domingo, outubro 30, 2011

Treta da semana: cada cor seu sabor.

Esta semana vai ser complicada para quem for do signo carneiro*. O signo solar é determinado pela constelação onde se encontra o Sol no dia em que as pessoas nascem. Como o Sol passa pela constelação do carneiro entre 19 de Abril e 13 de Maio, têm este signo as pessoas que nasçam entre 21 de Março e 20 de Abril (1). Eu sei que não faz sentido, mas a astrologia é assim. Por exemplo, em 1582, quando foi adoptado o calendário gregoriano, saltou-se 10 dias no calendário para corrigir os erros acumulados por doze séculos de calendário juliano. Como alterar 10 dias às datas dos signos dava contas muito complicadas, os astrólogos decidiram manter as datas como estavam e pronto. O que importa são os diagramas que desenham; a posição do Sol em relação às estrelas é só para fazer conversa (3).

Talvez por estes problemas de calendário, pela precessão orbital da Terra ou porque cada astrólogo inventa o que lhe apetece quando escreve o horóscopo, na próxima semana os nativos de carneiro estão tramados. Segundo o Miguel de Sousa, «Os problemas afectivos não poderão ser resolvidos tal como o faz a nível profissional. Modere as suas atitudes.»(4) Mas a Maya escreve que «Este plano [afectivo] tende a ser afectado pelo seu ritmo de vida, por acontecimentos da vida profissional e por uma necessidade de afirmação pessoal. Não fuja à discussão dos problemas.»(5) O Paulo Cardoso avisa que «Um momento de maior tensão ou nervosismo sem uma razão aparente poderá provocar-lhe alguma irritabilidade, agressividade ou acrescentar alguma ironia no seu contacto com os outros»(6), enquanto a Carla Isidro assegura que «Carneiro terá uma semana serena, terá o controle das suas emoções e não será difícil absorve-se dos acontecimentos que não contribuem para a sua felicidade, terá o que precisa para se sentir bem.»(7) Parece que a Patrícia Bernardo foi quem melhor percebeu o problema: «Amor: Esta semana terá sentimentos contraditórios, entre o que foi e o que é neste momento. Aconselha-se a que siga em frente, pois o que não tem remédio, remediado está.»(8) Seguir em frente é boa ideia. Mas a questão que os carneiros colocarão é para que lado será isso...

Com base nisto, eu aconselhava os nativos deste signo a passar o mês de Novembro em coma induzido ou, em alternativa, a deixarem-se desta treta. Talvez seja bom considerarem a previsão da Cristina Candeias, que me parece a mais correcta ou, pelo menos, a mais honesta de todas: «Esta previsão não se encontra disponível.»(8)

* Provavelmente para os outros também, mas os outros signos exigiam mais clicks com o rato...
1- Wikipedia, Aries
2- Wikipedia, Gregorian calendar
3- BBC, Have the Zodiac and star signs changed?
4- Sapo Astral, Miguel de Sousa, Carneiro
5- Sapo Astral, Maya, Carneiro
6- Sapo Astral, Paulo Cardoso, Carneiro
7- Sapo Astral, Carla Isidro, Carneiro
7- Sapo Astral, Patrícia Bernardo, Carneiro
8- Sapo Astral, Cristina Candeias, Carneiro

Nota: os links para o Sapo Astral não parecem ser permanentes. É provável que para a semana a treta lá seja outra. No entanto, é improvável que se dêem ao trabalho de fazer “previsões” minimamente consistentes entre si.

quinta-feira, outubro 27, 2011

Venham mais vinte...

No mês passado a União Europeia decidiu aumentar de cinquenta para setenta anos o monopólio concedido a gravações musicais. O que é uma asneira. Serve apenas para beneficiar empresas discográficas, que detêm os direitos de reprodução de gravações antigas, e uns poucos artistas já ricos e famosos. E isto à custa dos artistas novos, porque o dinheiro que o público gastar em obras com mais de meio século já não irá para artistas que ainda fazem algo de novo (1). Além disso, quando produtores e artistas gravaram essas músicas foi-lhes concedido cinquenta anos de monopólio, depois dos quais a gravação se tornaria domínio público. Foi esse o contrato celebrado. Estender estes monopólios sem qualquer contrapartida para a sociedade é uma aldrabice (2).

Mas, neste caso, não estou muito desanimado com a vitória das editoras. Como diria Pirro, mais umas vitórias assim e lixam-se de vez. Considere-se, por exemplo, as cândidas palavras da Associação Fonográfica Portuguesa e da Passmúsica, que cobra “direitos conexos” em festas e bailaricos: «a Extensão dos Direitos Conexos é uma grande conquista para a indústria musical portuguesa, que corria o risco de ver cair no domínio público as prestações de grandes nomes da sua música, como Amália Rodrigues ou Carlos do Carmo.»(3) Ou seja, o “risco” de gravações da Amália, ou do Carlos do Carmo, com mais de cinquenta anos, passarem a fazer parte da nossa cultura como fazem os sonetos de Camões ou as peças de Gil Vicente. É um risco, mas só para quem nos quer cobrar pelo acesso à nossa cultura.

Em 1841, na Câmara dos Comuns do parlamento britânico, o barão Thomas Macaulay argumentou assim contra a proposta de estender o monopólio concedido ao autor até sessenta anos após a sua morte: «se esta medida for aprovada, e se dela advir apenas um décimo do mal que se estima que gere […] surgirá em breve um remédio, se bem que reprovável. […] De momento, o detentor destes direitos tem o público do seu lado. Os que violam o direito de cópia são vistos como canalhas que tiram sustento a quem o merece. […] Aprovem esta lei e esse sentimento acabará. […] Todo o engenho será empregue para fugir a esta lei; e toda a nação conspirará para o fazer.» (4)

Já não estamos em 1841 e, agora, estas palavras são ainda mais relevantes. No tempo de Macaulay era difícil copiar livros e, sem o apoio da indústria, nenhum autor conseguia chegar ao seu público. O sistema de monopólios sobre a cópia surgiu dessa limitação tecnológica. Mas agora o autor pode vender o seu trabalho directamente a quem o aprecia, em vez de receber as migalhas do distribuidor, e estes monopólios já não são necessários. E agora qualquer pessoa pode copiar facilmente qualquer obra digitalizada, pelo que estes monopólios dependem inteiramente da sensação, já meramente ilusória, de que são justos. Dar, de borla, mais vinte anos de poder às editoras para proibir cópias de músicas da Amália é um bom passo para o fim definitivo deste sistema abusivo e anacrónico.

Quanto mais os distribuidores nos impingem leis injustas e disparatadas, mais atenção chamam para o problema fundamental do copyright. Estas leis são feitas por eles e para eles. Não é do nosso interesse que nos proíbam de partilhar ou copiar. Não foi por escolha democrática que o alegado incentivo à criatividade nos veio custar liberdade de expressão, acesso à cultura e até a nossa privacidade, e em benefício quase exclusivo de intermediários. Muita gente já fez o que Macaulay previa e decidiu que não tem obrigação moral de respeitar estas leis, escritas às escondidas por encomenda das editoras. Mais do que isso, a consciência crescente destas leis está a dar ímpeto à oposição política, aumentando a popularidade dos partidos pirata e levando outros partidos a adoptar as mesmas ideias (5). Chamam-lhe uma grande conquista, mas duvido que cheguem a aproveitar os vinte anos extra de monopólio.

1- The Register, EU recording copyright extension 'will cost €1bn'
2- The Telegraph, Will copyright extensions ever end?
3- Passmúsica, Extensão dos Direitos Conexos, e também na AFP
4- Torrent Freak, Piracy and Copyright Challenges in 1841 Mirror Those of Today
5- Falkvinge & Co. on Infopolicy, Huge Victory As EU Party Group Adopts Pirate Perspective On Copyright Monopoly

terça-feira, outubro 25, 2011

Estado liberal.

O liberalismo é, ou supostamente devia ser, uma filosofia política visando a defesa da liberdade individual e a igualdade de direitos entre todos os indivíduos. Foi a justificação principal para a Revolução Francesa, a independência dos EUA e a luta contra o fascismo e comunismo durante o século XX (1). Neste sentido, eu sou liberal. Defendo que o propósito do Estado é maximizar a liberdade de todos os indivíduos. Mas, nestes tempos de crise, vejo muita gente usar este termo como sinónimo para um Estado minimizado. Parafraseando Inigo Motoya, não me parece que o termo signifique o que eles julgam que significa.

Por exemplo, o Rui Albuquerque escreve que «Numa sociedade liberal, fundada sobre os pilares da propriedade privada e do livre comércio, o funcionalismo público é praticamente desnecessário»(2). O problema é que não se pode fundar a sociedade sobre os direitos de propriedade privada e de livre comércio sem que os Estado os garanta primeiro.

Há coisas das quais alguém se pode apropriar e excluir terceiros do seu usufruto. Terra, comida, utensílios, casas e até a liberdade dos outros, no caso da escravatura. Se queremos um sistema de direitos de propriedade que maximize a liberdade individual precisamos de um Estado com legisladores, polícias, fiscais, tribunais, guardas prisionais, notários e mais uma data de gente para garantir que ninguém é privado, à força, daquilo que é seu ou das suas liberdades. Isto não quer dizer que se inche o Estado sem limite. A certa altura, o Estado começa a ser prejudicial. Por exemplo, quando se chega a algo como conceitos, músicas, ideias, filmes, histórias e afins, das quais ninguém se pode apropriar em exclusão dos outros sem ajuda do Estado, o melhor é manter o Estado de fora. Por isso sou contra a generalidade dos monopólios a que chamam “propriedade intelectual”. Mas o outro extremo também é falso. Para haver direitos de propriedade é preciso bastante funcionalismo público.

A liberdade de comércio também o exige. Se queremos um comércio livre, então não podemos permitir que alguém seja coagido a comprar ou vender. Não podemos permitir que alguém seja forçado a vender o seu trabalho a qualquer preço só para evitar passar fome ou que seja obrigado a pagar serviços de saúde para evitar morrer de uma doença. Estas situações de participação forçada no mercado não são compatíveis com o mercado livre, como direito individual. Portanto, além de toda a regulação necessária para que os contratos sejam cumpridos, para que a publicidade não engane e para que o mercado não se torne numa burla colectiva, é preciso também uma redistribuição eficaz e garantias de acesso universal a condições básicas de vida e de saúde. Sem isso, em vez de um mercado verdadeiramente livre teremos o “mercado” da Inglaterra de Charles Dickens ou das tribos da Etiópia.

A liberdade também exige segurança, justiça, educação, acesso à informação e possibilidade de participação nos processos de decisão política. Ninguém pode ser livre sem conhecer os seus direitos, sem saber que opções tem e sem participar na cultura e na política. Tudo isto exige pessoas contratadas especificamente para organizar estes serviços. Não pode ser resolvido por intermédio de empresas, cujo objectivo último é simplesmente gerar dividendos. Portanto, para garantir estas liberdades, que é função do Estado garantir, é preciso funcionários públicos em vez de parcerias publico-privadas ou da privatização dos direitos da maioria.

O problema fundamental é ver o mercado e a propriedade privada como o fundamento do resto. A liberdade de transaccionar bens e serviços e a propriedade privada são importantes porque são direitos. Mas são direitos como outros. Como o direito à educação, à igualdade perante a lei, à vida, ao usufruto de uma parte justa dos recursos naturais, culturais e tecnológicos, e assim por diante. Em suma, são parte dos direitos que constituem a tal liberdade individual que o liberalismo tem por objectivo. E o fundamento prático de tudo isso não é o mercado, nem a economia, nem o sector financeiro. É o Estado. É este o único que pode garantir esses direitos.

1- Wikipedia, Liberalism
2- Blasfémias, pacta sunt servanda

sábado, outubro 22, 2011

Treta da semana: inchou.

Neal Adams é um ilustrador famoso pelo seu trabalho para a Marvel e DC (1). É também um dos (poucos) proponentes da hipótese de que, nos últimos cem milhões de anos, a Terra inchou para cerca do dobro do diâmetro.



É um exemplo interessante de como filtrar os dados de acordo com uma ideia pré-concebida leva facilmente ao disparate. Começa por alegar uma “conspiração de silêncio” por parte dos cientistas, que não nos dizem que as placas continentais também encaixam perfeitamente na costa do Oceano Pacífico. Mas o encaixe “perfeito” da forma dos continentes é fácil de conseguir com pequenas massagens e distorções, como se vê bem na animação do Pólo Sul (08:40). O encaixe que evidencia que os continentes modernos estiveram juntos há dezenas de milhões de anos não é apenas a complementaridade óbvia de algumas linhas de costa, como a América do Sul e a África. É a distribuição de fósseis, a magnetização das rochas, a continuidade de cadeias montanhosas e da geologia das várias regiões, o que dá um resultado bastante diferente (2).

Depois critica a hipótese do movimento das placas, dos continentes a «baterem e chocarem como se estivessem numa frigideira com óleo». Mas a explicação alternativa que defende é que a Terra duplicou o seu diâmetro, aumentando oito vezes o volume. Omite tanto os mecanismos propostos para o movimento das placas, como a convecção do manto, por exemplo, como também as medições desse movimento. Nós conseguimos observar que as placas se deslocam (3). Em contraste, tanto quanto se pode medir, a Terra nem está a crescer agora nem aumentou de tamanho nos últimos seiscentos milhões de anos, pelo menos. E mesmo sem essas medições do tamanho da Terra, não parece ser possível um planeta simplesmente crescer desta maneira (4).

Este procedimento é comum nas tretas. Escolhe-se primeiro a ideia. Que a Terra tem dez mil anos, que extraterrestres aterraram em Roswell, que o cálcio do coral cura o cancro, tanto faz. Depois procura-se qualquer coisa que seja consistente com a ideia. Nem importa se é consistente com alternativas também. Há rochas com menos de dez mil anos de idade. Há pessoas que dizem ter visto destroços. Há quem tenha tomado cálcio de coral e se tenha curado. Tudo o que possa contradizer a hipótese inicial ignora-se, arruma-se debaixo do sempre crescente tapete da conspiração, ou faz-se de conta que está noutro plano de conhecimento, ou algo de semelhante profundidade ilusória. E pronto, disparate instantâneo.

Isto demonstra também, como se ainda fosse necessário demonstrá-lo, de que a profunda convicção na verdade de uma hipótese é um mau ponto de partida para a testar.

1- Wikipedia, Neal Adams
2- Wikipedia, Pangaea
3- Wikipedia, Tectonic plates boundaries
4- Wikipedia, Expanding Earth

sexta-feira, outubro 21, 2011

O diabo dos detalhes.

A ideia de que “a religião” é compatível com a ciência é mais fácil de defender quando se evita os detalhes que “a religião” defende – incluindo a enorme diversidade de religiões e dogmas associados – e se descarta como superstição ignorante as crenças da vasta maioria dos crentes considerados menos sofisticados. Aqueles que rezam a pedir favores, queimam pés de cera para curar os calos e assim. Ignorando isto pode-se ficar por chavões como “a fé não contradiz a razão” ou “também há cientistas crentes”.

Mas quando os crentes tidos como mais sofisticados arriscam a dizer claramente aquilo em que acreditam, estes problemas saltam à vista. A falta de fundamento para o que afirmam, a diversidade inconsistente daquilo em que crêem, a fraqueza das desculpas que invocam e, sobretudo, a incompatibilidade entre a defesa dessas respostas e a análise racional das questões.


Via Boing Boing.

quinta-feira, outubro 20, 2011

Em cheio, na palha.

Num texto sobre o matemático, cosmólogo e padre Georges Lemaître, o Alfredo Dinis argumenta ser errada a «tese de que quem tem uma fé religiosa não está interessado na verdade científica, nem sequer tem competências para fazer avançar a ciência, porque a fé não deixa pensar, ter espírito crítico e criativo.»(1) Concordo. Ter fé numa coisa não impede que se tenha espírito crítico acerca de outra. No entanto, o Alfredo apresenta este caso como «incómodo para muitas pessoas, sobretudo as que continuam a insistir que há uma incompatibilidade radical entre ciência e religião, e que a ciência avança tanto mais depressa quanto mais depressa se abandonar a religião.» Eu sou da opinião de que há essa incompatibilidade radical e de que a ciência avança melhor sem religião. Mas o exemplo do Lemaître não é relevante para esta posição, porque a incompatibilidade das duas abordagens não impede que a mesma pessoa seja capaz de ambas. É como fumar e fazer pesca submarina.

O Alfredo alegou várias vezes que a ciência permite aferir a verdade de hipóteses testáveis, enquanto a religião decide a verdade das outras hipóteses. Nunca percebi como se pode aferir a verdade de uma alegação, acerca dos factos, que seja impossível de testar. E, a julgar pela diversidade dos dogmas das muitas religiões, não devo estar sozinho nisto. Mas esta diferença, que o Alfredo admite, torna a religião incompatível com a ciência. O problema fundamental é que a ciência não pode aceitar como verdadeira uma alegação que não tenha sido testada com sucesso, enquanto as religiões exigem dos seus adeptos que aceitem pela fé hipóteses que não podem ser testadas ou até que foram testadas e falharam nos testes. O criacionismo, por exemplo, que o Alfredo admite ser contrário à ciência mas que esquece sempre quando fala “da religião”.

Lemaître apenas ilustra que uma pessoa pode aceitar umas hipóteses por fé e avaliar outras com ciência. Não é novidade nenhuma. A mente humana tem uma capacidade extraordinária para ser exigente e criteriosa acerca de algumas alegações enquanto isenta de qualquer cepticismo outras crenças, mais queridas. Ninguém poderia ter uma só religião sem conseguir este feito pois, caso contrário, ou não teria nenhuma ou teria todas.

O que é pertinente e esclarecedor no caso do Lemaître é o papel que a fé católica teve na formulação, compreensão e avaliação deste modelo pela comunidade científica. Absolutamente nenhum. O processo científico, enquanto tal, não recorreu à fé de Lemaître. E, se recorresse, deixava de ser científico, porque o mérito e a utilidade da ciência vêm precisamente da forma imparcial com que esta avalia as hipóteses à luz das evidências e sem o enviesamento de preferências pessoais, tradições, fés e fezadas.

E o Lemaître teve sorte por o seu modelo não ter chocado com os dogmas que a sua religião defendia nessa altura. Caso contrário, provavelmente teria de fazer como Teilhard de Chardin. Para tentar conciliar a sua fé com a teoria da evolução, Teilhard de Chardin deturpou ridiculamente esta teoria e, mesmo assim, ainda arranjou sarilhos com os representantes oficiais da sua religião. Sempre que a fé e as evidências concordam a fé é supérflua para determinar a verdade. E sempre que discordam, a fé é nefasta. Como a ciência exige uma disposição constante para rever e alterar hipóteses perante novas evidências, mais cedo ou mais tarde a fé acaba por ser um empecilho. Investigação científica baseada na fé não leva a lado nenhum. E a fé, no fundo, não precisa da ciência para nada porque está-se nas tintas para a verdade.

A meu ver, a investida do Alfredo estripou violentamente a tese de que quem tiver fé numa alegação é incapaz de avaliar objectivamente qualquer outra. Foi palha por todo o lado. No entanto, o Alfredo nem sequer mencionou o problema mais interessante, que é a incompatibilidade das abordagens em si. Perante uma afirmação acerca dos factos, podemos ter, no máximo, uma destas duas atitudes. Ou tentamos apurar a verdade de forma objectiva e imparcial, ou escolhemos acreditar por fé. Podemos fazer uma coisa para umas alegações e outra para outras, mas não é possível ter fé e manter-se objectivo e imparcial, ao mesmo tempo, acerca da mesma hipótese.

1- Alfredo Dinis, Ciência e religião – o caso do P. Georges Lemaître

domingo, outubro 16, 2011

Treta da semana: mais uns Passos à direita.

As novas medidas de austeridade são aumentar em meia hora o dia de trabalho dos trabalhadores do sector privado e retirar dois ordenados por ano aos funcionários públicos. Desta maneira, todos partilhamos a austeridade, desde que por “todos” se considere apenas, no sector privado, os que têm de picar o ponto e, no sector público, os que vivem do seu ordenado. Isentos ficam gestores, administradores e grandes accionistas do privado e os cargos públicos cujo rendimento vai muito além do ordenado (1).

Segundo o Pedro Passos Coelho (PPC), uma das justificações para o Estado ficar com os subsídios de Natal e férias apenas dos funcionários públicos é de que «em média os salários na função pública são 10 a 15 por cento superior à média nacional»(2). A estatística é suspeita, pois compara salários declarados, e o sector privado permite uma contabilidade muito mais criativa. Mas, mesmo que seja correcta, não serve de justificação. Deve-se cobrar mais impostos a quem ganha mais, mas com base no salário de cada individuo e não na média do grupo arbitrário onde o colocam. Também não seria justo criar um imposto especial para homens engravatados ou licenciados só por, em média, ganharem mais do que os restantes. A outra desculpa é de que «estender esta medida ao setor privado não resolveria o problema do défice orçamental». Grande barrete.

O Estado não pagar dois ordenados aos funcionários públicos é o mesmo que o Estado cobrar dois ordenados aos funcionários públicos, como imposto extraordinário. Para efeito do défice, tanto faz ver isto como menos a sair ou mais a entrar. É claro que, se o Estado desse este dinheiro às empresas privadas, isso não reduziria o défice. Por isso é que o Estado fica com este dinheiro. Fazer o equivalente no sector privado seria cobrar dois ordenados de cada salário acima dos 1000€. Esse dinheiro, obviamente, seria receita do Estado e não das empresas, reduzindo o défice de qualquer forma, excepto talvez no ideário da demagogia imbecil.

Mas a demagogia funciona. Possivelmente, muita gente julga que a principal despesa do Estado é com os salários dos funcionários públicos. Na realidade, estes perfazem menos de um quarto do orçamento (3). A despesa principal é em prestações sociais, de 37 mil milhões. Os salários totalizam 19 mil milhões e os restantes 35 mil milhões são despesas de capital, contractos com empresas, juros e outras despesas. Seria mais razoável cortar nesses 35 mil milhões antes de cortar nos salários. Infelizmente, esses 35 mil milhões vão directamente para os bancos, para as empresas de construção, para os concessionários das estradas e outros amigos dos amigos que, desta maneira, conseguem muitos e bons negócios. É o tal empreendedorismo que tanta falta nos faz.

Outra ideia comum é a da função pública ser inútil e as empresas privadas mais eficientes. É verdade que a função pública, menos sujeita a pressões de mercado, tende a acumular mais burocracia. Essa é de evitar. Mas o sector privado é eficiente apenas a maximizar a diferença entre o dinheiro a pagar por um trabalho e o valor a cobrar pelo resultado. É fácil ver porque é que precisamos de polícias, professores, enfermeiros, contabilistas, e até cobradores de impostos, para que a sociedade funcione. Mas empregados de mesa, ajudantes de cabeleireiro e aqueles chatos que nos tocam à porta a vender tretas que não queremos só têm esses empregos porque alguém lucra com isso. Se se despedissem todos a sociedade continuava na mesma. Ou até ficava melhor. Mas é fácil passar a ideia de que ensinar crianças numa escola pública é mau porque é “despesa” mas criar uma empresa para dar banho a cães é excelente por ser “empreendedorismo”.

Apesar da conversa do PPC, as medidas deste orçamento não têm nada de justo nem são para todos pagarem a crise. A maior fatia dos impostos vem do IVA, que é cego aos rendimentos (se bem que favoreça os alcoólicos, porque o vinho é um bem essencial), e a segunda maior vem do trabalho dependente. As empresas pagam um décimo disto, e a banca fica a rir. O PPC vai agravar ainda mais a diferença entre quem ganha o dinheiro a trabalhar e quem o ganha a especular ou a vender o trabalho dos outros. Também são formas legítimas de ganhar dinheiro mas, se é para todos pagarmos em função dos nossos rendimentos, então que paguem mesmo todos e em função de todos os rendimentos que auferem, seja qual for a sua proveniência. As medidas do PPC são, novamente, sacar da maioria para dar aos amigos. A única coisa que mudou desde o Sócrates foi os amigos. E talvez nem isso...

1- Expresso, Veja os rendimentos de 15 políticos portugueses antes e depois de passarem pelo Governo
2- Expresso, Passos Coelho justifica eliminação dos subsídios na função pública
3- Governo de Portugal, Relatório do Orçamento do Estado para 2010 (pdf, 6MB), Adenda: no relatório de 2010, o total dos outros gastos é 25 mil milhões. Os 35 mil milhões são uma estimativa aproximada contando com os buracos escondidos que se vai descobrindo aos poucos, e que não constavam desse relatório.

quinta-feira, outubro 13, 2011

Salada.

A propósito das tretas que o Miguel Sousa Tavares disse sobre as touradas, o Filipe Castro escreveu, de passagem, que «só os vegetarianos podem ser totalmente coerentes sendo contra as touradas.»(1) Discordo. Por si só, comer ou não comer um animal morto é eticamente irrelevante, pelo que o vegetarianismo, enquanto restrição alimentar, não tem qualquer fundamento ético. O problema fundamental da ética é o impacto que as nossas escolhas têm na subjectividade dos outros (qualquer que seja a sua espécie), e as nossas escolhas acerca do que comemos não são eticamente relevantes pela comida em si. O problema são o que incentivamos na compra. Isso é mais complicado do que a dieta.

Por exemplo, vamos supor que os cavalos não são abatidos pela carne mas apenas quando já não é economicamente viável mantê-los vivos. Neste caso, comprar carne de cavalo não seria um problema ético, visto não ter impacto no que acontece ao animal. Mas se a procura de carne de cavalo levar o dono a abatê-lo mais cedo, então o valor ético de comprar a carne de cavalo dependerá do valor subjectivo que esse tempo de vida tem para o cavalo. Se o valor for positivo, será eticamente preferível não comprar a carne para não incentivar a que tirem esse tempo de vida ao cavalo. Mas se, pelo contrário, esse período extra for de sofrimento para o animal, por ser obrigado a trabalhar até ao limite, comprar a carne de cavalo será eticamente preferível por reduzir o seu sofrimento. Como este problema é complexo, e como só encontrei carne de cavalo à venda num talho especializado aqui em Odivelas, até agora nem tenho comprado carne de cavalo nem pensado muito no assunto. Mas este exemplo ilustra a complexidade destas decisões.

Os camarões são um caso mais simples. O seu sistema nervoso é tão rudimentar que posso concluir, com confiança, que estes animais não têm qualquer subjectividade, pelo que o que lhes acontece é eticamente irrelevante. Também costumo comprar peixe. Os peixes têm um cérebro relativamente simples e o seu comportamento sugere que não sentem. Muitos julgam o contrário porque os peixes, como os camarões, reagem a danos e estímulos nocivos. Por exemplo, quando mordem o anzol tentam largá-lo. Mas o termostato também se desliga quando aquece e é consensual que não tem uma percepção subjectiva de calor. A resposta a um estímulo, por si só, não demonstra a subjectividade que a ética requer.

Quando um cão ou um cavalo magoam uma pata, nota-se claramente que evitam apoiar-se nela. Com o cérebro que têm, é plausível que o façam por anteciparem a dor que iriam sentir. Mas se partirmos uma pata a um insecto ele continua a tentar usá-la como se estivesse boa, e um peixe que consegue largar o anzol é capaz de o morder novamente logo a seguir, basta que ainda tenha o isco. Isto sugere uma grande diferença na capacidade de sentir dor, ou o que quer que seja. Por isto, dada a forma como são criados e abatidos, evito comprar carne de mamíferos. E também polvo, que tem um cérebro muito diferente do nosso, tendo evoluído independentemente, mas que parece ser inteligente demais para não sentir. A forma como é caçado leva-me a excluir da dieta o arroz de polvo, com muita pena.

Pelo seu cérebro e comportamento, é provável que as aves tenham a tal subjectividade que merece consideração ética. No entanto, é pouco plausível que vida de um frango tenha, por si, valor subjectivo para o frango. Por isso, desde que não sofra, viver ou morrer não lhe fará grande diferença, e o abate de aves é mecanizado e bastante rápido*, ao contrário do que acontece com porcos ou vacas. O problema está na forma como estas aves são criadas em explorações intensivas, pelo que a opção ética será pela criação ao ar livre, tanto para ovos como para carne. No caso do chimpanzé, gorila, golfinho, elefante, baleia e afins, a vida provavelmente tem um grande valor subjectivo para o animal que a vive, pelo que considero a morte destes eticamente próxima da morte de um ser humano.

Escreve também o Filipe Moura que «a moral é uma coisa geográfica, demográfica e social, e que às vezes é difícil estabelecer a verdade sobre um assunto.»(2) Concordo, porque a moral é apenas o conjunto de normas que governam o nosso comportamento em sociedade. Mas o que importa mais é a ética, que avalia essas normas, e essa visa ser mais que meramente geográfica ou social. A escravatura, por exemplo, já foi moralmente aceite mas nunca foi eticamente aceitável. E se bem que decisões como a de que animais mortos devemos comprar dependam de muitos factores incertos – é provável que eu continue a rever as minhas opções conforme vá obtendo mais dados – o fundamento ético não muda. O problema é sempre a responsabilidade pelo impacto das minhas escolhas na subjectividade dos outros.

Por fim, ao contrário do Filipe, eu não «duvido que a melhor maneira de lidar com a questão das touradas seja proibi-las.» A tourada é um espectáculo público cujo principal incentivo é a venda de bilhetes e direitos de emissão televisiva. Proibir a tourada reduziria drasticamente esta prática sem custos significativos de fiscalização, porque não é fácil, nem lucrativo, organizar touradas às escondidas. Muito mais difícil é impedir que lutas de cães, e nem isso é razão para as legalizar. Proibir a tourada não resolveria todo o problema, mas seria um bom passo no sentido de eliminar esta tradição imbecil e cruel.

* É fácil encontrar vídeos a mostrar como as lâminas que deviam degolar o frango às vezes falham e acertam nas asas ou na barriga, mas parece-me que esses acidentes são muito mais raros do que fazem parecer. Esse risco não parece justificar discutir com a minha mulher acerca das aves e arriscar o progresso conseguido com os mamíferos.

1- Filipe Moura, Os apoiantes das touradas não "raciocionam" (ver vídeo)
2- Filipe Castro, A crueldade e os animais

segunda-feira, outubro 10, 2011

Treta da semana: que comam brioche.

No DN de hoje há uma crónica do Alberto Gonçalves acerca dos “índios de Wall Street”, os movimentos de protesto nos EUA, que começaram em Wall Street mas que já se alastraram por todo o país. Começa por caracterizar os protestantes como «novas gerações, mimadas até à indolência por pais extremosos [...] moços, assustadíssimos, saem à rua a protestar o facto de a realidade não lhes ser tão simpática quanto acreditaram. [...] Embora a fúria se prenda com a suspeita de que terão de trabalhar para sobreviver, os jovens preferem inventar razões menos prosaicas» e assim por diante. Depois dá uma volta com «lavabos destinados exclusivamente a transexuais» na Primavera Árabe, e remata com a estimativa de que são apenas «uns escassos milhares»(1). O que é espantoso, tendo em conta que já estão a organizar protestos em 70 cidades.

Segundo Dick Steinkamp, moço assustado de 63 anos e indolente executivo reformado do Silicon Valley, que se juntou aos protestos em Seattle (com a mulher, outra jovem reformada), este movimento está «a atingir a mesma massa crítica» dos protestos contra a guerra do Vietnam, nos quais ele também participou quando o Alberto Gonçalves ainda era suficientemente novo para se desculpar disparates como os que escreve agora (2).

O Alberto Gonçalves afirma também que estes manifestantes não fazem ideia do quê ou porquê dos protestos, repetindo apenas «uma série de clichés da época (rejeição do capitalismo, rejeição da polícia, rejeição do "aquecimento global", rejeição dos cortes orçamentais)». Suspeito que o Alberto veja apenas a ver a Fox News, que tem o cuidado de não mostrar entrevistas como esta:



Estas pessoas protestam porque diariamente vêem senhores bem cheirosos, de fato caro e gravata, chegar de limusina à conferência de imprensa e dizer que todos têm de fazer sacrifícios, quando é óbvio que esses senhores não fazem parte dos “todos”. Protestam porque, enquanto quem perde o emprego é expulso de casa por não poder pagar as suas dívidas, quem arruína bancos reforma-se milionário. Protestam porque o Estado dá o dinheiro dos contribuintes a esses bancos e depois os senhores dos bancos dizem que a dívida pública é grande porque as pessoas vivem acima das suas posses. E protestam porque a distribuição daquilo que a sociedade gera é tão mal feita que a maioria das pessoas, mesmo trabalhando, tem de se endividar para poder ter acesso à sua parte dessa riqueza.

Não são as pessoas que vivem acima das suas posses. As posses que chegam à maioria é que estão abaixo do nível mínimo de vida que essa sociedade deveria proporcionar a todos. Nos EUA a desigualdade económica há décadas que se agrava continuamente e, hoje, um porcento dos cidadãos recebe quase um quarto do rendimento total do país, enquanto 15% da população vive abaixo do limiar da pobreza, com um total de 3,4% do rendimento nacional. Se distribuíssemos assim €100 por 100 pessoas, havia uma que ficava com €24 enquanto outras 15 recebiam um total de €3,40 para dividir entre elas. Não me parece que o protesto de quem visse aquele embolsar um quarto do dinheiro e dizer aos outros que tinham de fazer sacrifícios fosse apenas birra de criança mimada.

Escreve o Alberto que é fácil responder à interrogação «sobre o que acontece às novas gerações, mimadas até à indolência por pais extremosos, no momento em que enfrentam as agruras do mundo.» Claro que é fácil. Começa-se com uma pergunta já carregadinha com a resposta que se quer, ignora-se os factos e pronto, é só escrever meia dúzia de parágrafos. O difícil é dar uma resposta acertada a uma pergunta bem feita.

1- Alberto Gonçalves, Os índios de Wall Street
2- Guardian, Occupy America: protests against Wall Street and inequality hit 70 cities

Adenda: a fonte dos valores de rendimento para os USA foi a Wikipedia. E, em rigor, isto afinal é a treta da semana passada. Mas por cinco minutos não vou alterar o título...

domingo, outubro 09, 2011

A pescada, o rabo e a boca.

Ontem decorreram as II Jornadas Fé e Ciência, sobre “Deus, Acaso e Determinismo” e o problema de «reconciliar o papel central que o acaso tem no relato científico do mundo com o relato teológico da relação de Deus com o mundo» (1). A propósito, o Alfredo Dinis escreveu que «Torna-se necessária uma nova compreensão de como o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida tal como os conhecemos.»(2)

Uma ideia central do cristianismo é que um ser omnipotente e inteligente planeou isto tudo. Esta premissa atravessa toda a concepção cristã do mundo e de como o podemos perceber. Na epistemologia, presumem que qualquer evidência de organização e funcionalidade é indicativa desse propósito e, portanto, dessa inteligência divina, dando-nos a conhecer esse Deus. O existencialismo cristão rejeita que a nossa existência possa fazer sentido se não fizer parte de um plano, traçado algures no início dos tempos, que nos cumpre agora seguir. E a ontologia cristã defende que o universo só pode existir graças a Deus porque tudo o que surge tem necessariamente de ter uma causa, de onde depois extrapolam várias conclusões ainda menos substanciadas.


Ontológico

Via Facebook, obrigado à Palmira Silva

A constatação de que há acontecimentos sem causa e de que o futuro não pode ser completamente determinado pelo passado obriga a rejeitar este fundamento determinista, o que é um problema para a hipótese de que tudo isto faz parte do plano inteligente de um ser omnipotente. Em vez de considerar rever essa hipótese, o Alfredo, e os teólogos em geral, propõem mantê-la a todo o custo, criando hipóteses auxiliares quanto baste para defender que «o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida». A isto, um filósofo na linha de Lakatos chamaria um programa de investigação degenerativo, e um não-filósofo chamaria tapar o Sol com a peneira.

O Nuno Gaspar, entre outros, vai certamente apontar que isto não tem qualquer importância para a fé das pessoas. Muitos que orientam os seus valores por uma ideia do divino estão-se nas tintas para o que a mecânica quântica diz. Concordo, e partilho dessa atitude. Por exemplo, a ideia de justiça é importante para mim e, mesmo que as descobertas da ciência possam alterar ligeiramente esse conceito, nunca vou sentir que o tenha de rejeitar só por força dos factos. Mas isto é assim porque a justiça é um ideal e não um elemento da realidade. Quem considera que o seu deus é um ideal, sem assumir que é uma entidade real, também não precisa de se preocupar em testar ou rejeitar essa ideia só por causa dos factos. No entanto, a posição da teologia é diferente. Não considera o divino como uma expressão conceptual de valores (como caridade, virtude ou justiça, por exemplo), mas sim como uma hipótese acerca dos factos. O Alfredo defende que existe mesmo uma pessoa eterna e omnipotente que criou o universo com um propósito e de acordo com o um plano. Isto não é um ideal acerca de como as coisas deviam ser, mas uma alegação acerca de como realmente são.

Alegadamente, a teologia procura respostas para as perguntas últimas acerca do propósito e significado do universo. Uma parte importante desta demanda seria descobrir que o universo está cheio de acontecimentos sem causa e que é fundamentalmente indeterminista. No entanto, este aspecto tão fundamental escapou por completo a vinte e tal séculos de argumentação teológica. A sua descoberta deveu-se ao método da ciência moderna, em dois ou três séculos, juntamente com uma imensidão de outros detalhes e revelações profundas acerca da natureza da matéria, do espaço-tempo e até da consciência humana. Claramente, há uma grande diferença entre procurar a verdade e correr atrás a inventar desculpas.

Eu proponho ao Alfredo e restantes teólogos que a procura por respostas exige a disposição para rejeitar qualquer hipótese em favor de alternativas mais promissoras. Enquanto os teólogos se agarrarem às mesmas hipóteses acerca do seu hipotético deus não poderão fazer mais do que argumentar em círculos, tentando em vão resolver “problemas” que são unicamente fruto de partir das premissas erradas. Em vez de tentar “compreender” como é que o hipotético criador causa acontecimentos sem causa, seria mais produtivo considerar a hipótese de não haver tal criador sequer. Afinal, se admitimos que algo pode acontecer sem ser causado ou determinado por algo que o preceda, deixa de ser necessário postular um deus para explicar como o universo surgiu. E a história dos últimos séculos revela claramente que o avanço no conhecimento é muito mais rápido e fiável quando se abandona esse postulado.

1- Alfredo Dinis, II Jornadas Fé e Ciência: Deus, Acaso e Determinismo
2- Alfredo Dinis, Deus, acaso e determinismo

sexta-feira, outubro 07, 2011

Cultura Pirata 2011

Gostei de ter estado na conferência de ontem. Gostei de encontrar ao vivo várias pessoas com quem já costumava trocar impressões electronicamente. Gostei de conhecer pessoas com quem nunca tinha contactado mas com quem descobri partilhar algumas ideias fundamentais acerca do conflito entre partilha e monopólios. E gostei de conhecer pessoas que têm acerca disto uma opinião muito diferente da minha. Este post é dedicado principalmente a este último grupo.

No debate sobre o activismo e a militância pirata, um membro da audiência, cujo nome lamento já não recordar, apontou o anonimato como um problema sério na Internet porque ajuda quem comete crimes graves como “entrar” nos sistemas dos outros para roubar informação. O que fizeram à Sony, por exemplo. No debate e em discussão durante o intervalo, opus-me a ambas as ideias. Primeiro, o anonimato é um direito e não um problema, o que é fácil de perceber se imaginarmos que a identidade de cada pessoa era registada em cada rua por onde passasse, em cada montra para onde olhasse, a cada palavra que dissesse, em cada transporte público, porta, elevador, e assim por diante. Mesmo que o anonimato na rua e nos transportes públicos seja útil aos carteiristas, não se justifica abdicar deste direito só para lhes dificultar a vida. Na Internet é o mesmo, com a agravante deste direito estar longe de garantido e termos ainda muito que lutar por ele.

Outra ideia errada é a de que os criminosos “entram” no computador das vítimas como quem entra em casa alheia. Não é nada disso. Por exemplo, neste caso da Sony (1), o servidor da SonyPictures.com tinha uma base de dados com informação pessoal dos clientes, incluindo passwords sem encriptação, tudo acessível online por SQL. Estava configurado para fornecer todos esses dados a quem lhe enviasse o comando certo. Os alegados criminosos não invadiram propriedade. Simplesmente se aproveitaram da incompetência da Sony (2). Quem devia estar acusado de um crime é o irresponsável que configurou essa base de dados.

No ultimo debate da conferência, o Nuno Pereira, da ACAPOR, mostrou que o negócio dos clubes de vídeo vai mal e alegou que isso era indício de que toda a cultura estava a sofrer com a pirataria. No entanto, nem sequer é claro que o comércio da cultura esteja a sofrer, no total, quanto mais a cultura em si. As bilheteiras de cinema e concertos arrecadam cada vez mais dinheiro e, se os clubes de vídeo contam como distribuidores de cultura, certamente teremos de contabilizar também a TV por cabo, a banda larga e as redes móveis, negócios que têm crescido bastante. E mesmo que o comércio cultural sofra, o acesso gratuito, imediato e fácil a tanto conteúdo digital – ainda que contra a lei – tem, só por si, um enorme valor cultural. Porque a cultura não vale pelo que se vende. Vale pelo que se cria e partilha.

Mas o negócio dos CD e DVD está claramente em declínio, e o Nuno Pereira acha que nós temos o dever de o sustentar. Propôs criar-se uma entidade administrativa para fiscalizar o tráfego na Internet, multar em €500 (no mínimo) quem partilhar o que ele quer alugar e restringir o acesso à Internet a toda a família de quem seja acusado de “download ilegal”. A presunção de inocência, o direito a julgamento e não punir inocentes são conceitos desnecessários na justiça do copyright. Eu perguntei ao Nuno Pereira por que razão haveríamos de sustentar uma entidade cujo único objectivo é proteger o negócio dele lixando-nos a vida. Ele respondeu que também sustentamos a Direcção Geral de Viação e a Direcção Geral dos Impostos.

O Eduardo Simões, representando a Associação Fonográfica Portuguesa, pensa o mesmo, alegando que esta medida da ACAPOR é melhor do que os tribunais e penas de prisão previstos na lei vigente, e que “os investidores têm direito ao retorno pelo seu investimento”. Quando apontei que não existe tal direito, que apenas têm o direito de investir mas que o retorno depende do mercado, admitiu que sim, que só há retorno com coisas boas e não com falhanços. Mas, nesse caso, não se justifica medidas coercivas para nos obrigar a dar esse retorno. Este é um ponto crucial. O facto de alguém investir – tempo, dinheiro, esforço, o que seja – não lhe dá o direito de exigir dinheiro aos outros, a menos que alguém se tenha comprometido a pagar-lhe por isso.

Só é legítimo obrigar pela força da lei aquilo que tenhamos a obrigação moral de fazer. Não matar, pagar impostos, não conduzir bêbado, saldar dívidas e assim por diante. As leis que estes senhores defendem são uma excepção extraordinária e revoltante, porque o seu objectivo é simplesmente obrigar-nos a comprar. Querem punir a partilha de ficheiros para nos forçar a algo que não temos obrigação nenhuma de fazer: pagar-lhes por serviços que não nos interessam.

1- Techland New Sony Hack Claims Over a Million User Passwords
2- Para os mais geeks, aqui está uma ilustração do xkcd que ilustra o suposto crime destes perigosos malfeitores.

PS: Esqueci-me de gravar a minha apresentação. Mas é curta, por isso quando tiver paciência gravo um remake e ponho online.

PPS: Estão aqui os vídeos da conferência.

quarta-feira, outubro 05, 2011

Cópias, descrições e censura.

Outro equívoco que tenciono mencionar amanhã (1) é a ideia de que o sistema habitual de direitos de cópia se pode aplicar, da mesma forma, no domínio digital (2). Com o desenvolvimento de novas tecnologias, este sistema foi crescendo, desde o papel impresso a suportes como fotografia, discos e fitas magnéticas, mas sempre mantendo a cópia como conceito fundamental. O que se regulava era criação de objectos análogos. Por exemplo, se uma editora tinha o direito exclusivo de vender certos discos, esse direito cobria apenas os discos que produzissem um som semelhante quando tocados daquela forma específica. As fronteiras que delimitavam cada monopólio eram definidas por critérios objectivos. Ou seja, por critérios que dependiam apenas dos atributos desses objectos, e não por aquilo que as pessoas tencionariam ou poderiam fazer com esses objectos.

No domínio digital isto não é possível. Todos os ficheiros são representações de números em suportes arbitrários. Dos impulsos de luz na fibra óptica aos campos magnéticos num disco rígido, o que interessa em cada ficheiro é a sequência de 0s e 1s que compõe esse (enorme) número em binário. E esses números, além de poderem descrever o que quisermos, também podem ser eles próprios descritos com quaisquer outros números. No domínio digital lidamos com descrições numéricas em vez de cópias, e isso é fundamentalmente diferente.

Por exemplo, em 2006, a JGC Lda pediu à IGAC que deixasse de considerar os CD+G como videogramas para efeitos fiscais. Os CD+G são CD usados para karaoke, contendo faixas de música e gráficos com as letras e imagens de fundo. Ou seja, contêm códigos numéricos que são interpretados pelo leitor como especificando sons e imagens. A IGAC deu razão à JGL Lda, que alegou que «Os gráficos não existem fisicamante [sic] no suporte, mas são gerados pelos aparelhos de leitura»(3). Mas isto é exactamente o que se passa com qualquer DVD. Não há “gráficos no suporte” digital. É tudo números interpretados pelo leitor. Não defendo que um CD de karaoke seja taxado como um DVD, mas, ao contrário do disco de vinil e a cassete VHS, os CD e DVD são fundamentalmente o mesmo. São suportes para números em binário, números que podem ser interpretados como som ou imagem ou outra coisa qualquer. Se tocarem o vídeo abaixo sem o som, verão apenas uma interpretação visual dos bytes do ficheiro de música original, que também não tinha “gráficos no suporte”.



Descrever e copiar são coisas diferentes. Se alguém tem o monopólio sobre o 15, em vez de copiar “15” posso descrever “30 a dividir por 2”. Os ficheiros que normalmente usamos são números muito maiores, mas o princípio é o mesmo e o computador é muito bom a fazer contas. Por exemplo, vamos supor que temos dois ficheiros, um com as obras de Shakespeare e outro com uma música dos Beatles. O primeiro, no domínio público, todos podemos copiar e partilhar, enquanto os direitos exclusivos de reprodução do segundo pertencem aos autores da música, aos herdeiros do Michael Jackson e à Sony (4). Como cada ficheiro é uma sequência de 0s e 1s, podemos calcular um terceiro ficheiro com 1 em cada posição onde os outros dois sejam iguais e 0 onde sejam diferentes. Este terceiro ficheiro, resultado de uma operação algébrica trivial, não é cópia de nenhum dos outros, nem de qualquer música ou obra literária. Assim, um monopólio sobre as cópias daquela música pode ser facilmente contornado partilhando os outros dois ficheiros que, em conjunto, permitem calcular o ficheiro com a música dos Beatles.

Este exemplo parece rebuscado, mas a realidade é ainda mais complexa. Numa rede P2P os ficheiros partilhados são divididos em fragmentos, esses fragmentos comprimidos e encriptados, empacotados em sequências de bytes de acordo com os vários protocolos de transmissão, muitas vezes transformadas para ofuscar o tipo de tráfego. As sequências de bytes que se transfere numa rede de computadores ao partilhar um filme não só não têm “gráficos no suporte” como são todas diferentes entre si e diferentes do ficheiro original. É inútil usar critérios objectivos que delimitem quais as sequências que se pode partilhar e quais estão abrangidas pelos monopólios porque é sempre possível usar uma sequência para partilhar a informação necessária para recrear outra sequência.

Por isso, estender estes monopólios ao domínio digital implica uma alteração fundamental naquilo que a lei está a conceder. Originalmente, a lei concedia direitos exclusivos sobre a cópia de objectos específicos, havendo critérios objectivos para distinguir o que era cópia ou não era. Uma caixa de fotografias dos sulcos de um disco, tiradas ao microscópio, podia conter toda a informação necessária para recrear a música mas não era uma cópia do disco nem era regulada por esse monopólio sobre a cópia. Agora, o critério tem de ser a intenção das pessoas e o uso que podem dar à informação que partilham, seja qual for a sequência de bytes que transmitem. O poder de proibir a troca de informação e descrições já não é um monopólio sobre a cópia. É censura.

1- Cultura Pirata 2011 (Programa)
2- Outros posts nesta série: Produtores, consumidores e colaboradores e Comunismo, capitalismo e partilha (take 2).
3- Treta da semana: Sem gráfico no suporte.
4- Snopes, The Rights Stuff

domingo, outubro 02, 2011

Treta da semana: Lys.

Conheci o José Martins no programa da Júlia Pinheiro, onde ele participou na qualidade de espiritualista. Não tivemos muito tempo para conversar, mas ele teve a amabilidade de me deixar o seu contacto e recentemente passei pelo seu blog (1), onde descobri este projecto dos “Sons de Cura e Amor”(2).



Antes de criticarem a qualidade musical, devo notar que esta música tem um propósito terapêutico. Ninguém come paracetamol pelo sabor nem fura os dentes por prazer.

Mas o que me despertou a curiosidade foi a referência “No coração de Lys”. Para tentar perceber o que isso seria, segui o link para o “Grupo de Oração de Sintonia Lys-Fátima”, cujo site explica que «Lys abre-nos a porta para um mundo interno onde são criadas as condições para a transição da humanidade para o Novo Mundo. As energias da Mãe Divina, a Mãe do Mundo, são neste portal fortemente sentidas. É Ela que nos faz regressar à nossa pureza essencial com o seu imenso manto de amor.»(3) Outros conceitos relacionados, não sei bem como, são os Centros Planetários, «Vórtice que canaliza para a Terra as energias e os impulsos emanados do núcleo de consciência planetário, do núcleo de consciência solar ou de fontes cósmicas mais amplas» e as Hierarquias, «Conjunto de consciências que transcenderam a evolução material e se integraram no serviço no seu sentido cósmico e abrangente».

Quando escrevo sobre estas coisas, como astrologia, religião, medicinas alternativas e afins, costumam acusar-me de ser demasiado restritivo acerca do conhecimento humano, por exigir que uma alegação seja testável, e testada com sucesso, antes de admitir que possa ser conhecimento. Como este exemplo ilustra, há boas razões para este cepticismo.

Tal como os outros animais, nós somos capazes de adquirir conhecimento implícito. Podemos conhecer a sensação de beber água fresca e aprender a andar de bicicleta ou a atirar pedras. Este conhecimento que “fica no corpo” não requer símbolos nem semântica, pelo que é pouco susceptível de ser treta. É difícil que, ao fim de anos a patinar, alguém descubra que, afinal, não sabia andar de patins. Mas, além disto, nós também somos capazes de obter conhecimento explícito, aquele que se pode codificar em símbolos, como sons, caracteres, gestos, rituais e conceitos com que pensamos. Como os símbolos significam algo mais do que eles próprios permitem fazer imensa coisa. O resultado é uma linguagem demasiado expressiva e permissiva, o que pode ser uma vantagem maravilhosa mas também uma armadilha.

Podemos falar de quadrados redondos, de solteiros casados, de estrelas que brilham escuro em vez de luz. No que nos der na gana. Como deuses omnipotentes, vibrações negativas ou da Lys, seja lá o que isso for. O que é bom. É divertido, poético e estimulante. Uma brincadeira recorrente cá por casa é precisamente fazer disparates com as palavras. O “senhor que não é” foi, durante anos, um personagem comum de muitas chalaças dos miúdos. Em qualquer sítio onde não se visse ninguém, lá diziam que era (não era) ele.

Mas se queremos descrever a realidade isto é uma desvantagem. Não tanto por se poder afirmar falsidades mas, pior ainda, por ser tão fácil dizer coisas que nem sequer falsas podem ser, quanto mais verdadeiras. Como «Os centros planetários são pontos focais da energia universal do planeta, pois actuam com base em planos supramentais», por exemplo. Tal como “o senhor que não é”, cria a ilusão de referir algo sem referir coisa nenhuma. É por isso que, quando o objectivo é conhecer os factos, é indispensável exigir falsificabilidade. Não é suficiente para concluir que uma afirmação é verdade. Para isso é preciso muito mais e há sempre a possibilidade de se vir a revelar falsa. Mas, se for verdadeira, tem de se perceber em concreto o que quer dizer e, se não for, tem de ser possível saber-se que é falsa. Qualquer alegação que não cumpra estes requisitos, por muito divertida ou poética que seja, não pode ser conhecimento.

1- Blog do José Martins
2- Sons de cura e amor
3- Lys-Fátima, Lys