diminuiu significativamente nos últimos anos, mas fizemos por saldar dívidas e conter despesas. Agora temos menos dinheiro em caixa mas sobra-nos mais por mês. Muita gente não consegue cortar mais, é verdade, mas esses também pouco podem consumir. E quem está um pouco melhor, à cautela, acaba por cortar mais no consumo do que lhes cortam no rendimento. A austeridade agrava este ciclo vicioso e as empresas sabem disso (1).

O aumento da competitividade pelo “ajuste” dos salários é outra treta. A premissa é de que não somos competitivos porque ganhamos demais, e que ganhando menos exportaremos muito. Duvido. Se fosse verdade, o Burquina-Faso era um colosso na economia mundial e os suíços andavam a côdeas. A competitividade também depende de infraestrutura, capacidade de produção, trabalhadores qualificados, serviços públicos decentes e mais uma data de coisas que não se consegue pela austeridade do tudo a um euro. A China compensa algumas falhas escravizando o pessoal, mas têm muita infraestrutura industrial e lá não há a opção do vão-se foder que eu vou para o estrangeiro. Por cá, o que vamos conseguir com o “ajuste” é afugentar uma boa parte das pessoas que mais precisamos para pôr isto a funcionar.

A questão então é por que é que o Passo Coelho quer fazer algo que lhe tira votos, lixa os trabalhadores, estraga a economia e prejudica as empresas. Se não teve um AVC então alguém vai lucrar com isto. A minha hipótese é que são os banqueiros. A primeira pista está logo no CV do Passos Coelho (2). A sua experiência profissional, com ênfase nas finanças, sugere que os seus amigos não são nem quem vende o seu trabalho nem quem lucra com o trabalho dos outros. São os que emprestam dinheiro a quem vende o trabalho de terceiros.

Outra pista encontrei num post do João Rendeiro. Gosto do blog dele porque acho que, em matérias de facto, ele é uma autoridade fiável nestas coisas e porque, em questões de valor, a posição dele é tão oposta à minha que acaba por ser fiável também. Por exemplo, «Passos Coelho ganhou o raro estatuto de Estadista»(3). Basta mudar a última palavra que já fica bem. E a escolha é ampla. Quanto aos factos, Rendeiro alega que «Passos Coelho e Gaspar (e Portas já agora) têm em definitivo a confiança dos nossos credores», justifica a “desvalorização interna” pela «transferência significativa de recursos do consumo para o investimento» e aponta que esta «é uma medida altamente favorável ao Capital e um atentado aos direitos adquiridos dos trabalhadores» (3). Ou seja, o propósito é tirar dinheiro aos trabalhadores e passá-lo para o Capital. O tal “nós” nos «nossos credores» do Rendeiro, que não é o Estado mas sim a banca.

Em Junho, a dívida do governo ao estrangeiro era de 116 mil milhões de euros. A da banca era de 270 mil milhões (4). Como tem sido regra nesta crise mundial, o problema principal está na banca. E se as empresas não puderem saldar as suas dívidas os bónus dos banqueiros ficam mais pequenos. O ajuste na TSU combate este problema. Não é uma “desvalorização interna” como a de 1977. A inflação e a taxa de câmbio afectam todo o dinheiro, incluindo o que está no banco, e não apenas o rendimento de quem trabalha. A “desvalorização interna” do Passos Coelho é cirúrgica. Não toca nas fortunas nem no dinheiro em caixa. À partida duvidei que isto fosse uma hipótese plausível porque tirar dinheiro dos particulares para dar às empresas reduz o crédito mal-parado num lado mas aumenta-o no outro. Não parecia adiantar de nada. Só que enquanto os empréstimos às empresas são de 45 mil milhões de euros por ano, às famílias à banca empresta apenas 11 mil milhões, e uma boa parte em crédito à habitação. Além disso, metade dos empréstimos às empresas são de mais de um milhão de euros (5). As comissões desses devem ser jeitosas. Por isto tudo, parece-me que a alteração na TSU é um favor aos banqueiros.

Não é um favor à banca. A longo prazo, se estragam a economia a banca sofre também. Mas para um banqueiro a gerir linhas de crédito de milhões, aguentar os pagamentos e as comissões mais um ano ou dois pode fazer uma grande diferença. Uma boa almofada para aguentar a austeridade, mesmo que depois vá tudo ao charco e o contribuinte fique com a conta. Foi com esta ganância que a crise começou. Não me admira nada se for assim que continua.

Corrigido, a 15-9, porque os valores de 45 mil milhões e 11 mil milhões não são a dívida total mas sim o volume de empréstimos (em 2011). Na dívida total a proporção é diferente porque os empréstimos às famílias têm, em média, um prazo de pagamento muito maior. Mas o que importa para os banqueiros é o volume do negócio, e das comissões, e não a dívida total. Agradeço a dica ao leitor que muda sempre de nome.

1- Eg. Nestlé receia perder mais do que ganha com mudanças na TSU, Em Portugal 'é tudo navegação à vista' ou, para quem tiver menos tempo, "Bardamerda e caladinhos": a austeridade em 30 segundos
2- Aqui, em pdf.
3- João Rendeiro, Passos Coelho e a desvalorização interna
4- Banco de Portugal, Gross External Debt Position
5- Pordata, Montantes de empréstimos a particulares: total e por tipo de finalidade – Portugal e Montantes de empréstimos a empresas: total e por escalão de crédito (dados de 2011).

quinta-feira, setembro 13, 2012

Ateísmo e confusão.

O JFD escreveu que «em relação ao ateísmo [...] fica por compreender a razão da sua afirmação identitária tendo por constante as referências a pressupostos religiosos», acrescentando que falta ao ateísmo «um corpus ideológico coerente e um mecanismo de atuação política que não passe pelo mero ataque a todas as manifestações de fé». Escreveu também que a atitude do ateísmo é «tão vil, desnecessária e fanática quanto os movimentos de evangelização violenta ou as guerras santas»(1). Penso que o JFD tem razão em que lhe ficou por compreender algumas coisas acerca do ateísmo. Espero que isto ajude. O ateísmo não tem um «corpus ideológico coerente» porque o termo foi inventado para acusar outros de não terem o deus certo. Hoje já não dá castigo, por isso não me importo de aceitar o rótulo, mas, tal como “herege”, “pagão” e “apóstata”, o termo “ateu” só existe por causa dos religiosos. A religião criou um termo para distinguir coisas sem diferença, e é daí que vem tanta confusão.

Em matérias de facto, “ateísmo” é mais uma expressão de desagrado por parte do crente do que uma categoria coerente. No caso geral, dar a cada hipótese apenas o crédito que as evidências justificam é considerado sensatez. Isto quer se trate da venda de automóveis usados, dos benefícios da banha da cobra ou das alegações das outras religiões. Um católico dirá ser sensato rejeitar as hipóteses de que Maomé tenha conversado com os anjos ou que Zeus controla as trovoadas. Não rotulará ninguém de ateu por isso. Mas quando o mesmo critério, com o mesmo nível de exigência, leva à conclusão de que Deus não existe, em vez de sensatez chamam-lhe ateísmo. Não é por haver mais evidências para Deus do que para Zeus. Não é por aceitar alegações com base na tradição, fé ou número de adeptos ser um método mais fiável. É simplesmente porque não lhes agrada a conclusão de que Deus não existe. Para não darem o braço a torcer, em vez de admitirem que é uma conclusão razoável rotulam-na de “ateísmo”. Não me importo que o façam. É só um nome. Mas depois não venham pedir «corpus ideológico». Se não é preciso isso para rejeitar a mitologia grega, também não é preciso para rejeitar a mitologia cristã.

Em questões de valor, “ateísmo” pode também referir a atitude pessoal de não venerar divindades. Isto é independente das opiniões acerca dos factos. É logicamente possível, se bem que improvável, surgirem dados que tornem a hipótese de um deus criador a explicação mais plausível para o universo. Se isso acontecer passarei a aceitá-la como factualmente correcta. No entanto, posso continuar ateu se não adoptar esse criador do universo como meu deus. Não é por ter criado o universo que me vou pôr a louvar o seu nome, a venerá-lo ou a rezar. Inversamente, também posso deixar de ser ateu sem mudar de opinião acerca dos factos. Basta venerar algo como um deus. O Sol, por exemplo, ou o Joe Pesci*. Também aqui o ateísmo não requer «um corpus ideológico coerente». Não tenho deuses porque não quero. Se quisesse tinha. Também não quero ter uma moto, nem um barco nem um urso, mas não preciso de fundamentar com um «corpus ideológico» o meu amotismo, abarquismo e aursismo.

Num post posterior, o JFD escreveu «Não considero o ateísmo uma religião mas antes uma posição filosófica face àquela.»(2) O ateísmo não é uma religião, concordo, mas também não é uma posição filosófica. O ateísmo é apenas uma parte de uma posição filosófica. Em matérias de facto, eu tenho uma posição filosófica fundamentalmente céptica, considerando que uma hipótese só merece confiança se tiver mais fundamento objectivo do que as alternativas. Em questões de valor, a minha posição filosófica tem com fundamento a liberdade e a responsabilidade individual. Estas posições filosóficas fazem com que concorde com os religiosos em muitos pontos, desde a forma da Terra à condenação do homicídio, mas leva-me a discordar de outros, como a ressurreição e o pecado da contracepção. O meu ateísmo não corresponde às minha posições filosóficas em si. É só aquelas pequenas pontas que incomodam os religiosos. É verdade que o ateísmo acaba por ser definido em oposição às religiões, mas isto é porque são os religiosos que assim o definem. No tempo dos gregos que cunharam o termo eu seria ateu por rejeitar Zeus. Hoje é por rejeitar o Espírito Santo. A diferença não está na minha posição filosófica, pois considero ambos igualmente fictícios. A diferença está apenas nas partes da minha posição filosófica que contradizem as crenças religiosas dominantes.

Finalmente, chamam também ateísmo, normalmente “fanático” e “radical”, à critica pública de coisas como as capelanias militares ou a cura milagrosa do olho da Guilhermina. Estas críticas são em oposição a alegações religiosas, é verdade, mas não constituem «afirmação identitária» nem ideologia. Mais uma vez, são apenas parte de um todo muito maior. Eu considero que é um direito e um dever protestar contra as injustiças e disparates. Oponho-me à isenção do IVA para a Igreja Católica tal como me oporia se isentassem de IVA a associação de amigos do Homem Aranha. Sou contra as capelanias militares tal como sou contra a RTP contratar astrólogos para prever o futuro na televisão. Só inventaram o rótulo de “ateísmo” para uma parte disto, que até condenam como «tão vil, desnecessária e fanática quanto os movimentos de evangelização violenta ou as guerras santas», por julgarem que as superstições e fantasias de certa religião são mais verdadeiras ou virtuosas do que as restantes. Mas não são. Treta é treta. Se o JFD perceber que “ateísmo” é apenas um termo arbitrário que os crentes usam para rotular a oposição às suas crenças perceberá também que não é nesse pequeno sub-conjunto que vai encontrar «corpus ideológico» ou «afirmação identitária». Não é o ateísmo que me faz opor as religiões. É ver as religiões ao nível de tantos outros disparates que a humanidade inventou que faz com que me chamem ateu.

* Ou o George Carlin, mas isso talvez já fosse ironia a mais.

1- JFD, Ateísmo.
2- JFD, Ateísmo, uma resposta.

domingo, setembro 09, 2012

Treta da semana: não há lixo.

Segundo um artigo recente na Nature, cerca de 80% do genoma humano tem “funções bioquímicas” (1). Esta expressão deliberadamente ambígua levou os criacionistas (2) e a imprensa (3) a apregoar que não há lixo no genoma, que «O "lixo" do nosso ADN é afinal um interruptor fundamental». Não é nada disso. O problema é que os autores usaram uma definição de funcionalidade muito diferente daquela que se usa para distinguir entre ADN funcional e ADN não funcional, o tal “junk DNA” que tanto ofende os criacionistas. Como admite o próprio Ewan Birney, o coordenador da análise de dados do consórcio ENCODE:

«nós definimos o nosso critério como “actividade bioquímica específica” [No entanto] usando definições clássicas e muito estritas de “funcional” [...] vemos uma ocupação acumulativa de 8% do genoma»(4)

Ou seja, o valor de 80% refere-se apenas à definição deles, segundo a qual um trecho de ADN é “funcional” se interagir de forma reprodutível com alguma molécula da célula. Mas isto não implica funcionalidade no sentido mais consensual de ser benéfico para o sucesso reprodutivo do organismo. Por exemplo, a maior categoria de “funcionalidade bioquímica” é a do ADN que é transcrito em ARN, e que corresponde a cerca de 60% do genoma humano, segundo os dados do ENCODE. A síntese de ARN complementar a um trecho de ADN é o primeiro passo para a síntese de proteínas. Mas, a seguir, deste ARN são removidos os intrões, trechos da molécula que não farão parte da síntese da proteína. Dos intrões praticamente nada contribui para o sucesso do organismo*, e o que sobra, os exões, é a menor parte. As sequências de aminoácidos de todas as nossas proteínas estão determinadas em apenas 1% do nosso ADN.

As outras grandes categorias de “funcionalidade bioquímica”, como definida pelo consórcio ENCODE, são a das regiões com histonas modificadas e a das regiões sensíveis às desoxiribonucleases (DNases). Estas “funcionalidades” também não implicam que o ADN seja funcional no sentido comum do termo. As histonas formam o esqueleto proteico dos cromossomas, que segura o ADN, e as modificações químicas nestas proteínas ajudam a regular a actividade de cada região. No entanto, as modificações químicas das histonas tanto podem promover como reprimir a expressão do ADN, e é de esperar que ADN que não seja funcional esteja marcado como tal pelas histonas que o suportam. Quanto às hipersensibilidade às DNases, se bem que seja uma característica típica de regiões activas do ADN, é também comum em zonas inactivas. As DNases cortam o ADN, e fazem-no mais facilmente onde o ADN está mais acessível. Em muitos casos, isto corresponde às regiões activas porque, nessas, o ADN precisa de estar exposto às várias proteínas que se encarregam da transcrição e regulação dos genes. No entanto, além de que muito do que é transcrito não beneficia o organismo, também zonas inactivas do ADN podem estar expostas às DNases.

Além da confusão sobre o que é funcional, há também a ideia de que se designa partes do ADN como “lixo” só porque não se sabe para que servem ou por mero palpite. «O resto do genoma foi inicialmente chamado de "ADN lixo", porque foi considerado inútil», escreve a jornalista no DN (3). Na verdade, o termo “lixo” veio da estimativa de que grande parte da sequência do nosso genoma não pode ser evolutivamente importante porque, se fosse, a quantidade de mutações prejudiciais por geração seria grande demais para a selecção natural eliminar (5). Esta estimativa foi confirmada experimentalmente pela quantificação das mutações que persistem. Apenas 5-10% do nosso genoma está sujeito a uma selecção negativa, que elimina tendencialmente alterações à sequência. No resto vale tudo, o que demonstra que não pode ser muito importante.

Isto não quer dizer que o ADN fora dessas zonas não sirva para absolutamente nada. Os cromossomas têm estruturas tridimensionais complexas, e pode ser que partes do ADN desempenhem aí alguma função. Quanto mais não seja fazer espaço, para umas partes ficarem adequadamente posicionadas em relação a outras. Mas é claro pela comparação de sequências que, na maioria do nosso genoma, a sequência do ADN é irrelevante para o sucesso do organismo. É isso que se designa por “junk DNA”. Os resultados do ENCODE não alteram essa conclusão nem explicam o genoma da cebola (6). Infelizmente, nem os criacionistas nem os jornalistas vão perder tempo a perceber o assunto quando papaguear “grande descoberta!” lhes dá tanto jeito.

* Alguns intrões têm papeis de regulação ou criam regiões alternativas de corte que permitem gerar proteínas diferentes. No entanto, em geral, a maior parte da sequência de cada intrão é irrelevante para o organismo.

1- The ENCODE Project Consortium, An integrated encyclopedia of DNA elements in the human genome
2-Evolution news and views, Junk No More: ENCODE Project Nature Paper Finds "Biochemical Functions for 80% of the Genome".
3- E.g. Guardian, Veja,DN
4- Susumu Ohno, So much 'junk' DNA in our genome. Brookhaven Symposia in Biology No 23. 1972. Encontrei o texto integral aqui, mas o site parece-me manhoso.
5- Ewan Birney, ENCODE: My own thoughts
6- O teste da cebola.

domingo, setembro 02, 2012

Treta da semana: plástico e sonoro.

Percebo pouco de arte. Tão pouco que nem percebi se o artista se inspirou no dióspiro se foi na sardinha que caiu no balde de lampreias. Felizmente, a peça dispensa comentários. Chamo apenas a atenção para a explicação do autor, que me faz lembrar algumas discussões neste blog.


(Obrigado pelo email com esta pérola)

Adenda: já agora, aqui fica o link para a página do João Oliveira: Lixoluxopoético

O que tem de mal.

A religião é má. Apesar de ser uma afirmação simples, é fácil deturpá-la para refutar espantalhos. Por isso, antes de a justificar tenho de a esclarecer. Por “é má” não quero dizer que tudo na religião seja mau, das tocatas de Bach às freiras que vivem na minha rua. A religião é má como a segunda guerra mundial foi má. Teve alguns aspectos positivos, como o progresso na aeronáutica ou alertar para o perigo do nacionalismo. Mas o saldo foi negativo e o que teve de bom seria ainda melhor sem a guerra. É assim que digo que a religião é má. Tem mais mal do que bem e o mal é dispensável. E por “religião” quero dizer especificamente o sistema de poder pelo qual umas pessoas regulam crenças, disposições e comportamentos das outras. Não tem nada que ver com o usufruto individual do direito de acreditar no que se quiser.

A religião é má por três características intrínsecas que corrompem quaisquer boas intenções. Ou boas pessoas. A primeira é o fundamentalismo dogmático que dá identidade a cada religião. Não pode haver católicos que rejeitem a autoridade do Papa, protestantes que aceitem o Papa como autoridade infalível ou muçulmanos que acreditem que Jesus era Deus. Não é apenas uma definição de termos, como dizer que não há capitalistas comunistas. São normas com consequências reais para pessoas como as freiras nos EUA (1) ou os clérigos Shia na Indonésia (2). Pela sua natureza, uma religião não pode ser uma organização democrática e pluralista onde todos membros tenham voz e liberdade para discordar da hierarquia.

O segundo problema é que, dentro de cada religião, os sacerdotes são o poder executivo, legislativo e judicial. Até de um clube recreativo esperamos que a direcção seja separada do conselho fiscal e que os regulamentos sejam aprovados em assembleia geral. Numa religião, seja a Igreja Maná ou a Igreja Católica, é tudo controlado pelos mesmos. A falta de órgãos independentes que possam refrear tendências menos louváveis favorece os conhecidos abusos de poder, desfalques e ocultação de crimes, além dos casos que não conhecemos. Só quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro...

Finalmente, não existe um limite bem definido para o âmbito da religião. Pode regular tudo. Actos públicos, actos privados, valores, disposições, intenções e até o que cada um pensa acerca dos factos. Qualquer coisa pode fazer a diferença entre o paraíso e o inferno. Por isso, as religiões sistematicamente desrespeitam aqueles direitos pessoais que hoje consideramos fundamentais, como a igualdade, a liberdade de consciência e a privacidade.

Alguns dirão, como se fosse evidência em contrário, que há regimes hediondos declaradamente ateus, invocando Mao, Pol Pot, Estaline ou os praticamente divinos Kim. Mas estes são exemplos dos mesmos defeitos: intolerância dogmática; concentração de poder sem controlo independente; e ingerência em todos os aspectos da vida pública ou privada. Estes sistemas atraem os piores facínoras e corrompem as melhores intenções. E se bem que as religiões que agora temos em Portugal sejam muito menos malignas do que eram antigamente ou do que ainda são em países como o Irão e a Arábia Saudita, só melhoraram à força e ainda há problemas a resolver.

Isto não tem nada que ver com a crença. Se alguém acreditar que vai viver depois da morte, que Júpiter influencia o seu namoro ou que o universo foi criado por um hipopótamo de tutu, pois que acredite. Posso criticar ou fazer troça, mas também podem criticar ou fazer troça das minhas crenças. O que eu quero é uma sociedade laica, em que todos possam adoptar, louvar, criticar ou fazer troça das crenças que quiserem sem ninguém privar outros desses mesmos direitos. O problema está nestas organizações, e é um problema que elas não resolvem por si. O que distingue um judeu, um cristão, um muçulmano e um cientólogo são crenças sem fundamento e, tendo o diz que disse como única forma de legitimação, nenhuma religião irá voluntariamente tornar-se democrática, admitir uma pluralidade de opiniões ou abster-se de impor dogmas porque, num ambiente de discussão critica e aberta, não convenceria ninguém.

Por isso é que a solução só pode vir da sociedade, que deve exigir das religiões o mesmo respeito pela Lei e pelos direitos humanos que exige de qualquer organização. Não é permitido a uma associação excluir as mulheres de qualquer cargo. O mesmo devia aplicar-se às religiões. Angariar associados insinuando que alguém lhes vai partir as pernas com um barrote se não se fizerem sócios é crime (3). Também devia ser quando a coacção é pela ameaça de sofrimento eterno. Eu não quero condenar pessoas pelo que acreditam nem as quero privar das crenças que as confortam, mesmo que não abdique do meu direito de chamar disparate aos disparates que encontro. Nem sequer quero impedir que os crentes se organizem em igrejas, cultos, clubes ou o que quiserem. O que quero é que a crença no sobrenatural não seja desculpa para formar organizações como estas. Deve ser possível organizar procissões, ajudar os pobres, rezar em conjunto e participar em rituais sem violar os princípios fundamentais da democracia, da igualdade e do respeito pelos direitos de cada um. O que quero é que as religiões tenham os mesmos deveres e direitos que tem qualquer outra organização na nossa sociedade.

1- NY Times, Vatican Reprimands a Group of U.S. Nuns and Plans Changes
2- Human Rights Watch, Indonesia: Shia Cleric Convicted of Blasphemy
3- Artigo 154º do Código Penal, «Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»