domingo, julho 29, 2012

Treta da semana: o que eles querem sei eu.

O Gonçalo Portocarrera de Almada escreveu que se deve promover, «com empenho, o direito à liberdade de todos os cidadãos» e que «um compromisso conjugal definitivo não só não é uma excepção a essa irrenunciável prerrogativa da condição humana, como uma sua excelente e muito meritória realização. Compete ao Estado garantir que a todos sejam dadas todas as condições necessárias para que as suas opções sejam verdadeiramente livres, mas não lhe cabe impedir aquelas escolhas que, mesmo não devendo ser exigidas a todos, podem legitimamente ser queridas por alguns. Um ordenamento jurídico que proíbe qualquer compromisso sério, como é o que pressupõe uma entrega definitiva, com o pretexto de assim salvaguardar a autonomia dos cidadãos, não é apenas uma lei paternalista, mas uma norma que não respeita a liberdade dos indivíduos e que, neste sentido, é potencialmente totalitária.» (1) Estou inteiramente de acordo. O Estado deve respeitar o direito das pessoas de assumir «um compromisso conjugal definitivo» e não deve proibir um compromisso sério a quem o quiser assumir.

É isso que o Estado português faz. Quando duas pessoas se casam, são só essas pessoas que decidem quão definitivo e sério é o seu compromisso. O Estado não as obriga a divorciar-se por estarem casadas há tempo demais nem o notário recusa oficializar um casamento só por os nubentes declararem que é para a vida toda. É como quiserem. É por isso estranho o Gonçalo afirmar que «Quando o Estado e as instituições internacionais [...] não permitem a possibilidade jurídica de um matrimónio civil indissolúvel [...] incorrem na mais insanável contradição porque, em nome da liberdade, combatem uma das suas mais nobres e altruístas expressões.» Lido à letra, isto não faz sentido porque proibir os contractuantes de dissolverem o contracto não lhes dá mais liberdade. Pelo contrário. Neste caso, tira-lhes a liberdade de serem, aos 40 ou 60, diferentes do que eram aos 18 ou aos 25.

Mas o Gonçalo é padre católico e não deve gostar de usar os termos com o seu significado literal. Neste caso, parece usar o termo “liberdade” no estranho sentido de “o Estado obrigar alguém a ficar casado, mesmo que já não queira, só porque assinou um papel”. Isto para um profissional da reinterpretação bíblica não é façanha nenhuma (2) mas, para leigos como eu, é confuso. Afinal, ser livre não é o mesmo que ser obrigado. Além disso, leis que obriguem a permanecer casado quem já não quer não trazem vantagens aos envolvidos e desperdiçam o dinheiro dos impostos. O único benefício é para pessoas como o Gonçalo.

As religiões, que não são a fé de cada um mas as instituições que a regulam, são organizações peculiares. A maioria das organizações, sejam clubes de futebol, empresas ou partidos políticos, divide os seus esforços entre os seus objectivos e os meios para os conseguir. Mas os objectivos das religiões são, literalmente, do outro mundo. Por isso, neste acabam por dedicar todos os esforços aos meios, que passam a ser os próprios fins. Dinheiro, poder e influência. É daqui que vêm as tentativas constantes de meter o bedelho na vida das pessoas. O Gonçalo lamenta o «laicismo que pretende relegar a fé cristã para a intimidade das consciências, ou os esconsos das sacristias», mas é precisamente aí que a fé pertence. Na intimidade e nas igrejas. Nunca na lei. Fazer da fé pessoal uma norma social viola o direito de ter fé, o direito de não a ter e o direito de mudar de ideias. Além disso, é um perigo. Muita gente julga que a religião é terrível no Irão, Afeganistão ou Arábia Saudita por serem muçulmanos mas que os cristãos são porreiros. Isto é um erro. Qualquer religião é tão terrível quanto puder. O cristianismo dá exemplos que baste, ao longo da história, e mesmo o catolicismo do século XXI o demonstra repetidamente com casos como a lavagem de dinheiro no Vaticano, o encobrimento da violação de crianças e a perseguição do racionalismo.

Na Índia, Sanal Edamaruku mostrou que a água milagrosa que brotava de uma estátua de Jesus não vinha de Deus mas sim de um cano entupido. Como a lei de lá pune quem “magoa sentimentos religiosos”, os bispos católicos querem mandá-lo já para a prisão enquanto aguarda julgamento (3). A diferença entre a situação na Índia e em Portugal não está no catolicismo, que é o mesmo, nem nos padres, que defendem a mesma ideologia. A diferença está na sociedade e na lei. A religião católica é menos tolerante na Índia porque pode e só é mais tolerante cá porque não tem outro remédio.

Muitos, crentes e não crentes, protestam contra o “ateísmo militante” por criticar religiões e dizer mal das crenças das pessoas. Mas é preciso. A fé é um substrato fértil para estas organizações que visam impor a todos as suas ideologias e ficções, e só uma pressão contrária constante pode manter a fé na esfera privada, onde pertence e onde só faz mal a quem quer. Por isso, e por muito repetitivo que seja, é preciso continuar a desmascarar estas demagogias. Os religiosos profissionais vão sempre lutar por mais poder, seja para obrigar uns a ficar casados, proibir outros de casar, regular a sexualidade ou o que mais conseguirem. Nunca vão reconhecer que todos temos o direito de mudar de opinião, seja no casamento, seja na fé ou religião. Se convencem a sociedade que renunciar ao direito de mudar de opinião acerca do casamento é um exercício de liberdade, é mais fácil fazerem o mesmo com a fé a tornar a apostasia num crime. Ou a blasfémia, ou tudo o que não lhes der jeito. Só param onde os pararmos.

1- Gonçalo Portocarrero de Almada, A opção por um matrimónio civil indissolúvel, via Senza
2- Por exemplo, como Deut. 21, 18-21:«Se alguém tiver um filho rebelde e incorrigível, que não obedece ao pai e à mãe e não os ouve, nem quando o corrigem, o pai e a mãe pegarão nele, levá-lo-ão aos anciãos da cidade para ser julgado. E dirão aos anciãos da cidade: "Este nosso filho é rebelde e incorrigível: não nos obedece, é devasso e beberrão". E todos os homens da cidade o apedrejarão até que morra. Deste modo, eliminarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e ficará com medo.»
3- Slate, Jesus Wept e New Humanist, Sanal Edamaruku update: Indian Catholics demand apology over miracle debunking

Miscelânea Criacionista: uma coisa de cada vez.

Segundo o Mats, a teia de aranha é «Uma das coisas mais pegajosas que existe na natureza» e composta por «fibras que para além de serem mais fortes que qualquer fibra construída pelos homens que tenha a mesma espessura, incluindo o Kevlar e o aço, são também resistentes ao calor»(1). O Mats exagera um bocado; tubos de nanocarbono têm uma tensão de ruptura (2) dezenas de vezes superior à da teia de aranha (3), e mesmo fibras compostas de grafeno e polímeros são mais resistentes (4). Mas é verdade que as teias de aranha são muito sofisticadas e têm um desempenho notável. Da aparência de design o Mats conclui que a teia de aranha foi criada por um «Designer Supremo» e que esse designer é o menino Jesus. É assim que se tira conclusões no criacionismo evangélico.

No entanto, esta ilusão de design inteligente só sobrevive pela contemplação isolada de aspectos bem escolhidos. Por exemplo, se olharmos para a reprodução da aranha, em vez da teia, a ilusão de inteligência fica abalada. Em muitas espécies de aranha a mãe põe uns milhares de ovos de cada vez e os filhos dispersam-se com o vento, cada um agarrado ao um filamento de teia. Como as populações tendem a ser estáveis, em média apenas dois filhos de cada fêmea sobrevivem até acasalar. Isto dá uma taxa de mortalidade infantil da ordem dos 99.9%, com a vasta maioria a afogar-se em poças, a desidratar ao sol ou a ficar-se por comida de lagartixa e pássaro. É uma forma pouco inteligente de constituir família.

Não só é fundamental, para o criacionista, escolher com cuidado o aspecto que foca, como é importante isolá-lo de outros. Outra maravilha do ilusório design inteligente é a asa dos lepidópteros, das traças e borboletas, coberta de minúsculas escamas que estão presas com a força suficiente para resistir ao vento e ao voo mas que se soltam facilmente quando o insecto choca com uma teia de aranha (5). O que deu origem a outro exemplo de aparente inteligência no design. As aranhas do género Scoloderus fazem umas teias compridas, na vertical, especificamente para apanhar traças e borboletas. As escamas das asas safam o insecto do primeiro contacto com a teia mas, ao rebolar pela “escada” abaixo, o infeliz bicharoco vai ficando cada vez com menos escamas e menos desculpas para não ficar para o jantar (6).

Cada um destes atributos, a cola da teia, as escamas das asas e a escada de teia, parece uma solução inteligente para o problema que tenta resolver. Mas, em conjunto, o padrão não sugere nada que isto seja obra de um único ser inteligente. A menos que seja esquizofrénico. Esta corrida ao armamento tem de ser produto de muito antagonismo e competição, exactamente o que prevê a teoria da evolução.

O Mats usa também esta estratégia de compartimentalização para a pergunta «Por que é que Deus [...] criou um dispositivo para caçar insectos?», que é pertinente porque o Mats defende que Deus criou tudo no Paraíso. Além de alegar que a teia podia servir para apanhar pólen, que as aranhas podiam ser vegetarianas e que, de qualquer maneira, não têm “alma vivente”, o Mats aponta como ponto principal que «a resposta a essa pergunta é irrelevante para o facto de design.» Mas não. O propósito é relevante se queremos avaliar a inteligência de um design. Por exemplo, o design do piaçaba é inteligente se o objectivo for limpar sanitas mas não se for para palitar os dentes. O mesmo para a aranha. A sua teia não é uma forma inteligente de recolher pólen e um animal que caça de emboscada não é um design inteligente para herbívoro*. Sobretudo, não é inteligente dotar as aranhas de teias sofisticadas para apanhar insectos, depois criar traças com defesas sofisticadas contra essas teias para, finalmente, criar outras aranhas com teias especialmente adaptadas às defesas das traças. Para defender que isto é design inteligente é preciso explicar o propósito destas voltas todas.

Este truque de isolar alegações serve para qualquer treta. Foca-se o milagre do sinistrado que se salvou ignorando os outros vinte que morreram. Apresenta-se o caso em que o “remédio” parece ter funcionado sem olhar para a maioria em que não fez efeito. Defende-se aquela interpretação do texto sagrado quando qualquer outra teria igual fundamento. E assim por diante. Há uma grande diferença entre tentar compreender a realidade e tentar enfiar barretes. Para perceber como as coisas são é preciso encaixar as ideias, não só porque muito da compreensão está nesse encaixe como também para eliminar modelos e métodos que sejam inconsistentes com o restante conhecimento. Para enfiar barretes é precisamente o contrário. Com o conhecimento que temos hoje, um disparate destes só parece plausível com as palas bem postas à volta dos olhos.

* Em geral, os herbívoros não precisam de ficar de atalaia, à espera que a planta se distraia, para lhe saltar rapidamente em cima. Mas, curiosamente, o caso da Bagheera kiplingi, uma aranha predominantemente herbívora, é uma excepção. Esta aranha come as pontas das folhas das acácias, árvores que albergam formigas agressivas que defendem as apetitosas folhas novas. Esperando numa folha velha, onde as formigas não vão, a aranha usa a sua visão aguçada de predador para escolher o momento certo. Depois corre rapidamente para a “presa” e “caça” um pedaço de folha antes que as formigas a apanhem (7). Mais uma solução sofisticada daquelas que se espera da adaptação gradual das espécies, por competição, mas que não é compatível com o design inteligente, pelo mesmo designer, da acácia e das formigas que a protegem.

1- Mats, O segredo da aranha
2- Yu et. al., Strength and Breaking Mechanism of Multiwalled Carbon Nanotubes Under Tensile Load
3- Wikipedia, Spider silk
4- Cosmos, Toughest fibre ever created in lab
5- Ask Nature, Wings allow escape from spider webs: butterflies
6- Traw, A Revision of the Neotropical Orb-Weaving Spider Genus Scoloderus, Psyche 102:49-72, 1995
7- BBC, 'Veggie' spider shuns meat diet

segunda-feira, julho 23, 2012

A batata de Deus.

A propósito da velha questão filosófica “porque é que há algo em vez de nada?”, o Alfredo Dinis propôs que crentes e ateus estão «com a mesma batata quente na mão. Um tem que explicar como Deus surgiu do nada, o outro como o universo surgiu do nada.»(1) Discordo. São batatas muito diferentes. Logo à partida, o Alfredo não tem de explicar só como Deus surgiu do nada. Tem de explicar também como é que Deus criou o universo a partir do nada, porque dizer apenas “Deus criou” ou “por milagre” não explica coisa nenhuma. Parece difícil que o Alfredo consiga explicar isto, e este é um dos menores problemas da sua tese criacionista.

Esta questão filosófica surge da ideia de que um vazio absoluto, eterno e imutável, não carece de explicação. É a hipótese nula. Só a existência de algo é que exige explicação. Daí o tal conceito filosófico de nada no qual o Alfredo insiste, acusando físicos como Lawrence Krauss de fazerem batota por considerarem como hipótese nula um nada quântico e instável. No entanto, o Alfredo também faz batota por incluir nesse “nada absoluto” um deus capaz de criar todo o universo*. Além disso, a física moderna põe em causa a premissa implícita dos filósofos antigos de que ser absoluto, estável e imutável são atributos que o nada tem de borla e que não é preciso explicar. Isto é implausível porque só há uma forma de ser absoluto e imutável mas há infinitas formas de ser instável. O nada instável e caótico da mecânica quântica é muito melhor candidato para a tal hipótese nula que dispensa explicação.

Se o nada da hipótese nula é instável – e não há razão para assumir o contrário – então não temos apenas uma explicação para a existência de algo sem precisar de deuses milagreiros. Podemos também extrapolar do que sabemos sobre este universo para ter uma ideia do processo pelo qual universos podem surgir espontaneamente. O Sofrologista Católico critica esta abordagem como «altamente metafísica e pouco fundamentada»(1), mas é a mais fundamentada que temos. Ao contrário de Deus e do vazio absoluto, o vácuo quântico instável de onde universos podem surgir encaixa bem nas teorias da física moderna, as teorias com o fundamento empírico mais sólido que alguma vez a inteligência humana concebeu.

Além da estabilidade do nada, os filósofos de antigamente também assumiam, por lhes parecer regra universal, que tudo tinha uma causa. Portanto, para algo surgir do nada teria de haver uma primeira causa. Deus. Mas a física moderna também rejeita esta premissa. Por um lado, porque muitos acontecimentos a nível quântico não têm causa. Não se trata de ignorar as causas. É mesmo saber que não têm causa por serem indeterminados. Por exemplo, não se pode saber, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição exactas do electrão porque o electrão não tem velocidade e posição exactas em simultâneo (2). O resultado da medição de um destes atributos é uma variável aleatória e não o efeito de uma causa escondida. Por outro lado, sabemos também que o tempo faz parte deste universo e que não há antes do universo. “Antes do universo” é como “abaixo do centro da Terra” ou “a sul do Polo Sul”. Não faz sentido. Como uma causa tem de ocorrer antes do efeito, isto implica que o universo não pode ter causa. É claro que os crentes podem alegar que esta foi uma causa especial que não precisa de tempo mas, nesse caso, deitam fora todo o fundamento do argumento por invocarem um tipo ad hoc de causa nunca observado em lado algum. Mais uma coisa que deixam por explicar.

Em suma, as duas batatas não são nada parecidas. A cosmologia moderna é composta por hipóteses extrapoladas das teorias mais bem fundamentadas que temos. Esta extrapolação indica que o tal nada da hipótese nula é caótico e instável e que esta bolha de espaço-tempo a que chamamos universo surgiu espontaneamente, sem ter nem poder ter qualquer causa. O criacionismo medieval da teologia católica é uma caldeirada de premissas sem fundamento. Jesus é uma de três pessoas que partilham a mesma substância, outra das quais terá criado o universo por milagre a partir de um nada inexplicavelmente absoluto e imutável e agora, treze mil milhões de anos depois, estas duas pessoas e mais um espírito passam o tempo preocupadas com a contracepção, a desfrutar os louvores e a veneração que os seus seguidores lhes dirigem e a orientar, para que sejam infalíveis, as proclamações doutrinais de um senhor de batina. Eu diria que o Alfredo tem muito mais coisas para explicar, e mais difíceis de justificar. Começando pela explicação de como é que ele sabe isto tudo.

* Já para não falar de transubstanciar hóstias, condenar pecadores, engravidar virgens, omnisaber, omniestar e omnifazer trinta por uma linha.

1- Comentários em Confrangedor
2- Ver, por exemplo, na Wikipedia Quantum indeterminacy

domingo, julho 22, 2012

Treta da semana: Pseudo-genética de direita.

Pela Priscila Rêgo (1), soube de dois posts do Filipe Faria sobre a genética humana e as suas implicações políticas (2). A Priscila já fez um bom trabalho a desmontar a tese do Filipe, apontando como o comportamento humano, se bem fruto da nossa evolução e biologia, consiste principalmente de estratégias condicionais. Ao contrário do que o Filipe sugere, a questão não é tanto de certos comportamentos serem impossíveis mas se vale a pena impor as condições que os propiciam. Por vezes não, mas noutros casos sim. Assim, aqui focarei outro aspecto. A tese central do Filipe parece ser que a hereditariedade genética de atributos como a inteligência exclui o igualitarismo. O problema foi o Filipe não ter percebido o que é essa hereditariedade genética nem o que é o igualitarismo.

O Filipe dá como exemplo que «os gémeos idênticos educados em ambientes diferentes são muito mais parecidos uns com os outros em QI (cerca de 80% de hereditariedade genética)» (2), referindo um estudo sueco com gémeos adoptados (3), para refutar a ideia de que «que os seres humanos são todos basicamente iguais e formados pela educação». Como se isto quisesse dizer que a inteligência é mais genética do que ambiental. É um erro.

Não faz sentido perguntar se um atributo é mais genético ou mais ambiental, seja a inteligência ou a cor dos olhos. Qualquer atributo surge da interacção de genes e ambiente. Seria como perguntar se vem mais música do violino ou do violinista. O que podemos fazer é estimar, numa população e em certas condições, que fracção da variância do atributo que se deve à variância genética. Isto é a herdabilidade, h2, ou a “hereditariedade genética” medida no artigo que o Filipe referiu (4). Assumindo que a covariância entre genes e ambiente é nula e que a variância total é a soma das variâncias ambientais e genéticas*, os investigadores calcularam que naquele grupo de 223 pares de gémeos suecos criados em separado a variância genética explicava 80% da variância total das capacidades cognitivas. Por isso propuseram que aqueles testes de são bons candidatos para descobrir genes ligados à cognição. No entanto, não propuseram que isto tivesse alguma coisa que ver com o igualitarismo.

Crianças criadas em famílias adoptivas na Suécia provavelmente terão um ambiente bastante parecido. Um bom sistema público de educação, pais que queriam tanto ter filhos que os adoptaram, famílias com estabilidade económica e sem problemas de drogas, criminalidade e afins que os excluíssem do processo de adopção, e assim por diante. Foi neste conjunto que 80% das diferenças cognitivas se explicavam por diferenças genéticas. Numa sociedade ideial em que todas as crianças tivessem o melhor ambiente para se desenvolverem, estes estudos dariam 100% de herdabilidade simplesmente porque a variância ambiental seria nula. Mas se medissem a herdabilidade da inteligência nas crianças da Nigéria, onde umas vão estudar para o estrangeiro e outras são vendidas como escravas, a mesma variância genética teria uma proporção quase nula na variância total devido ao enorme peso das diferenças ambientais. O resultado do estudo na Suécia é, em boa parte, indicativo da eficácia do igualitarismo sueco. As crianças são tratadas da mesma forma e, por isso, a variância ambiental tem um efeito pequeno na variância deste atributo. Isso não quer dizer que o ambiente em que vivem não seja importante.

Durante a maior parte destes dois posts, o Filipe parece julgar que o igualitarismo é a premissa de que somos todos iguais de corpo e atributos. Como se o ideal de igualdade entre os sexos fosse mulheres com testículos ou o objectivo das rampas de acesso a edifícios públicos fosse curar os paraplégicos. O igualitarismo não é uma afirmação de factos. É um valor. Que devemos ter todos direitos iguais, o mesmo estatuto para a sociedade, valer o mesmo como pessoas e ninguém sofrer de desvantagens impostas por terceiros ou pelo azar (5). Por exemplo, mesmo sabendo que nem todas as crianças vão ser excelentes a música, matemática, física ou literatura, podemos ainda assim dar a todas igual oportunidade de tirar partido do potencial que têm, seja muito ou seja pouco. Ou construir rampas para facilitar a vida a quem não consegue subir escadas.

O Filipe Faria confunde o significado da hereditariedade genética, julgando que uma herdabilidade grande significa que pouco podemos fazer acerca das diferenças nessa característica. Mas não significa isso, e até é o resultado esperado de políticas igualitaristas, que tornam a variância genética proporcionalmente mais importante precisamente porque reduzem a variância total dessa característica. E, ironicamente, o Filipe acaba por cometer a falácia naturalista que tanto critica nestes posts. É verdade que não somos todos iguais e que há características humanas muito resistentes a pressões sociais. Em média, damos muito mais valor aos nossos filhos do que aos filhos dos outros. Mas isso são factos. É falácia naturalista invocar isso, ou que «até o nosso desejo pela racionalidade ética é uma pulsão biológica», para rejeitar a ideia de que «a desigualdade natural não deve contar para estabelecer a moral». Eu gosto muito mais dos meus filhos do que dos filhos do Filipe, se ele os tiver. Mas sou perfeitamente capaz, ao mesmo tempo, de defender que todas as crianças devem ter os mesmos direitos, as mesmas oportunidades e o mesmo ambiente propício ao seu desenvolvimento. Não é o meu enviesamento emocional, por muito natural que seja, que deve condicionar os princípios éticos da nossa sociedade.

*Estas premissas não são sempre válidas. Por exemplo, se as crianças mais bonitas, de acordo com os critérios da sociedade em que crescem, tiverem, em média, estímulos mais positivos da parte das pessoas que as rodeiam, podemos sobrestimar o efeito dos genes na variação da inteligência devido à correlação entre o ambiente e genes para o aspecto físico. O mesmo se houver racismo, discriminação sexual, etc.

1-Priscila Rêgo, O que a genética (não) implica
2- Filipe Faria, Os Usos e Abusos da Falácia Naturalista; “O Homem Pode Fazer o que Quer, Mas Não Pode Querer o que Quer”
3- Plomin et. al, Variability and stability in cognitive abilities are largely genetic later in life.Behav Genet. 1994 May;24(3):207-15.
4- Wkipedia, Heritability. Encontrei isto traduzido como “herança” ou “hereditariedade”, mas apesar de ser uma palavra horrível, penso que “heritabilidade” será a tradução mas “herdabilidade” é a tradução mais correcta porque é um conceito muito mais restrito e rigoroso do que simplesmente hereditariedade.
5- Wikipedia, Egalitarism


Corrigido a 24-7 para substituir “heritabilidade” pela palavra correcta, “herdabilidade”. Obrigado ao Zarolho pela sugestão.

quinta-feira, julho 19, 2012

Confrangedor.

Escreve o Alfredo Dinis que o panorama dos blogs ateístas em português é «confrangedor [porque] os crentes são considerados pouco ou mesmo nada inteligentes, ignorantes, incapazes de pensarem pela sua própria cabeça, sem qualquer espírito crítico, dispostos a acreditar no quer que seja, hipócritas, exigindo que todos respeitem as suas crenças e práticas», o que «não pode estar mais longe da verdade»(1). Eu não descarto os crentes como meros agregados de defeitos mas, por outro lado, também não diria que a descrição está assim tão longe da verdade. Nem que são só os ateus a pensar isto dos crentes. A situação é mais complexa e multifacetada do que aquilo que o Alfredo sugere.

Se o Alfredo não restringir a definição de “crente” a algo como “teólogo católico doutorado em filosofia” e aceitar como crentes todos os que veneram um ou mais deuses, certamente verá muita ignorância e falta de espírito crítico nesse grupo, com criacionistas evangélicos, fundamentalistas muçulmanos, praticantes de vudu, candomblé e xamanismo, e afins. Um grupo, em média, menos tolerante do que os ateus. Há terrorismo religioso, países com penas de prisão ou de morte por apostasia e até a Igreja Católica persegue quem se atreve a desmascarar milagres da treta (2), manda censurar revistas (3) e cancelar campanhas publicitárias (4) por “falta de respeito”. Por cá, temos benefícios legais para as religiões sem nada equivalente para os ateus. Quanto à hipocrisia, também não me surpreende a acusação.

Por exemplo, apesar de, em Julho, o Alfredo considerar confrangedor chamar os outros ignorantes ou pouco inteligentes, em Maio escreveu de Dawkins que «a sua leitura da Bíblia – literalista e descontextualizada - não é a única possível, nem a mais informada e inteligente»(5). Em rigor, o Alfredo chama de ignorante e pouco inteligente à posição de Dawkins e não ao Dawkins em si. É uma distinção importante. Mas é a mesma que muitos ateus fazem. Eu não diria que pessoas como o Alfredo são pouco inteligentes, mas considero uma parvoíce a crença de que o criador do universo encarnou no filho do carpinteiro para morrer por nós. Se esta alegação é confrangedora e a do Alfredo não, então o critério dele é inconsistente.

Pior ainda é a diferença entre o que padres como o Alfredo dizem aos ateus e a doutrina que transmitem ao seu rebanho. Se compararmos uns milhares de pessoas doentes que vão a Fátima pedir curas, com outras, em situação análoga, que não pedem nada a Deus, qualquer diferença significativa a favor dos crentes será favorável à hipótese de Deus. Mas, dirá o Alfredo aos ateus, esta é uma forma incorrecta, e ignorante, de conceber Deus porque Deus não intervém nestas coisas e a sua existência não pode ser testada empiricamente. O problema é que isto classifica de ignorantes as multidões de crentes que vão a Fátima convencidos de que Deus vai intervir para bem deles. Ou seja, fazem o mesmo que o Alfredo diz ser confrangedor nos ateus e ainda encorajam os crentes, recebendo, com satisfação, as oferendas dos ignorantes que lá vão ao engano. Não é estranho que alguns vejam nisto hipocrisia.

Até o diálogo com o Alfredo levanta este problema. Por exemplo, o Alfredo continua a insistir que o universo não pode ter surgido do nada porque o conceito filosófico de nada proíbe que alguma coisa de lá surja (5). Mas, como já expliquei (6), o conceito não importa porque desses inventamos quantos quisermos. Também podemos conceber a combustão como um processo que produz flogisto ou a Terra como estando no centro do universo. O que importa é saber quais conceitos correspondem à realidade, e esse conceito filosófico de nada não corresponde. Por muito filosoficamente que se conceptualize, não há flogisto, o universo não tem centro e o nada não é como o Alfredo julga. É um estado instável no qual surgem partículas espontaneamente. Infelizmente, só vejo três explicações para esta teimosia do Alfredo. Ou não tem capacidade para compreender o assunto, ou lhe falta conhecimentos para perceber a física, ou então percebe bem o problema mas finge o contrário. Conhecendo pessoalmente o Alfredo, não posso aceitar as duas primeiras, mas também me custa aceitar a última. Fico assim de decisão suspensa só para evitar pensar mal do Alfredo. Mas nem todos terão a mesma relutância em formar uma opinião.

Finalmente, há uma recusa sistemática em reconhecer o problema fundamental. Citando um amigo, o Alfredo escreve que «há coisas que não vale a pena explicar. Ou porque são evidentes, e não é necessário explicar. Ou porque não são evidentes e não adianta explicar.» Isto é um disparate. O que não é evidente tem de ser explicado – e bem explicado – para que se perceba. E o que parece evidente tem também de ser explicado porque muitas vezes é falso. Só pela explicação é que percebemos que, ao contrário do que parecia, a Terra afinal não é plana nem a chuva vem dos deuses. Quer para o conhecimento quer para o diálogo, é preciso justificar adequadamente o que alegamos ser verdade. Os crentes também exigem isto dos seus interlocutores, mas isentam-se muitas vezes deste dever. A parábola que o Alfredo publicou a seguir ilustra bem isto (7). Dois fetos conversam na barriga da mãe. Um acredita que vai haver vida depois do nascimento. Que vai haver luz, que vão andar com os pés, comer com a boca, conhecer a mãe e assim por diante. O outro, do contra, diz que não. A mensagem parece ser que o crente acerta em tudo só por crer. Por pura sorte. Acredita e, hocus pocus, é verdade. Se é esta a atitude com que entram num diálogo não se devem admirar da má impressão que causam. Se, a quem nunca tivesse ouvido falar do catolicismo, eu alegasse saber pela fé que o criador de tudo é três pessoas numa só substância, pai, filho e espírito santo, o mais certo seria julgarem que eu não estava bom da cabeça, ou não fazia ideia do que dizia ou estava a aldrabar alguém.

1- Alfredo Dinis, ateísmo (em) português (1)
2- What's up Finland, Sanal Edamaruku and the Catholic church
3- Spiegel, Pope Takes German Satire Magazine to Court
4- Huffington post, Benetton Ad Withdrawn Same Day As Release
5- Em Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo e insistindo novamente no Prós e contras.
6- Equívocos, parte 14. Filosoficamente nada.
7- Alfredo Dinis, citando um comentador, a vida depois da vida

quarta-feira, julho 18, 2012

Evolução: polimorfismos.

Já me fartei dos disparates do Orlando Braga, mas a repetição (1), sem atribuição, dos argumentos e diagramas do Behe (2) inspirou-me para este post, o que agradeço. Um problema do criacionismo é olhar para sistemas como o da coagulação humana e imaginar um mecanismo preciso, como o do relógio de Paley, onde tudo tem de ser e encaixar exactamente assim.

Coagulacão
Fonte: Wikipedia

Mas os relógios da mesma marca e modelo são todos iguais e, se tiramos ou dobrarmos uma roda dentada o relógio deixa de funcionar. Os seres vivos não são assim. Os humanos são praticamente todos diferentes, com genes diferentes em combinações diferentes produzindo proteínas diferentes. Uns vêem bem, outros são míopes. Uns deixam de fumar sem esforço, outros não conseguem. Uns ficam a tremer com uma chávena de café, outros podem beber meia dúzia por dia sem problema. As nossas vias metabólicas são muito complexas mas não são como um relógio. São mais como um cozinhado. Deitar meio quilo de sal pode estragar tudo, mas uma pitada a mais ou as batatas cortadas desta ou daquela maneira pode nem fazer diferença. Depende do organismo e dos genes que tem.

É o que acontece na coagulação. Por exemplo, a deficiência de factor XI (PTA no diagrama do Orlando) resulta na hemofilia de tipo C. Esta é uma forma suave de hemofilia que muitas vezes nem é detectada porque mesmo com uma deficiência severa do factor XI não há grande tendência para hemorragias. Até é normal a actividade do factor XI ser muito reduzida antes dos seis meses de idade (3). Ao contrário do relógio, onde uma peça torta encrava tudo, o sistema de coagulação ainda se safa mesmo sem algumas peças. Não tão bem, mas serve. Mesmo na hemofilia A, normalmente muito grave, há casos de pessoas com grande deficiência do factor VIII mas que não sofrem de hemorragias espontâneas e apenas manifestam sintomas leves de hemofilia (4). O que mais importa não é a roda dentada em si mas o efeito no cozinhado todo.

E o mau numas coisas pode ser bom noutras. Por exemplo, a variante Leiden do factor V é uma mutação que aumenta a coagulação do sangue, o que aumenta os riscos de trombose venosa profunda (TVP). Em pessoas saudáveis o risco de TVP é de cerca de 1 em 1000 por ano, em pessoas com uma cópia da variante Leiden o risco é cerca de 1 em 200 e de 1 em 12 para quem tem duas cópias do gene (5). No entanto, esta variante do factor V reduz para um quinto a probabilidade de hemorragias intracranianas (6), possivelmente pela coagulação mais fácil.

Estes exemplos, apenas dois de muitos polimorfismos conhecidos, ilustram vários pontos importantes. Primeiro, nem todas as peças que fazem parte destes sistemas têm um papel igualmente crucial. O factor VIII, por exemplo, é muito mais importante do que o factor XI, a julgar pela severidade relativa das hemofilias A e C. Em segundo lugar, a interacção de várias variantes genéticas influencia estes efeitos, como se nota nos casos em que a deficiência de factor VIII apenas conduz a uma hemofilia ligeira. Em terceiro lugar, como mostra a mutação de Leiden, uma alteração pode agravar um problema (tromboses) mas mitigar outro (hemorragias no cérebro). Finalmente, todas estas variantes coexistem na mesma população que, com o passar das gerações, vai amostrando aleatoriamente o espaço de combinações possíveis e premiando aquelas que se correlacionam com maior sucesso reprodutivo (6). Isso é evolução.

Que o sistema preciso de um relógio de bolso evolua é difícil, não só porque os relógios não se reproduzem mas também porque são concebidos de forma inteligente para funcionar exactamente assim. Se olharmos para um ser vivo como se fosse um relógio não percebemos como pode evoluir. Mas os seres vivos não são relógios. A natureza é mais desorganizada, fluida e desenrascada do que um relojoeiro. Em vez de relógios todos iguais precisamente fabricados para medir o tempo da mesma forma, as populações de seres vivos têm imensa diversidade, com muitas combinações genéticas, umas com mais sucesso que outras, sem haver sequer uma solução ideal única para os problemas que enfrentam. Com esta imagem é fácil perceber como uma proteína nova pode entrar num sistema como o da coagulação sem estragar tudo.

Pode começar por ter um efeito pequeno. Por exemplo, aumentar ligeiramente a taxa de coagulação, como faz a variante Leiden, que até coexiste com o factor V normal na maioria dos portadores. Isto cria uma pressão selectiva que favorece qualquer proteína que, por mutação, ganhe um efeito regulador sobre a primeira. A partir daqui o par já pode começar a ter um efeito mais acentuado e mais focado naquilo que beneficia a reprodução desses genes organismo. Isto não é como o relojoeiro pôr mais uma roda dentada no relógio. É mais como acrescentar uma colher de colorau e depois mais um dente de alho para contrariar o sabor adocicado. O mais interessante é que nem precisa do cozinheiro, porque a competição entre os organismos encarrega-se de “provar” a receita a cada geração.

1- Orlando Braga, A fé inabalável do darwinismo
2- Podem comparar o diagrama no post do Orlando com estes dos livros do Michael Behe.
3- Medscape, Hemophilia C
3- Medscape, Hemophilia A
4- Wikipedia, Factor V Leiden.
5- Corral et al, Polymorphisms of clotting factors modify the risk for primary intracranial hemorrhage
6- Do fibrinogénio humano já conhecemos 20 variantes naturais da cadeia alfa, 14 da cadeia beta e 19 da cadeia gama. Isto dá 20x13x19 combinações diferentes só para o fibrinogénio, assumindo homozigotismo.


Adenda: segundo o Orlando, eu perdi o debate. Desoladíssimo, resta-me apenas dar-lhe os parabéns pela vitória.

terça-feira, julho 17, 2012

O como, o porquê e a pila da lesma.

Têm-me dito muitas vezes que a ciência apenas nos explica o “como” das coisas e só as religiões nos dizem o “porquê”. Isto tem vários problemas. Nunca dizem, em concreto, qual é o porquê. Não conseguem chegar a consenso acerca do porquê. Assumem gratuitamente que o porquê envolve sempre um quem. Mas o pior de tudo é insistirem que a ciência não explica o porquê, o que é obviamente falso. Vejamos, como exemplo, a lesma banana, Ariolimax dolichophallus, mais o seu pénis e estranhos hábitos sexuais.

Como é de rigor entre lesmas e caracóis, a lesma banana é hermafrodita. E, sendo descendente de um antepassado caracol, tem o ânus e os órgãos sexuais na cabeça, apesar de já não ter a casca que originou essa configuração desconfortável. Há quem lhe chame “design inteligente”. Como resultado, a cópula das lesmas consiste numa troca de esperma em que cada uma literalmente f*** a cabeça à outra. Durante horas, que as lesmas não são bicho para pressas. E com um pénis quase tão comprido como a própria lesma, que pode chegar aos 25cm. Mas mais estranho ainda é o seu comportamento sexual. Há cerca de um século, Harold Heath notou que uma em cada vinte lesmas banana não tinha pénis, ou tinha apenas uma pequena parte do pénis. Achou estranho. Sendo hermafroditas, todas deviam ter pénis. Heath procurou então perceber como é que estas lesmas ficavam sem pénis, o que rapidamente descobriu. No calor do momento, por vezes uma lesma come o pénis da outra, que normalmente retribui o favor.


Fonte: Last word on nothing e Boing Boing.

Estava então respondido o “como”, mas o “porquê” foi mais difícil. Demorou um século até se encontrar a resposta. Que, como devem imaginar, não tem nada que ver com planos divinos ou o espírito santo. A explicação é mais prosaica. Quando uma lesma fornece o seu esperma à/ao companheira/o* tem vantagem que a outra se fique por aí. Porque quanto mais vezes a outra lesma copular, e quanto mais esperma obtiver de terceiras, menos ovos serão fertilizados pelo esperma da primeira. A hipótese avançada para explicar porque é que uma lesma banana come o pénis da outra é que esta mutilação reduz a probabilidade de novos encontros sexuais, aumentando assim o número de descendentes da canibal. O único senão é que a outra aproveita para lhe fazer o mesmo. O trabalho fascinante da Brooke Miller (1) tem sido testar esta hipótese, recorrendo a marcadores genéticos que lhe permitem seguir e contabilizar a descendência de cada lesma, medindo directamente a aptidão de cada lesma para deixar descendentes. Até agora os dados confirmam a hipótese de que a razão fundamental – o porquê das lesmas comerem o pénis uma à outra – é a competição ao nível do esperma (2). É daqui que vem a pressão selectiva para este comportamento.

Esta explicação vai ao fundo da questão. Se nesta linhagem de lesmas, durante muitas gerações este comportamento levou, em média, a um número maior de descendentes, não é preciso invocar outros factores – nem inteligência divina, nem propósito nem omnipotência – para perceber o como e o porquê do comportamento. As lesmas que não se comportavam assim simplesmente não deixaram descendentes suficientes para serem antepassados de alguma lesma de hoje. Eis o porquê, que a ciência revela. Acrescentar a isto um porquê religioso é completamente desnecessário, se bem que até seria engraçado ver uma religião a tentar explicar, em detalhe, o porquê do seu deus criar lesmas que comem o pénis umas ás outras.

* Sendo hermafroditas, não têm os nossos problemas com o sexo ser homo ou hetero. Ninguém as avisou que a homossexualidade é contra a Lei Natural.

1- Página pessoal da Brooke Miller.
2- Resumo da dissertação Sexual conflict and partner manipulation in the banana slug, Ariolimax dolichophallus.

domingo, julho 15, 2012

Treta da semana: Higgs e os padres.

Leon Lederman chamou-lhe ”the goddamned particle”, por ser tão difícil de detectar, mas o editor mudou a expressão para ”the God particle”(1). Por causa disso, o Prós e Contras sobre a experiência mais importante dos últimos anos descambou em duas horas de Fátima Campos Ferreira a fazer comentários pseudo-orgásmicos sem cabimento nem relação com o assunto. O que foi pena. Gravei o programa mas não consegui ver tudo pelo efeito da moderadora na minha tensão arterial. Por isso, por agora fico-me pelo conflito entre a fé e a ciência. À parte de um comentário muito acertado da Olga Pombo, que quem se arroga de responder a tudo não é a ciência mas sim as religiões, e cada uma à sua maneira, pareceu-me que ninguém tocou no problema fundamental. As religiões alegam muita coisa que a ciência recomenda rejeitar como mito ou ficção – milagres, nascimentos virgens, conversas com anjos ou deuses, vida depois da morte e afins – mas o problema principal é afirmarem saber coisas sem determinarem primeiro se são verdade. Isto é um erro, em ciência e em geral.

O Alfredo Dinis disse que a questão da existência de Deus não é científica porque não é testável; o Carlos Fiolhais parafraseou Galileu, que a ciência diz como vai o céu e a religião diz como se vai para o Céu; o Gaspar Barreira salientou que há cientistas crentes; e o João Varela defendeu que a religião e a ciência são domínios independentes tal como a arte é independente da ciência. Disto tudo, só o João Varela está parcialmente correcto. A arte e a ciência são independentes sempre que a arte não pretenda representar correctamente algum aspecto da realidade. Por exemplo, uma pintura abstracta ou um solo de guitarra. Mas se um documentário, uma história de ficção científica ou um romance histórico apresentam alguma falsidade ou especulação infundada com a pretensão de ser um facto, isso é cientificamente incorrecto. Só é independente da ciência aquilo que não tiver pretensões de representar qualquer aspecto da realidade.

A discussão sobre a incompatibilidade da fé com a ciência padece de três maleitas. A primeira é julgar-se que isto tem alguma coisa que ver com cientistas terem fé. Não tem, porque é trivial um ser humano aceitar umas coisas por fé ao Domingo e exigir evidências para outras durante o resto da semana. A segunda é a compreensível falta de paciência de muitos cientistas para discutir isto a sério. Alegar que são coisas separadas poupa uma data de trabalho, mesmo sendo óbvio que dizer como se vai para o Céu implica, no mínimo, dizer que sobra o suficiente de nós, depois da morte, para ir a algum lado. Isso não se pode justificar pela fé. A terceira, e pior, maleita é assumir-se uma definição arbitrária e demasiado restritiva de ciência. Por exemplo, que por a ciência exigir hipóteses empiricamente testáveis qualquer doutrina se pode safar de uma crítica científica se invocar hipóteses impossíveis de testar. Isto é, obviamente, um disparate.

A ciência é o método, sempre em aperfeiçoamento, para obter modelos que correspondam a aspectos da realidade. Podem ser modelos matemáticos, diagramas ou proposições; o que importa é que se ajustem o mais possível ao que pretendem representar. É neste sentido que “a Terra é redonda” é um modelo melhor do que “a Terra é plana”. Todos os restantes detalhes que caracterizam a ciência derivam de restrições que a nossa natureza impõe à realização deste objectivo. Por exemplo, os artigos científicos são publicados apenas após revisão pelos pares porque os seres humanos têm muito mais objectivos do que a procura de conhecimento. Para podermos confiar minimamente no que os cientistas escrevem é preciso exigir uma análise crítica independente. Mas isto não é uma fronteira que delimite a ciência, e seria um disparate dizer que algo (e.g. astrologia ou espiritismo) está num domínio independente só por não ter peer review. Se todas as pessoas fossem investigadores perfeitos, isentos e objectivos não era preciso mas, sendo como são, temos de nos precaver contra eventuais erros e aldrabices.

Passa-se o mesmo com a necessidade de testar hipóteses. Imaginemos que o nosso cérebro nunca podia conceber falsidades. Se assim fosse, qualquer afirmação em que pensássemos teria de ser verdadeira e não era preciso testar hipóteses para fazer ciência. Bastava concebê-las e pronto. A ciência humana precisa de testar hipóteses não por uma regra arbitrária e opcional, mas porque somos falíveis e facilmente concebemos falsidades. Por isso, não podemos procurar conhecimento sem mecanismos para corrigir erros. Quem afirma “Deus existe mas isto não pode ser testado” não está num domínio independente da ciência. Está a fazer má ciência. A menos que seja infalível, tem de ter mais cautela com o que afirma.

O objectivo da ciência é gerar conhecimento acerca da realidade. Tanto faz o assunto. Dos hábitos sexuais dos Cro-Magnon à natureza da consciência e ao destino do universo, se é real é pela ciência que o podemos modelar e descrever. Qualquer domínio da experiência humana será independente da ciência se não tiver pretensão de fazer o mesmo. Ficção, poesia, humor, música, o que for. Mas se alega saber verdades acerca da realidade então está no domínio da ciência e, tal como a ciência, tem de ter em conta as limitações de ser humano. Apesar de explicar imensa coisa sobre os atributos fundamentais da matéria, o bosão de Higgs foi considerado hipotético durante quase cinquenta anos e mesmo depois do trabalho de milhares de cientistas com a máquina maior e mais complexa jamais construída ainda exigem um desvio de cinco sigma antes de arriscar a dizer que ele existe. Deus não explica coisa nenhuma, não temos qualquer indício de que exista e, ao fim de uns milhares de anos de especulação infrutífera, até muitos dos seus proponentes já desistiram de o procurar (“não é testável”, dizem). No entanto, acham que qualquer padre pode dizer que Deus existe, como se soubesse do que fala, e que tal atitude não tem qualquer conflito com a forma como a ciência obtém conhecimento.

1- The Economist, Fantasy turned reality

sexta-feira, julho 13, 2012

A Lusófona e o maná.

Por causa do ex-aluno Miguel Relvas, a Lusófona tem sido bastante comentada. Um dos rumores a circular pelas inter-redes é de que a Lusófona tem um protocolo com a Igreja Maná. Já falei disso em 2008 (1), quando encontrei o anúncio da «Escola Bíblica Maná» alegando que permitia aos alunos entrar «directamente para o terceiro ano universitário do Curso de Licenciatura em Ciências das Religiões». Mas já nessa altura apontei que «Esta informação parece estar desactualizada porque licenciatura agora é um primeiro ciclo de Bolonha e dura 3 anos» e que «A página na Lusófona também não menciona o acordo com a EBM». Hoje recebi um comentário do Paulo Mendes Pinto, director dessa licenciatura, a esclarecer que «não há qualquer acordo entre a [universidade] e a Igreja Maná». Para não ficar o esclarecimento enterrado num post com quatro anos, trouxe-o para este post.

Que aproveito para ligar à conversa do emprego público e privado. Numa universidade pública seria mais difícil dar um canudo por cunha. Um professor do quadro numa faculdade pública está contratualmente subordinado aos deveres desse cargo e não pode ser despedido só porque alguém quer. Por isso, é difícil pressioná-lo a fazer algo que não esteja de acordo com os seus deveres contratuais. Por exemplo, dar a um candidato equivalências pela sua experiência na direcção de um rancho folclórico. E convencer o conselho científico de uma faculdade pública a pactuar com tal coisa, nem que seja pelo silêncio, é praticamente impossível.

Em contraste, o contrato de trabalho no sector privado serve principalmente para subordinar o empregado aos interesses dos seus superiores. Há muito mais formas de o obrigar a fazer o que estes querem, mesmo que vá contra os regulamentos, deveres contratuais ou consciência profissional. É fácil ver que diferença faria se os polícias ou juízes fossem contratados pelo sector privado em vez de serem funcionários públicos.

Não quero dizer que o serviço público esteja isento de corrupção. Infelizmente, estamos muito longe disso. Mas há muita coisa que se considera corrupção no sector público e que é apenas bom negócio no privado. Uma clínica privada pode dedicar-se só a intervenções lucrativas, como a cirurgia estética. Uma escola privada pode escolher os alunos das famílias mais ricas. Uma empresa de segurança pode proteger só quem lhe paga. O mesmo empreendedorismo num hospital público, numa escola pública ou na polícia seria de condenar como corrupção. Independentemente do que possa ter acontecido na Lusófona, uma universidade privada é, sobretudo, um negócio cujo propósito é dar lucro aos accionistas*. Não quer dizer que os professores que lá trabalhem sejam menos conscientes ou queiram ser menos rigorosos do que os colegas das universidades públicas. Mas no sector privado estão sujeitos a outras pressões.

Quando se aponta que os funcionários públicos são mais difíceis de despedir é quase sempre só para dizer que têm uma vida mais fácil do que os trabalhadores do sector privado. Mas a moeda tem dois lados. É mais difícil despedir um funcionário público porque praticamente só pode ser despedido se violar o seu contrato de trabalho, enquanto o trabalhador do sector privado até pode ser despedido simplesmente por dar jeito ao patrão, ao administrador, ao senhor director ou a seja quem for que mande nele nesse momento. O outro lado desta diferença é que, no serviço público, estes chefes têm muito menos poder do que no sector privado. Muito menos poder para pressionar os subordinados a fazer o que dá jeito aos chefes. Se bem que isto reduza a tal “flexibilidade” que muitos economistas elogiam no sector privado, também protege os profissionais de pressões e interesses que os possam desviar do exercício correcto da sua profissão. E em muito daquilo que os funcionários públicos fazem, desde a defesa nacional à educação e saúde, isto é importante. Antes assim que, para facilitar os despedimentos por razões económicas, dar a quem tem cargos administrativos no Estado tanto poder para manipular os seus subordinados.

* Apesar de não ser grande fã do catolicismo, aqui tenho de reconhecer que a Universidade Católica é um caso diferente. Para bem ou para mal, apesar de ser uma instituição privada, o seu propósito é muito mais ideológico do que de económico, o que explica a sua reputação de excelência, e também a sua influência nos círculos do poder.

1- Treta da Semana: A Escola Bíblica Maná.

quinta-feira, julho 12, 2012

Adenda ao post da coagulação.

O Orlando alongou-se aqui sobre a grande complexidade do sistema de coagulação dos mamíferos, concluindo que é de «extrema complexidade irredutível», sendo a sua evolução um «milagre de Darwin». Faltou-lhe, no entanto, considerar toda a evidência em favor da evolução, como a existência de outros sistemas de coagulação de complexidade mais reduzida, a homologia destas proteínas entre si e com outras de função diferente, a filogenia das proteínas envolvidas e a correlação das diferenças entre estes sistemas e a distância filogenética dos organismos.

Também me criticou por ter escrito que a fibrina se agrega aos molhos. «É de uma desonestidade intelectual, ou ignorância, dizer que a fibrina “se agrega aos molhos” como se de uma forma aleatória se tratasse!» Podem ver aqui algumas fotografias de agregados de fibrina, por microescopia electrónica, para decidir se é assim tão desonesto dizer que estão “aos molhos” e se a ignorância é minha. Finalmente, quanto à «simplicidade milagreira darwinista» de que o Orlando me acusa, posso alegar em minha defesa que tenho alguma familiaridade com o fibrinogénio e com a complexidade dos processos fisiológicos em que participa, mas que não é essa complexidade em si que nos permite distinguir se surgiu por milagre ou se evoluiu. Daí que tenha optado por dedicar mais do post àquilo que suporta a teoria da evolução. No entanto, tenho curiosidade em saber que explicação o Orlando propõe para a origem do sistema de coagulação dos mamíferos. Espero que tenha mais detalhes do que “No início, Deus criou o sistema de coagulação dos mamíferos, e viu que isso era bom”.

Igualdade.

O Tribunal Constitucional pronunciou-se contra o corte de salários só aos funcionários públicos, entre outras considerações, porque desrespeita o princípio da igualdade estatuído no artigo 13º da Constituição. Várias pessoas levantaram objecções por os ordenados dos funcionários públicos serem mais altos (1), por terem sido aumentados em 2009 (2) ou até porque o corte salarial faz parte do “ciclo económico” (3). Subjacente está também a premissa de que o corte reduz a despesa do Estado, o que é uma virtude, enquanto que cobrar um imposto análogo ao sector privado iria aumentar a receita do Estado, o que é pecado. Isto é uma confusão.

A distinção entre despesa e receita do Estado pode ser importante para a contabilidade mas, em geral, reduzir a avaliação da cobrança e redistribuição à mera soma das parcelas é um erro. Que terá de ficar para outro post. Neste, quero apontar apenas que esta distinção não ajuda a avaliar a justiça do corte salarial porque reterem duas das catorze prestações do salário anual é fazer o mesmo que fazem com o IRS ou outros impostos. São tudo partes do salário que o funcionário nunca chega a ter, por imposição do Estado. A distinção contabilística é irrelevante.

O que importa é que é imposto, unilateralmente, pelo Estado. Na relação laboral normal, os ordenados podem ser renegociados por acordo comum, mas só o Estado tem o poder para ficar com parte dos ordenados ignorando os contratos de trabalho. É esse poder que a constituição regula, e precisamente para impedir que o Estado imponha a uma minoria algo que a maioria nunca aceitaria sem discriminação. Neste caso, um imposto extraordinário de 15% do salário. O princípio constitucional da igualdade não se refere a salários, aumentos ou contratos de trabalho, que são negociados entre as partes envolvidas. É verdade que nem todos têm o mesmo poder de negociação. Um professor contratado no ensino secundário ganha menos, e tem uma posição mais frágil, do que um controlador de tráfego aéreo efectivo. Mesmo que o professor trabalhe para o Estado e o controlador aéreo para uma empresa privada, o professor tem menos poder para negociar o seu contrato. Mas isto não tem que ver com o princípio de igualdade na Constituição. O que a Constituição regula é o poder que o Estado tem de ficar com uma parte do ordenado do trabalhador seja qual for o contrato e seja quem for o patrão. Chamem-lhe corte, imposto ou até abono*. O que a Constituição exige é que o Estado o faça de forma equitativa. Se duas pessoas ganham o mesmo, pagam o mesmo, trabalhem para quem trabalharem. Senão, qualquer governo contorna a democracia com este “dividir para conquistar”.

A diferença média de salários entre o sector público e o sector privado – que não é de 73% como alega o Ricardo Magalhães (1) mas sim de 4,4% como explica a Priscila Rêgo (4) – é irrelevante porque é uma média. O que deve determinar que impostos certa pessoa paga é o seu rendimento e não a média de quem se possa incluir no mesmo grupo. Se os funcionários públicos ganham mais em média, pois em média pagarão mais impostos. É justo. Mas isto não justifica que um funcionário público pague mais impostos do que outro trabalhador com um ordenado equivalente. Isso é injusto. Outro argumento é que os funcionários públicos merecem pagar mais porque é menos provável serem despedidos. A premissa, implícita, é que se calcule o imposto de hoje em função do que se estima para o futuro. Não faz sentido. No topo da minha carreira o ordenado é muito menor do que os salários de topo na maioria das empresas. No entanto, não se vai cobrar mais impostos aos trabalhadores do sector privado apenas porque, um dia, pode ser que ganhem muito mais do que eu. Se esse dia chegar, então nesse dia pagarão mais impostos. Mas até lá, não. O mesmo para o despedimento. Quem for despedido terá ajuda do Estado mas, enquanto não for, essa possibilidade não deve contar para os seus impostos. Nem a favor, nem contra; também não vai pagar mais só por ser mais provável que venha a precisar do subsídio de desemprego. Estes cálculos não são justos nem justificáveis.

Finalmente, há uma ideia enraizada de que se deve ajustar as condições do sector público às condições do sector privado. Apesar de exagerarem nas diferenças, é verdade que há mais garantias no sector público e o ordenado, em média, também era mais alto**. Mas esta ideia presume, implicitamente, que o que se faz no sector privado é mais desejável e justo: ordenados mais altos para os trabalhadores mais qualificados, muito mais baixos para os trabalhadores menos qualificados e uma probabilidade de desemprego maior para estes últimos. Compreende-se que seja assim no sector privado, onde a função principal dos trabalhadores é dar lucro aos accionistas. Mas não me parece algo desejável. Eticamente, deve ser permitido porque proibi-lo exigiria restringir liberdades pessoais cujo valor intrínseco ultrapassa o custo moral desta sua instrumentalização. Não vamos proibir que negoceiem contratos de trabalho, por exemplo. Mas não é objectivo a atingir. Pelo contrário, penso que a solução do Estado é mais acertada. Em relação ao sector privado, dá mais segurança e reduz as desigualdades entre trabalhadores menos qualificados e trabalhadores mais qualificados. Não espero que o mercado livre faça o mesmo, mas parece-me insensato exigir do Estado que actue como um empregador privado, cuja preocupação principal é lucrar com o trabalho dos empregados.

Em suma, esta decisão do TC abre a possibilidade de cortes em todos os salários, não apenas nos do sector público. O que pode parecer mau mas é bom. Em parte porque permite que esse esforço – chame-se receita ou poupança – seja distribuído por todos em vez de ser exigido só de alguns. Mas, sobretudo, porque agora o governo terá de fazer estas coisas com a aprovação de cinco milhões de pessoas em vez de ignorar a democracia e sacrificar dez porcento enquanto os outros noventa encolhem os ombros.

* Graças a uma destas medidas de austeridade, todos os meses recebo um abono de menos 260€. Seria bom se pudesse prescindir desta bonificação negativa...
** Os tais 4.4% antes dos cortes todos. Agora, duvido que seja...

1- Ricardo Magalhães, Tribunal Constitucional deixa desnível de 40% de fora
2- Helena Matos, aqui, aos 2m30s.
3- João Miranda, Desigualdade perante o ciclo económico
4- Priscila Rêgo, Rigor

terça-feira, julho 10, 2012

Evolução: coagulação.

Assumindo que a melhor maneira de sair de um buraco é escavar o fundo, o Orlando Braga volta à carga contra a teoria da evolução. De um comentário na Nature (1), conclui que «A experiência científica [...] demonstra que não existe um “ancestral comum”»(2). Talvez por falta de tempo, o Orlando esqueceu-se de olhar para o boneco no artigo (que lesse o texto já seria exigir demais). A experiência foi o cálculo da filogenia de mamíferos usando sequências de micro-ARN, resultando numa árvore filogenética diferente da consensual. Isto pode dever-se à grande variabilidade destas sequências, o que exige algumas considerações adicionais (3). Mas, seja como for, o boneco mostra claramente que esta árvore filogenética também tem um ancestral comum. A única diferença é que alguns ramos estão em posições diferentes.

Pergunta também o Orlando, noutro post (4), «Como é que o darwinismo explica a formação do cílio — ou do flagelo, ou do sistema imunitário humano, ou do sistema de coagulação do sangue, etc. — mediante o conceito de selecção natural através de mutações aleatórias que consistem em pequenas alterações dos sistemas em pequenos passos?» Num post não consigo explicar isto tudo. No entanto, como o interesse sincero do Orlando em aprender estas coisas só é ultrapassado pela sua simpatia e educação, vou tentar responder à da coagulação. Queria só deixar claro que o que explica a evolução dos mecanismos de coagulação do sangue não é o “darwinismo”, um termo ambíguo e muito abusado hoje em dia. A explicação está na teoria moderna da evolução, a síntese da teoria de Charles Darwin com a genética de Mendell e tudo o que se foi descobrindo, entretanto, de biologia molecular.

Em mamíferos como nós, o coágulo de sangue é formado pela fibrina, uma proteína fibrosa que se agrega em molhos densos. Normalmente, esta proteína está no sangue na forma de fibrinogénio, tendo um trecho de aminoácidos carregados que impede essa agregação, e é activada pela trombina, uma protease que corta esse pedaço. Por sua vez, a trombina é activada pelo factor X, ambos normalmente na forma forma inactiva, e o factor X pode ser activado por uma de duas outras proteases, também normalmente inactivas, o factor IX* ou o factor VII. O factor VII é activado por contacto com proteínas solúveis dos tecidos que só aparecem no sangue em caso de hemorragia interna. O factor IX é activado pelo factor XI, que é activado pelo factor XII, que é activado quando o sangue é exposto ao ar ou a um corpo estranho. O mecanismo parece excessivamente complicado, mas faz sentido porque a cada passo de activação há uma amplificação do sinal. Se cada protease activar 10 moléculas, cada factor XII que se active levará à formação de cem mil moléculas de fibrina. Isto permite uma resposta rápida e vigorosa às hemorragias, com óbvias vantagens para o organismo.

A explicação científica é que estes factores evoluíram por duplicação genética e acumulação de mutações, como evidenciado por serem praticamente todos proteases de serina e muito parecidos entre si. Assim, num antepassado distante o mecanismo de coagulação era mais simples mas, por duplicação dos genes e acumulação mutações pontuais, estas proteínas foram se especializando e aumentando a eficácia do sistema. A alternativa é que um deus super-duper inteligente criou isto tudo por magia. Vejamos como distinguir entre as duas hipóteses.

A hipótese da magia, milagre e afins deixa pouco que se possa testar. Mas se esta é a forma inteligente de optimizar a coagulação, espera-se encontrar este sistema generalizado pelos animais cujo sangue coagula. Em contraste, se o mecanismo evoluiu pela acumulação e selecção de mutações, devemos encontrar mecanismos diferentes, de diferentes complexidades, em linhagens diferentes. E é isso que acontece. Por exemplo, em alguns invertebrados o sangue coagula pela agregação dos glóbulos brancos, naturalmente “pegajosos”. Como a pressão sanguínea destes animais é baixa, este sistema, mesmo que pouco inteligente e relativamente ineficiente, serve-lhes bem. Na lagosta, em vez de proteases, é uma transglutaminase, presente nas células, que quando se espalha no sangue por algum trauma forma um coágulo interligando uma proteína que faz as vezes do fibrinogénio (se bem que seja muito diferente do nosso).

Se o mecanismo de coagulação dos mamíferos evoluiu por duplicação de genes e acumulação de mutações, será de esperar que a árvore filogenética destas proteínas seja a mesma nestes mamíferos. Por outro lado, a hipótese de criação milagrosa não implica sequer uma árvore filogenética porque não implica parentesco entre as proteínas. Mais uma vez os dados favorecem a evolução. Mais, todas as proteases de serina da cascata da coagulação são homólogas da tripsina, uma protease pancreática, mostrando que não foram “inventadas” para a coagulação mas adaptadas de mecanismos pré-existentes. Este processo de evolução também implica que o fibrinogénio descenda de alguma proteína com outros propósitos e da qual se deve poder encontrar vestígios. Assim é. O pepino-do-mar, por exemplo, não tem proteínas de coagulação mas tem variantes do fibrinogénio (5).

Alega o Orlando que «Um dos grandes sofismas do darwinismo é misturar a micro-mutação, por um lado, com macro-mutação, por outro lado.» Não é sofisma do darwinismo. O problema, nessa conversa, é que os críticos da teoria não percebem (ou fingem não perceber) o significado desses termos. Mas nada do que expus aqui tem que ver com isso. O que demonstra que o mecanismo de coagulação evoluiu, em vez de ter sido criado pela magia de um ser inteligente, são todos os vestígios observáveis que se espera de tal processo. A hipótese do milagre, em contraste, não tem qualquer fundamento nas evidências.

*Para activar o factor X, a forma activa do IX precisa de se associar ao factor VIII, outra proteína. A principal causa da hemofilia é um defeito neste factor VIII.

1- Nature news, Phylogeny: Rewriting evolution
2- Orlando Braga, A experiência científica — e não a metafísica darwinista — demonstra que não existe um “ancestral comum”
3- E.g. Leipzig U., RNA-Based Gene Phylogeny
4- Orlando Braga, Pergunta ao troll darwinista de serviço na blogosfera
5- Xu, Doolittle, Presence of a vertebrate fibrinogen-like sequence in an echinoderm. PNAS 87(6):2097-101, 1990.
Outras fontes: Wikipedia, um texto do Ken Miller sobre The Evolution of Vertebrate Blood Clotting e o livro dele, «Finding Darwin's God»

domingo, julho 08, 2012

Treta da semana: alma de cão.

No fórum Portugal Paranormal, um participante relatou o que lhe aconteceu aos 18 anos, depois de morrer a cadela que tinha desde pequeno e que, no final da vida, tinha sofrido de ataques epilépticos. «Poucas semanas após a sua morte, cheguei a casa, estava canssadissimo e adormeci no sofa, acordei com o barulho da Nancy a ter um ataque na cozinha levantei-me e ligeiramente o barulho dos guinchos dela transformou-se no barulho dos estores a abanar. Fiquei sem compreender se tinha sido ou não obra da minha imaginação. Os estores pararam mas eu ainda em estado alerta, voltei a sentar-me no sofá e aí ouço claramente um barulho caracteristico dela, o andar dela no corredor, aquelas unhas grandes que ela tinha a andar no chao de madeira pelo corredor todo e aperecebi-me claramente que ela estava ali.» Perguntou então aos restantes membros do fórum se «afinal os animais depois de morrerem têm ou não espirito?» Começando com algumas divergências, eventualmente os participantes chegaram a um consenso (1).

«Os animais não têm espirito.Esquece! […] Não te enganes a ti e nem queiras enganar os outros.»

«É claro que os animais, bem como todos os seres sencientes, têm o que usualmente chama-se de espírito. E sim, a tua cadelinha pode ter ido fazer-te uma visita...»

«Para mim tenho a convicção de que os animais têm espírito (energia inteligente que permanece depois da morte física). Mas não terão alma (entidade autónoma da energia espírito e do corpo físico, anterior a eles).»

«Acerca do animais terem espirito, eu acredito que sim, porque tal como nós, eles estão aqui por algo motivo e como todos nós sabemos tudo isto funciona através da energia pura...»

«Claro que os animais teem espirito, nos somos animais e temos espirito»

«Os animais também são seres humanos por isso têm o mesmo direito de ter alma e espírito.»

O que me interessou aqui na discussão não foi tanto a conclusão – a hipótese de que os animais têm espírito porque são humanos e têm direito a isso parece-me particularmente equivocada – mas sim o percurso e, especialmente, o que ficou omisso. A pessoa que expressou a opinião minoritária, de que os animais não têm espírito, acabou por ser expulsa do fórum a meio da conversa. Segundo a moderadora, «há que saber respeitar as opiniões das pessoas e não impôr a nossa». A ironia de expulsar alguém porque se deve respeitar a sua opinião e não lhe impor a nossa parece ter escapado por completo a todos os participantes. Admito que um tipo (é homem de certeza) que escreve «a minha sabedoria não provem de mim e nem de livros de homens,mas sou eu que a peço a Deus» está mesmo a pedir para ser corrido, mas não é a melhor forma de descobrir quem tem razão. No entanto, descobrir quem tem razão não parece ter sido prioritário. E essa foi a parte mais fascinante.

Ao criticar estas tretas, a tendência é de focar nas crenças que as pessoas defendem. Que os animais têm espírito, ou não, ou que sim mas não têm alma, ou que é abominação e assim por diante. Mas mais significativo do que o que afirmam é o que deixam de fora. Por exemplo, a hipótese da sensação de ouvir a cadela ser criada pelo cérebro de quem tem saudades dela em vez de um espírito sobrenatural só apareceu de raspão e foi descartada de imediato com um «Não sou nenhum maluco». Eu também não sou muito maluco, pelo menos no que é normal entre informáticos. Mas depois do meu pai morrer vi-o várias vezes na rua, nos transportes, na cara de pessoas que, olhando com mais atenção, nem sequer se pareciam com ele. O cérebro é uma máquina complexa. Não é preciso ser-se maluco para que algo que esteja muito no pensamento acabe por influenciar os sentidos.

Mas a omissão mais importante, nesta conversa sobre o espírito da cadela e, em geral, nas superstições, misticismos e religiões, não é uma hipótese particular. É o método. Em quarenta e duas respostas à pergunta inicial, entre várias propostas de espírito, alma, nada, esperam pelo dono “do outro lado” ou “esquece, não te enganes”, ninguém mencionou sequer o problema de como determinar quem tem razão. O problema de saber se o cão tem espírito ou alma, se fica do “outro lado” ou não, se Deus aprova ou reprova, em vez de simplesmente afirmar a acreditar.

A diferença principal entre crentes e cépticos não está naquilo em que acreditam. Por exemplo, como os criacionistas fazem questão de salientar, muitos cientistas do tempo de Darwin eram criacionistas também. A grande diferença é que os crentes dão mais importância ao respeito pelas (suas) crenças enquanto que os cépticos se preocupam em averiguar quais é que estão certas, independentemente de já serem suas ou de ainda estarem para ser.

Editado no dia 9 para corrigir umas gralhas. Obrigado ao João Vasco.

1- Portugal Paranormal, O espírito da minha cadela!

Censurar a poupança.

Na sequência de um post de 2011 sobre uns produtos Moletech, que alegadamente fazem poupar combustível (1), os autores do site Poupar Melhor foram obrigados a remover referências à Moletech devido a uma queixa dos vendedores portugueses desta coisa (2). O site até esteve temporariamente offline (3) porque alguém dizendo ser «Rui Salvador, COO da Moletronic Portugal Lda.» alegou que «www.pouparmelhor.com está a usar imagens e marcas registadas como "Moletech" sem autorização», que «de boa fé crê que o uso em disputa não está autorizado pelo dono, seu agente ou pela lei» e mais jurou, sob pena de perjúrio, ser «ou dono ou autorizado pelo dono a agir em seu nome»(4).

Do ponto de vista legal, e falando estritamente em abstracto, este tipo de acção tem implicações interessantes. Segundo a legislação dos EUA, um takedown notice ao abrigo do DMCA exige que o queixoso tenha razões para crer, em boa fé, que ocorreu uma infracção e que seja ou o dono do material em causa ou autorizado pelo dono a agir em seu nome (5). Se uma pessoa, por hipótese, falsamente se fizer passar por dono, ou agente autorizado do dono, de uma marca ou obra protegida incorre num crime de perjúrio. Por cá, pode incorrer no crime de denúncia caluniosa, ao abrigo do Art. 365º do Código Penal:

«Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»

Não querendo lançar quaisquer suspeitas sobre o Rui Salvador, penso que seria interessante averiguar se este senhor é mesmo o detentor dos direitos exclusivos sobre a marca Moletech e a imagem em causa na sua queixa, ou se tem autorização dos detentores desses direitos para agir em seu nome. Não só pela questão do perjúrio na legislação americana, mas também porque a legislação portuguesa concede estes direitos exclusivamente aos seus detentores. Parece-me que se, por hipótese, alguém se fizer passar, falsamente, por detentor destes direitos com o intuito de impedir a distribuição de uma obra protegida pode incorrer num crime de usurpação de direitos de autor, punível com até 3 anos de prisão.

Além da questão de quem tem o direito de proibir, há também a alegação de que o Poupar Melhor usou ilicitamente «marcas registadas como "Moletech" sem autorização». O uso de uma marca registada só requer autorização do detentor da marca se houver risco do consumidor julgar que a marca promove algum produto ou declaração. Se eu escrever que gosto de Coca-Cola, acho os sapatos da Nike caros e não vou comprar nada à Moletech não preciso de autorização nenhuma. Não havendo perigo de julgarem que eu represento estas marcas não é ilícito nenhum escrever estes nomes, com ou sem autorização. A legislação da marca registada visa a proteger o consumidor. Não é uma ferramenta de censura.

O que me traz ao mais importante. Sem querer tecer considerações sobre este caso particular, e salientando que não sou jurista, penso que, em geral, deve ser possível instaurar um processo crime contra quem se fizer passar por detentor de direitos que não tem, ou alegar ser ilegal algo que obviamente não é, só para censurar críticas legítimas. Além da denúncia caluniosa e da usurpação de direitos de autor, pode incorrer também no crime de injúria por alegar, perante terceiros, que o visado cometeu um crime. No entanto, penso que isto seria um desperdício de recursos judiciais. É melhor resolver este problema por outras vias.

O problema fundamental da “tecnologia” Moletech é científico. Alegações como «O dispositivo Moletech™ tem a capacidade de mudança em três áreas dentro do espectro do combustível pela absorção de CH (benzeno) de hidrocarbonetos saturados e insaturado» ou «a cerâmica absorve a energia térmica a partir do seu ambiente circundante, em seguida, liberta-o em comprimento, quebrando a força intermolecular de “van der Waals”» são disparate (6). Mas se esta cerâmica liberta uma energia que altera ligações de carbono e forças de van der Waals, é crucial que descrevam as evidências que têm. Não só pela revolução que representaria na química e mecânica quântica mas também pelo perigo de usar esta cerâmica. Muito nos tecidos biológicos depende de ligações de carbono e de forças de van der Waals. Não seria nada saudável apanhar com radiações que alterassem isto. Esta questão resolve-se com evidências e discussão livre. Não se resolve nos tribunais nem com ameaças.

O outro problema é a atitude censória dos vendedores destes aparelhos. Mas esse é fácil de resolver. Quanto mais ameaçarem mais se fala do assunto, até perceberem que tentar censurar críticas na Internet é tão sensato como tentar poupar combustível com cerâmicas Moletech. A atitude do Rui Salvador e da Moletronic diz muito acerca da honestidade destas pessoas e da qualidade do seu produto. Por razões legais, não posso escrever explicitamente o quê, nem sequer vou adiantar se é bom ou se é mau. Mas penso que nem é preciso.

1- Poupar Melhor, Equipamentos que não poupam combustível
2- Poupar Melhor, Poupar Melhor: Pedido de remoção de conteúdo
3- Álvaro Ferro, Pedido de remoção de conteúdos do blog Poupar Melhor: quebra de serviço
4- Binrand, Take down notice Pouparmelhor.com
5- EFF, Intellectual Property
6- Podem encontrar estas alegações no site da Moletronic, Como Funciona, Quanto se Poupa?, mas o melhor é ler logo o post da Palmira sobre isto.

sábado, julho 07, 2012

Os bugalhos e o busílis.

Tenho visto várias pessoas a desvalorizar a confusão com a licenciatura do Miguel Relvas por ele não a usar para nada, por ser uma questão insignificante, por ser só para fazer notícia e assim por diante (1). Na verdade, não é preciso canudo para ser político nem ele desempenha funções que só um técnico habilitado em Ciência Política e Relações Internacionais possa desempenhar. Se é que há disso. Se tem ou não tem licenciatura é, em si, irrelevante. Mas o problema é que obter a equivalência a 32 das 36 disciplinas da licenciatura graças ao “percurso profissional” sugere bastante mais do que mérito académico (2). O processo pode ser formalmente legal, mas não é para qualquer um e, sem amigos nos sítios certos, é duvidoso que alguém consiga uma licenciatura assim. E isso é um problema.

Não que seja problemático alguém ter um certificado de relações internacionais sem estar devidamente habilitado. Não é como se fosse cirurgião ou piloto. Mas se o Miguel Relvas usou a sua influência e contactos para obter esta licenciatura de borla, isto demonstra um poder além dos que lhe foram atribuídos, legitimamente, pelo eleitorado. Os poderes de deputado, secretário de Estado, ministro e outros cargos que tem ocupado são bem definidos. Em contraste, o poder de obter uma licenciatura desta forma é uma incógnita; não se percebe de onde vem nem onde acaba.

É claro que qualquer político tem desses poderes, infelizmente, e é um problema que os usem. Do Miguel Relvas é difícil não ficar com a sensação de que usa a influência que tem, legítima ou não, quando isso lhe traz vantagem (3). Devíamos exigir mais dos políticos mas já se instalou algum conformismo a este respeito. Já damos o desconto. Se alguma coisa lhes interessa mesmo, não nos surpreende que a tentem alcançar nem que seja palmando-a de saída ou ameaçando alguém por telefone. O problema principal, neste caso da licenciatura, é que o canudo não tem interesse nenhum. Nem para nós, nem para o Miguel Relvas. Até deve ser difícil encontrar uma licenciatura mais próxima de licenciatura nenhuma do que Ciência Política e Relações Internacionais concluída com média de onze valores e apenas quatro exames.

Isto é que assusta. Se o caso é como parece, o Miguel Relvas não é apenas um político daqueles que puxam um cordel aqui e ali quando vêem vantagem nisso. É pior. É alguém que o faz só porque pode, mesmo sem tirar vantagem real disso, e sem considerar quem prejudica pelo caminho (4). Isto não é um “não assunto”. É um exemplo extremo de como este homem usa o poder que tem e é uma boa justificação para lho tirar.

Adenda: “ah, e o Sócrates?”. Sim, era a mesma coisa. Deve ter feito mais uns exames mas também deu muitas demonstrações de ter um carácter parecido. Independentemente de estar mais à esquerda ou à direita, também não é pessoa a quem seja sensato dar poder.

1- Helena Matos, Pedro Froufe, Rodrigo Moita de Deus
2- AF, Licenciatura: Relvas fez quatro das 36 cadeiras
3- Por exemplo, as alegações da ameaças à ERC, via Esquerda Republicana
4- Como os infelizes que se licenciaram na Lusófuna.

quinta-feira, julho 05, 2012

Treta da semana (passada): curso “Ciência e Fé”.

O curso do Bernardo Motta sobre ciência e fé, de sub-título «Argumentação em defesa da profunda concordância entre cristianismo e ciência. Ad maiorem Dei gloriam» (1), já terminou há uns meses mas só agora tive tempo de começar a ler o material. Apesar de discordar de muito (ou quase tudo), louvo o contributo porque reúne num pacote conveniente muitos defeitos dessa ideia da fé ser compatível com a ciência. Este post é sobre a introdução da versão compacta, onde o Bernardo faz um enquadramento da relação entre ciência e fé começando, curiosamente, pelo ateísmo: «Do ponto de vista ateísta: a crença na existência de Deus é irracional» porque «o conceito de Deus é contraditório» ou porque «Deus poderia existir, mas não existe».

Em primeiro lugar, não há “o conceito de Deus”. Há uma carrada. Cada religião – diria até cada religioso – tem um, diferente dos restantes. Alguns são inconsistentes, é verdade. Por exemplo, o de ser omnipotente e omnisciente. Se já sabe tudo o que irá acontecer não pode fazer mais do que assistir, impotente, ao desenrolar do destino. E se pode fazer tudo o que entender então não há nada para saber. Vai chover no Sábado? A Terra é redonda? Será como quiser e pronto. Em vez de sabedoria só terá caprichos. Quanto aos conceitos de deuses que não são inconsistentes, são tão pouco plausíveis que também não se justifica acreditar neles.

Segundo o Bernardo, «Só se pode dizer que [a crença na existência de Deus] é irracional se se mostrar que é impossível que Deus exista». Não é verdade. Por exemplo, é possível que o Bernardo seja um extraterrestre e que a Alexandra Solnado escreva o que Jesus lhe dita, mas ainda assim é irracional acreditar em tais coisas. Porque o irracional está logo em dar mais crédito a uma hipótese do que se justifica pelo peso das evidências. Por isso, é irracional crer que o criador do universo engravidou uma palestiniana para nascer dela e depois morrer torturado como requisito para nos perdoar os pecados dos nossos antepassados já defuntos. Não é que seja impossível, mas não é uma hipótese favorecida pelo peso das evidências.

Seguidamente, o Bernardo apresenta o cristianismo como «berço da Ciência» pela sua visão judaico-cristã de um universo inteligível, um criador separado da criação, o «enorme valor dado à Criação e ao Homem», o «Fim do Cosmos pagão» e assim por diante. Isto não encaixa na história. O primeiro grande passo em direcção à ciência foi a filosofia grega, que pôs a análise metódica, a discussão aberta e a argumentação racional à frente do misticismo e da prepotência religiosa. O cristianismo veio depois, recuando meio passo pelo menos. E o segundo grande passo foi a tecnologia dos instrumentos de medição e observação, a partir do século XV, que deu à filosofia uma base empírica sólida e a tornou no que agora chamamos ciência. O cristianismo limitou-se a atolar o primeiro passo na teologia e depois a ameaçar com prisão ou fogueira os que começaram a dar o segundo.

O Bernardo alega também haver «certos princípios que aceitamos como verdadeiros, mesmo sem provas empíricas», mas depois dá exemplos do mais empírico que há, como «Existo […] Sou distinto do que me rodeia […] Há uma realidade objectiva […] Os meus sentidos reflectem, de certo modo, a realidade» e assim por diante. Estas conclusões não são deduzidas de axiomas abstractos. São fruto da nossa experiência. Outra confusão é achar que a ciência e o conhecimento exigem pressupor «um Cosmos racional e inteligível». Nada disso. Para procurar conhecimento basta ter curiosidade. Não é preciso pressupor essas coisas. Hoje até sabemos que o universo está longe de ser inteligível. Não conseguimos imaginar um angstrom, um ano luz, um picosegundo ou um milhão de anos. Não conseguimos perceber os detalhes dos modelos do clima, de reacções nucleares ou de dinâmica molecular que, sem computadores, nunca conseguiríamos implementar. Graças a sistemas formais como a matemática conseguimos criar modelos rigorosos de processos sub-atómicos, mas não temos forma de os transpor para a nossa experiência subjectiva de forma a que a mecânica quântica seja inteligível. O universo é muito mais do que qualquer um de nós consegue compreender e, colectivamente, até a ciência já ultrapassou os limites do cérebro humano.

O Bernardo tenta também demonstrar que se pode obter conhecimento sem um fundamento empírico apelando para os axiomas “da Lógica” (2). Isto presume que a origem da lógica está na formalização e nas regras de manipulação sintática que definem, por exemplo, que de P e P→Q se deduz Q. Mas isto é ver a coisa ao contrário. As lógicas formais pretendem automatizar processos de inferência abstraindo-se do significado das proposições. Nesse contexto abstracto parece que o conhecimento surge magicamente pela aplicação das regras, mas isso é uma representação simplificada do nosso raciocínio. Na prática, lidamos com símbolos que têm significado, em vez de apenas Ps e Qs, e o nosso raciocínio, que tentamos modelar com lógicas formais, é fundamentalmente empírico, quer na determinação do significado dos termos quer na escolha dos axiomas que melhor o representem.

Há conflito entre fé e ciência porque cada fé dá muito mais crédito a algumas hipóteses, arbitrariamente escolhidas conforme a religião, do que aquilo que se justifica sem essa fé ou com uma fé diferente. Isto é contrário ao método da ciência, que visa convergir para conclusões independes de preferências pessoais ou preconceitos, procurando indícios objectivos que favoreçam uma hipótese em detrimento das restantes. A ciência serve para descobrir como as coisas são e não para maiorem Dei gloriam.

1- Bernardo Motta, Curso Ciência e Fé
2- O Bernardo parece assumir que a lógica se resume apenas ao cálculo proposicional, ao qual chama Lógica. O campo, no entanto, é bastante mais vasto.