sexta-feira, setembro 30, 2011

Celebração.

Hoje é o dia mundial do direito à blasfémia (1). Pode parecer estranho reivindicar este direito, mas ainda há países onde a lei castiga quem afirmar não existirem deuses, há milhões de pessoas para quem a blasfémia justifica retaliação violenta e, mesmo em sociedades mais civilizadas, há muita gente que gostaria de proibir que dissessem mal da sua religião. Podemos dizer mal da política, da educação, da teoria da evolução, da sopa ou do futebol, mas se for da religião, ai ai. Uma das críticas mais comuns ao meu ateísmo é ser demasiado agressivo, quando a minha única “agressão” é escrever o que penso onde outros o possam ler. Vale a pena fazer um esforço para que as religiões deixem de ser, por assim dizer, vacas sagradas.

Nesse sentido, vou cometer aqui algo que, segundo Tomás de Aquino, é um pecado maior ainda do que o homicídio (2). Afirmar, deliberadamente e com convicção, que o Espírito Santo não existe.

1- Happy International Blasphemy Rights Day. Obrigado pelo email a avisar.
2- Summa Theologica, Article 3. Whether the sin of blasphemy is the greatest sin?

quinta-feira, setembro 29, 2011

Gado.

O Miguel Sousa Tavares defende que foi uma «falta de democracia e [...] grande falta de cultura»(1) os catalães proibirem a entretenga de espetar ferros num touro.



Um dos argumentos do Miguel é que isto não faz sentido porque vai levar à extinção da espécie. Aparentemente, o Miguel julga que sem touradas não haverá razão para criar gado, mas Bos taurus está muito longe de ser uma espécie em extinção. O Miguel aponta também que é errado proibir algo só porque não se gosta, que ninguém é obrigado a ver tourada e que, se fosse por ele, então proibia-se a Casa dos Segredos. O que está correcto mas não tem nada que ver com o problema de espetarem ferros no animal. É esse problema ético que o Miguel Sousa Tavares baralha em defesa da “tradição”, a justificação de último recurso para o não se consegue justificar.

Muita gente assume, mais por conveniência do que por reflexão, que o fundamento da ética é um qualquer conjunto de regras abstractas acerca do que deve ser. Podem ser “leis naturais”, vontade divina ou simplesmente uma lista de direitos que se assume as pessoas terem. Como o direito de espetar ferros num touro, por exemplo. Mas é fácil ver que isto não pode estar correcto se percebermos que o propósito da ética é precisamente justificar essas regras e direitos.

No fundamento da ética está um facto e um valor: a compreensão de que outros também sentem e que isso importa para determinar como eu ajo. Sem esta conjunção não há ética, nem deveres morais nem direitos. Um tubarão não é eticamente responsável por morder, porque não tem compreensão do mal que causa. E um psicopata, indiferente ao que outros possam sentir, age em interesse próprio e nunca por algum sentido ético de bem ou mal. Regras morais de pacotilha, como «em democracia as minorias são respeitadas desde que não façam nada contra as maiorias», são o equivalente ético a um tubarão psicopata, ignorando quer os factos quer os valores fundamentais da ética.

Sabemos que espetar ferros no touro até ele perder litros de sangue enquanto corre furioso e assustado pela arena causa sofrimento ao animal. E esse tipo de coisa causa-nos constrangimento. O facto e o valor estão lá, e qualquer pessoa normal percebe o problema ético da tourada. O hábito de fazer isto ao touro tornou muita gente insensível a este caso particular, mas até o Miguel Sousa Tavares perceberia facilmente onde estão a barbaridade e a falta de cultura se fizessem espectáculos com homens de lantejoulas a espetar ferros em cavalos, cães ou gatos, em vez de torturarem os touros. Não só seria consensualmente reconhecido como imoral, como até já seria ilegal, pois desde 1995 que a nossa lei estipula serem «proibidas todas as violências injustificadas contra animais»(2).

A tourada é a excepção, na lei e na mente de alguns, mais por cobardia política do que por qualquer outra coisa. Mas não se justifica que o seja. Se é mau espetar ferros em cães ou cavalos, também é mau espetá-los num touro. E dizer que é tradição não justifica nada. Isso é uma desculpa bovina. O gado é que faz o que faz só porque sempre o fez. Nós não devíamos ser assim. A nossa espécie tem capacidade, e responsabilidade, de fazer melhor do que isso.

1- SIC, Miguel Sousa Tavares sobre o fim das touradas na Catalunha. Obrigado pelo email com o link.
2- LPDA, Lei n.º 92/95

domingo, setembro 25, 2011

Humpty & Dumpty.

O Jairo Filipe atribuiu-me este argumento de palha, que depois se entreteve a refutar:

«1. Só aceito algo como verdadeiro se tiver provas disso.
2. Não é possível provar uma negativa, por isso o ónus é de quem afirma que Deus existe.
3. Não existem provas da existência de Deus.
Logo sou ateu!»
(1)

Entretanto, o Orlando Braga alegou que «Estas premissas foram escritas em um blogue ateísta conduzido por professores universitários portugueses» apesar de admitir «Eu não frequento nem leio nada do tal blogue ateísta»(2), divagando de seguida por metafísicas que nada têm que ver com o que eu argumento. Esta atitude de deturpar, ou de nem sequer ler, os argumentos que pretendem refutar não merece muito respeito. Mas como as pessoas para quem eu escrevo não são Jairos nem Orlandos, aqui fica um esclarecimento, caso interesse a alguém.

A primeira premissa engana porque o termo “provas” conota algo de definitivo. As provas do crime, provas matemáticas e assim por diante. O critério mais importante para mim não é esse (3). Como o próprio Jairo cita, sem perceber, «Acredito em proposições que passem as provas». Ou seja, não que estejam provadas mas que sejam postas à prova. Enquanto passarem os testes merecem alguma credibilidade. E isto não é uma premissa. É consequência de premissas mais consensuais: se uma proposição não pode ser posta à prova, nem podemos saber se é verdadeira nem a podemos distinguir de infinitas alternativas inconsistentes e impossíveis de testar. Por exemplo, a proposição de que existe exactamente um deus indetectável é inconsistente com a proposição de que existem dois, ou três, etc, e nenhuma delas pode ser posta à prova. Eu rejeito como falsa qualquer proposição que não possa ser testada porque ser verdadeira ou falsa não fará diferença e porque há infinitas alternativas impossíveis de distinguir, sendo praticamente nula a probabilidade de escolher a certa.

A segunda premissa é um disparate. Qualquer proposição pode ser enunciada de forma positiva ou negativa. Por exemplo, “Deus não existe” é logicamente equivalente a “Tudo o que existe é diferente de Deus”. Novamente, o Jairo cita-me sem perceber o que transcreve: «uma proposição da forma "X existe" tende a ser menos plausível, à falta de evidências para a existência de X, do que a sua negação», não por “não se provar uma negativa” mas porque afirmar que algo existe é afirmar que um objecto real tem um conjunto de propriedades. Por exemplo, afirmar “existe uma montanha feita de ouro” é dizer que, entre os objectos que fazem parte da realidade, pelo menos um tem as propriedades de ser montanha e ser de ouro. Por isso, uma proposição do tipo “X existe” é, na verdade, uma conjunção de proposições acerca das propriedades desse objecto X. E quanto mais propriedades se alega, sem fundamento, menos plausível se torna a sua conjunção. É extremamente improvável que, sem evidências sólidas para cada alegação, seja verdade uma conjunção de proposições como “é omnisciente, e omnipotente, e benevolente, e encarnou em Jesus, e nasceu de uma virgem, e morreu pelos nossos pecados” e assim por diante. Aceitar a alegação de que o deus de uma religião existe implica acreditar que os adeptos dessa religião conseguem acertar em todas as propriedades que enunciam. Dado o número de alegações que proferem e a falta de evidências que as suportem, o mais provável é que tenham engatado alguma coisa (4).

Finalmente, «Não existem provas da existência de Deus». Nas teologias mais abstractas é tese comum que a hipótese de Deus existir não pode ser posta à prova. Se assim fosse, então não poderia haver quaisquer indícios da existência desse deus e, pelas razões que expus acima, justificava-se descartar essa hipótese. No entanto, esta tese não é correcta. A hipótese de existir um ser omnisciente, omnipotente e perfeitamente bom, por exemplo, implica restrições ao que se espera observar, restrições essas que servem para testar a hipótese. A teologia cristã até reconhece este problema dos dados mostrarem haver muita maldade e sofrimento quando a hipótese do universo ser governado por uma bondade perfeita prevê precisamente o contrário. Os teólogos chamam-lhe “problema do mal”, uma designação incorrecta porque, quando os dados e a hipótese são inconsistentes, o problema será provavelmente da hipótese. Assim, o mais correcto seria chamar-lhe o problema da hipótese de Deus não ser consistente com o que vemos todos os dias à nossa volta. O que dá uma boa razão para procurar hipóteses alternativas que encaixem melhor no que sabemos.

O Jairo refuta o argumento que ele inventou apontando inconsistências entre disparates que tirou do chapéu, enquanto o Orlando, nem se incomodando em ler o que eu escrevi, divaga sobre a metafísica que não tem nada que ver com o assunto. O que me dá a desculpa para esclarecer mais um ponto. É comum alegarem que este raciocínio não se aplica porque o deus é metafísico, transcendente, não é do domínio empírico, não é causa entre causas ou ser entre seres e desculpas afins. Mas nada disso é relevante. A abordagem que proponho é válida para quaisquer hipóteses acerca dos factos, independentemente dessas classificações. Se a hipótese não pode ser posta à prova, então tem de ficar no caixote com a infinidade de outras hipóteses que estão na mesma situação. E se pode ser testada, então só merece crédito na medida em que passar nos testes e nunca se for inconsistente com os dados. Não encontrei ainda qualquer religião cujas hipóteses centrais merecessem tal crédito, e é por isso que sou ateu.

1- Jairo Filipe, Neo-Ateísmo, a Treta. Parte II
2- Orlando Braga, Caros ateístas: a negação de uma metafísica é sempre uma metafísica!
3- Como já escrevi há uns anos, em Provado cientificamente.
4- Quanto ao ónus da prova, esse já foi treta da semana há uns tempos.

sábado, setembro 24, 2011

Treta da semana: bela alternativa.

Numa entrevista ao jornal Algarve 123, Alfred Lang, «farmacêutico e electro-acupuncturista», adverte que «Há muitos “estragos” que vejo como uma consequência das crianças serem vacinadas. [...] Há toda uma panóplia de problemas como otites e asma, a coisas mais graves como o distúrbio do déficit de atenção e outras mazelas psicológicas.»(1) Este disparate é, infelizmente, muito fácil de propagar.

O Programa Nacional de Vacinação recomenda vacinas para doenças como poliomielite, tétano, tosse convulsa e difteria (2). Para as pessoas da minha geração, que têm agora filhos pequenos, parecem doenças da treta. Otites, asma e distúrbios de atenção (muitas vezes simples má criação) são uma preocupação. Mas poucos sabem das centenas de milhares de crianças que ficaram paralisadas só nos surtos de poliomielite que precederam a vacina. Ou que a tosse convulsa ainda mata 300,000 crianças por ano, que a difteria tem uma taxa de mortalidade de 20% nas crianças; que os espasmos do tétano chegam a fracturar ossos e que esta doença mata metade dos 300,000 que dela padecem por ano (3). Isto é fácil de ignorar porque só acontece onde não há vacinas. Ironicamente, o sucesso das vacinas foi tão grande que quem as tem nem percebe os horrores que elas evitam. Mesmo que causassem otites e «mazelas psicológicas» seriam muitíssimo melhores do que aquilo que previnem.

Além disso, os alegados efeitos secundários das vacinas são muito exagerados. A história da amiga do conhecido cuja filha ficou mal depois da vacina causa impressão, mas quando se contabiliza os efeitos com rigor, os mais comuns são passageiros, como febre, náuseas ou inchaços durante umas horas ou poucos dias. E os efeitos secundários graves, como reacções alérgicas, ocorrem uma vez em centenas de milhar ou milhões de pessoas (4). São tão raros que nem é claro que sejam mesmo causados pela vacinação. O risco das doenças, sem vacinação, é muitíssimo maior. Não vacinar é como andar a pé no meio da estrada com medo que um carro se despiste e nos atropele no passeio.

Outro argumento comum é o do conflito de interesses. «Os médicos [...t]emem que se a ideia de que existem alternativas se espalhar, possam perder todo o seu “poder”» e «A homeopatia [...] é muito mais barata que a medicina convencional, e portanto, corta a necessidade de se alimentar a indústria farmacêutica.»(1) Só que os alternativos também cobram pela consulta, têm prestígio pela alegada cura e até vendem as suas mezinhas, coisa que aos médicos a lei proíbe. E se os medicamentos são um grande negócio, os “alternativos” não são menos. Um remédio homeopático pode sair mais barato mas, sendo só água ou açúcar, até pode dar mais lucro. Além disso, enquanto da indústria farmacêutica se exige anos de investigação para demonstrar que o medicamento é eficaz e minimamente seguro, para depois normalmente só autorizar a venda se prescrito por um médico, para os homeopáticos basta isto: «Uma enfermeira minha amiga, que esteve a trabalhar em África, levou consigo entre um a dois quilos de vacina homeopática contra a malária para tratar as pessoas. [...] Ela administrou-as a muitas, muitas pessoas – e uma grande percentagem não ficou doente. […] Portanto, eu sei que estas vacinas resultam»*. Pois uma grande percentagem dos fumadores que conheço também não apanhou cancro. Daí a concluir que o tabaco previne o cancro vai um grande disparate.

Os médicos e empresas farmacêuticas querem fazer negócio. Mas os “alternativos” também. É tudo negócio. A diferença é que da medicina exigimos que funcione enquanto que os tretapeutas podem vender que lhes dá na gana. O mais irónico, e triste, é que estas parvoíces das alternativas e movimentos anti-vacina só prosperam graças ao sucesso espantoso da medicina preventiva moderna. Há uns séculos, no auge da medicina tradicional, a mortalidade infantil era de 30%(5). Ninguém pensaria duas vezes em vacinar os seus filhos se um terço das crianças estivesse a morrer de tétano, tosse convulsa ou difteria. Graças às vacinas e à medicina moderna, a mortalidade infantil em Portugal é agora inferior a 0,4%(6) e essas doenças já não preocupam a maioria dos pais. É isto que permite ao homeopata dizer que as vacinas «não devem ser administradas nem nas crianças, nem nos seus pais» e o jornal publicar o disparate sem sequer pestanejar, com a desculpa de «divulgar outras alternativas»(7). Mas trocar vacinas por homeopatia não seria uma alternativa. Seria uma desgraça para os que não fossem vacinados, e um crime pelo perigo que a proliferação dessas doenças representaria para todos. Porque as vacinas não são tanto uma protecção individual mas, sobretudo, um método colectivo de manter as doenças sob controlo. O negócio de ser contra as vacinas põe em risco a principal protecção que temos contra doenças horríveis que a maioria destas pessoas já nem conhece.

*Isto da homeopatia contra a malária é uma treta que já não cabe neste post. Deixo só a ligação para o blog do David Colquhoun, para quem estiver interessado.

1- Algarve 123, Vacinar...ou talvez não!. Obrigado à Ana Margarida, via Facebook.
2- Portal da Saúde, Programa Nacional de Vacinação
3- Recomendo a quem está mais preocupado com as alegadas otites, que leia Poliomyelitis, Pertússis, Diphteria e Tétano na Wikipedia.
4-CDC, Possible Side-effects from Vaccines
5- About.com, The Medieval Child, Part 3: Surviving Infancy, Page Two
6- Indicadores e metas do PNS, Mortalidade infantil
7- Algarve 123 no Facebook, comentários no item de quinta-feira às 09:43.

sexta-feira, setembro 23, 2011

Converter ou conversar.

É prática comum das religiões, comum e assumida, tentar converter as pessoas. Seja a espalhar a boa nova, ganhar fiéis, prometer paraísos ou salvar almas, fazem virtude de moldar as crenças alheias. E muitos adeptos das religiões dizem que cientistas, ateus, cépticos e professores fazem o mesmo. Basicamente, que toda a gente tenta converter os outros. Mas isto confunde duas atitudes diferentes, quer nos objectivos quer nos mecanismos a que recorrem.

Quando explico porque julgo não existirem deuses tento dar razões consensuais de onde se possa chegar a essa conclusão. O objectivo disto é tornar clara a minha posição, e o seu fundamento, para que cada um avalie se tem mérito ou não. Se alguém se tornar ateu ao ler o que escrevo será porque mudou a sua própria opinião, e não porque eu o converti. Os religiosos dirão que também fazem isto, que também apresentam razões e argumentos racionais. Têm razão. Nem todos o fazem, mas admito que alguns tentam. A diferença está no que fazem para além disto. Por exemplo, na educação das crianças.

Se os meus filhos me perguntam o que eu penso das religiões, sou sincero e apresento os argumentos que julgo mais sólidos. No entanto, quando eles dizem que também são ateus como o pai, digo-lhes que aos dez anos ainda é cedo para decidirem isso, que têm ainda muito que aprender e pensar sobre o assunto antes de perceberem bem o problema e essa solução. Quando se espantaram por eu ler a Bíblia expliquei-lhes que, independentemente do aspecto religioso, é uma obra culturalmente importante. E quando começaram a fazer perguntas sobre estes assuntos comprei uns livros sobre religiões e mitologia e fui-lhes mostrando de tudo um pouco, dos deuses gregos ao islão e do cristianismo ao criacionismo dos nativos norte-americanos. Admito ser provável que, com esta abordagem, acabem ateus como o pai. Mas isso é porque nenhuma religião tem um fundamento tão sólido como o do ateísmo, e não por eu vedar aos meus filhos o acesso a opiniões contrárias à minha. O mais importante é que tenham a capacidade de encontrar a informação de que precisam e de decidirem por eles próprios.

A educação dos filhos de religiosos tende a ser diferente. Logo depois de nascer dão-lhes a religião dos pais. Crianças que nem sequer sabem falar e já são católicas, judias ou muçulmanas. Nas escolas, desde a disciplina de religião e moral até à educação sexual, o que mais preocupa as religiões é evitar que as crianças aprendam “o que não devem”, como se a ignorância selectiva fosse o mesmo que a educação. E até na universidade. Há dias, a Universidade Católica decidiu, à última hora, não contratar um professor de filosofia que já sido tinha seleccionado, notificado da selecção e a quem até já tinham atribuído o serviço docente. Apesar de ser católico, parece que tinha ideias prejudiciais para os alunos (1). Por mim, e penso que muitos ateus concordariam, a educação religiosa devia ser igual para todos e focar os factos consensuais acerca das religiões: os cristãos acreditam nisto, os muçulmanos naquilo, os budistas naqueloutro, e os ateus vivem bem sem essas coisas. Cada um depois que decidisse por si, ao longo da vida. Mas nenhuma religião aceitaria isto porque, em vez de educar as crianças, o que querem é afunilar-lhes o caminho para o curral predestinado.

A argumentação religiosa também vai muito além de razões consensuais, alegações fundamentadas e inferências válidas. Ou seja, sai do âmbito da persuasão racional. Quando um padre católico afirma saber que eu vou ter uma vida eterna depois da morte e que o criador do universo encarnou em Jesus para me salvar está a invocar uma falsa autoridade porque, em rigor, não tem como saber isto. Especula, crê, mas não sabe. Quando um cristão afirma que só acreditando em Jesus posso ser eternamente feliz mas se rejeitar o cristianismo sofrerei para sempre está a apelar a consequências (dúbias) para suportar alegações de factos. Isto são falácias, visando persuadir pelo engano, medo ou desejo em vez de pela razão.

Há uma grande diferença entre converter e conversar. Um diálogo racional pretende tornar o raciocínio tão claro quanto possível para que se possa avaliar o seu mérito e decidir, pela força das razões, se a conclusão é aceitável ou se há alternativas com mais fundamento. O meio para atingir esse fim é procurando razões consensuais e abrindo caminho com inferências válidas. O objectivo da conversão é diferente. A conclusão está dada à partida, e o objectivo é operar no outro as mudanças necessárias para que adopte essa opinião. E para isso vale tudo. Pode-se começar a catequese logo na infância, para decidir pelo convertido antes que ele o possa fazer por si. Depois, filtra-se o acesso à informação para que não descubra hipóteses alternativas e incute-se o dever de acreditar mesmo contra os factos: a fé. No meio disto vai-se apelando falaciosamente para autoridades ou consequências fictícias de modo a dificultar a análise racional e deixar a parte mais emotiva cimentar a opinião.

Nas discussões em blogs, ateus e religiosos fazem fundamentalmente o mesmo. Melhor ou pior, tentam argumentar racionalmente pelas suas conclusões. Nesse contexto as alegações de infalibilidade, as ameaças ou promessas para uma vida futura e afins têm pouca relevância. Mas quando consideramos o que se passa na nossa sociedade, em geral, há uma grande diferença entre o que o ateísmo faz para expor e defender a sua posição e o que fazem as religiões para angariar e manter fiéis.

1- Porfírio Silva, Uma história pouco católica.

terça-feira, setembro 20, 2011

Redes sociais.

As redes sociais já existem há muito tempo. Talvez até precedam a nossa espécie, dependendo da definição. Mas o termo é recente e, em vez de referir o que parece significar – a rede de indivíduos e as suas relações sociais – refere um conjunto de meios de comunicação substancialmente diferentes daquilo que estamos habituados a usar. Infelizmente, além do equívoco no termo há também um equívoco acerca do que estas “redes sociais” têm de diferente.

Confundindo a rede social com estes serviços de comunicação, há quem defenda que os “amigos” no Facebook têm de ser mesmo amigos a sério e que o valor das “redes sociais” depende de escolher criteriosamente quem é que fica na lista que aparece ao carregar no desenho de um botão. Presumem que o Google+, Facebook, LinkedIn e afins devem reflectir as nossas relações de amizade, profissão ou família. Mas não é claro porquê. É natural que as listas de endereços de email ou números de telefone que nós guardamos correspondam às nossas relações mais próximas, pois só temos interesse em guardar essas. Mas estes serviços que se apresentam como redes sociais são fundamentalmente diferentes do telemóvel, cliente de email ou agenda onde mantemos os nossos contactos.

Há diferenças sociais e tecnológicas entre estes serviços modernos, dos blogs ao Twitter, e o que havia há vinte anos. As BBS não tinham tanta bonecada nem esperava encontrar a minha mãe no Gopher ou nos newsgroups. Mas o que faço hoje no blog ou no Facebook é fundamentalmente o mesmo que já fazia nos anos 90 em listas de discussão. Isto agora é mais prático, mais bonito e menos geek, pelo que se encontra por cá mais gente. Mas o que se passou desde o início da Internet até ás “redes sociais”, ao nível social e tecnológico, foi mais uma evolução gradual do que uma revolução.

A revolução foi comercial, mas essa, por conveniência de quem oferece estes serviços, tem passado despercebida. Até recentemente, fosse por carta, telegrama, telefone ou email, nós mantínhamos contacto com as nossas redes sociais pagando serviços de comunicação. Dos CTT aos ISP, o cliente era quem enviava e recebia as mensagens, e quem prestava esse serviço apenas levava a mensagem de um lado para o outro. Os correios não tiravam fotocópias das cartas, a companhia dos telefones não gravava as nossas conversas e, pelo menos até recentemente, o ISP não ficava com os nossos emails*. A revolução das “redes sociais” foi virar isto ao contrário.

Quando pomos algo no FriendFeed, Facebook ou Blogger, não estamos só a enviar a mensagem para as pessoas da nossa rede social. Estamos, primeiro e sobretudo, a cedê-la a estas empresas, bem como todos os direitos de a usar como bem entenderem. E nem sequer somos clientes dessas empresas. O serviço é gratuito, para nós, precisamente porque somos a mercadoria. No Facebook indicamos criteriosamente quem são os nossos amigos, informação essa que a empresa depois vende aos seus verdadeiros clientes, que fazem publicidade pondo-nos um link à frente a dizer que não sei quantos amigos nossos gostam daquilo. É muito mais eficaz do que se não soubessem quem são os nossos amigos. Estes sistemas são bons se aproveitarmos bem a borla, mas não são as nossas redes sociais. São apenas formas de exploração económica da informação pessoal que lhes quisermos dar.

Sistemas P2P, como o Diaspora (1), podem ser diferentes. Nesses, cada um guarda a sua informação e partilha-a directamente com quem quer, sem precisar de dar todos os detalhes a uma empresa primeiro. Sistemas de cliente e servidor, como o Google+, Facebook, blogs e companhia, são cómodos de usar e úteis para partilhar com toda a gente, mas é preciso ter em mente que aquilo que oferecem de privacidade, selecção de “amigos”, círculos e afins é só fogo de vista, porque tudo o que lá pusermos deixa de estar sob nosso controlo e, por isso, deixa de ser privado.

Aquilo que hoje se chama “redes sociais” não é o que parece. São empresas de publicidade que nos incentivam a partilhar dados pessoais – quem são os nossos amigos, onde moramos, o que gostamos de fazer e assim – para depois venderem essa informação a quem quer fazer publicidade dirigida. Nos meios de comunicação em que mantemos controlo sobre as mensagens e conteúdos, como os telemóveis, telefones, cartas e (algum) correio electrónico, faz sentido organizar as coisas de acordo com as nossas redes sociais, distinguindo amigos, familiares, colegas e conhecidos. Mas nestes meios de comunicação em que tudo fica propriedade de uma empresa não faz sentido fingir que temos privacidade nem detalhar à empresa todas as nossas relações sociais. Por isso, coisas como o Facebook, FriendFeed ou Google+ serão como este blog: onde ponho o que quero mostrar a quem se interessar, seja meu conhecido ou não. Se quero partilhar algo apenas com amigos ou familiares, uso o email ou (aguardando ansiosamente) o Diaspora. Não preciso do Facebook para me dizer quem são os meus amigos.

*Penso que ainda será assim em muitos casos. Uma das razões pelas quais uso a Netcabo para os emails pessoais é a premissa de que eles não têm capacidade de armazenamento para guardar os emails todos eternamente. No entanto, com o outsourcing para “as nuvens” cada vez mais frequente, suspeito que já nem assim me safe...

1- joindiaspora.com.

domingo, setembro 18, 2011

Treta da semana: água diamante.

A água diamante é «uma água cuja consciência vibra na 5ª dimensão […] Esta água tornou-se viva e inteligente, potencializando, assim, com muito amor as intenções emitidas pelos seus utilizadores. Ela é uma ajuda preciosa no trabalho de desprogramação das memórias celulares facilitando assim o processo da ascensão e expansão consciencial dos seres humanos.»(1) Melhor ainda, esta água maravilhosa pode ser criada a partir de água da torneira com um ADN 850. «O ADN 850 é um pequeno tubo de vidro dentro do qual um ADN da 5ª dimensão serve de receptor aos 850 códigos que permitem a transmutação de uma simples àgua da torneira em água diamante.» É melhor do que água benta, e nem é preciso um padre.

Mais fascinante ainda foi a forma como Joël Ducatillon descobriu não só um ADN da 5ª dimensão mas também como o usar para tornar a água tão viva e inteligente como o diamante. Ou coisa assim. Se não fizer sentido é porque deve ser um Mistério insondável. Ou isso, ou um disparate. Ducatillon começou por receber «informações em 3 sonhos sucessivos», prosseguindo depois com «meditações, trabalho interno, mas também pesquisas ao nivel da fisica quântica». E foi assim que desenvolveu o método da “Pyramidal Memories Transmutation”, uma «Técnica de Transmutação de memórias dadas pela alma».

É isto que permite um tratamento «feito com a ajuda dos codificadores ADN 850 que foram potencializados com um acréscimo de mais de 10,000 códigos, e que criam ao redor da pessoa uma piramide etérica de transmutação. Esta piramide permite elevar, no nivel quântico, os diferentes corpos energéticos para uma oitava superior.» Para o tratamento, «a alma vai consultar o seu registo e escolher quais as memórias que ela gostaria de ver transmutadas. Durante a terapia essas mesmas memórias são projectadas na aura.» A grande vantagem deste processo é que ninguém pode provar que isto seja falso. O ADN está na 5ª dimensão, a pirâmide é etérica e ninguém consegue contar os 10850 códigos, medir a oitava do nível quântico dos corpos energéticos ou ver a alma projectar memórias na aura. E se alguém disser que isto não tem fundamento podem sempre acusá-lo de não compreender a filosofia, teologia, tretologia ou metafísica do ADN da 5ª dimensão.

Muitos criticam o meu cepticismo dizendo que eu não devia aceitar como conhecimento apenas aquilo que se pode relacionar com a nossa experiência. Alegam que há outras formas de saber, que transcendem o domínio do empírico, e que são igualmente válidas. Mas se deixamos de exigir que as hipóteses sejam testáveis e se fundamentem nos dados, ficamos sem razões para rejeitar disparates como a água diamante, o ADN da 5ª dimensão e as pirâmides etéricas.

1- Espaço Infinito, PMT

quinta-feira, setembro 15, 2011

Comunismo, capitalismo e partilha (take 2).

A discussão com o João Vasco e o Miguel Caetano, a propósito da versão anterior deste post, mostrou-me que capitalismo e comunismo não são conceitos que sirvam para delimitar nada. Num espaço multidimensional de questões sociais, políticas e económicas, é impossível encontrar uma fronteira clara que os demarque, até porque a tradição é atribuir tudo o que seja defeito àquele de que menos se gosta.

Por isso, não vou usar estes termos para designar categorias bem definidas mas sim dois sentidos ao longo do eixo das normas de propriedade, que me parece o aspecto mais fundamental onde capitalismo e comunismo divergem. Por exemplo, para decidir quem pode comer as maçãs da macieira, o capitalismo faz da macieira e maçãs propriedade privada, deixando o dono decidir o que se faz com a árvore e os frutos, enquanto o comunismo prefere subordinar a propriedade privada ao bem comunitário e gerir colectivamente a macieira e as maçãs. Num comunismo utópico haveria uma organização espontânea da sociedade mas, na prática, acaba por ser preciso o Estado impor-se como proprietário das macieiras e distribuidor das maçãs. Quase tudo o que caracteriza os capitalismos e comunismos já implementados segue desta diferença fundamental. Se favorecemos os direitos individuais de propriedade temos propriedade privada sobre meios de produção, compra e venda de bens e trabalho, acumulação de riqueza, luta de classes e corrupção. Se favorecemos a gestão estatal da propriedade temos o controlo central da produção, restrições sobre transacções, acumulação de grande poder em certos burocratas e corrupção. Mas vou ignorar estes detalhes e focar apenas os dois sentidos opostos a respeito da propriedade: o capitalismo, que favorece os direitos individuais sobre o uso dos recursos que cada um controla; e o comunismo, que prefere retirar esse poder do indivíduo para gerir os recursos colectivamente.

Destas considerações, concluo que associar a partilha de informação ao comunismo é incorrecto. O problema da propriedade surge apenas com direitos cujo exercício exclui a outros direitos idênticos. Comer a maçã criar um problema porque impede todos os outros de exercer o mesmo direito sobre a mesma maçã. Mas nem o comunismo nem o capitalismo precisam de se preocupar com coisas como olhar para maçãs, usar a palavra “maçã” ou pensar em maçãs, pois nada disto exclui terceiros de exercício idêntico e, por isso, não exige direitos de propriedade, seja privada ou seja estatal.

Assim, a Wikipedia, os blogs, as aulas disponíveis na Web, o software open source e a dedicação de obras ao domínio público não têm nada que ver com comunismo ou capitalismo. Pagar o condomínio é uma solução comunista porque cada um prescinde de alguma propriedade privada em favor do colectivo de condóminos. Mas publicar o código fonte de um programa, um post num blog ou a gravação de uma aula não obriga a ceder nada do que se escreveu ou disse. A partilha de ficheiros de músicas, filmes e livros, também não é comunista nem capitalista em si porque nem sequer é exactamente partilha, no sentido comum. É mais como dizer as horas. Quem partilha batatas fritas fica com menos do que teria se fosse egoísta. Partilhar coisas físicas exige algum sacrifício. Mas quem explica o teorema de Pitágoras ou copia um ficheiro mp3 continua com tudo o que tinha. Isto não tem qualquer relação com direitos de propriedade.

O que choca com os direitos de propriedade é a concessão de direitos legais exclusivos a autores e distribuidores. A posição ortodoxa diz que os “piratas” violam um direito privado de “propriedade intelectual” ao partilhar entre si o que é de outrem, como se entrassem num pomar e roubassem as maçãs. Mas esta história está ao contrário. A “propriedade intelectual” é um eufemismo para os monopólios sobre cópia e distribuição, e nem faz sentido que alguém seja dono de categorias abstractas como músicas, ideias ou sequências de números. Ficheiros não são como maçãs. E, para conceder esses monopólios a autores e distribuidores, o Estado tem de proibir que proprietários de objectos físicos como computadores, leitores de mp3 e gravadores de CD usem esse equipamento que é propriedade sua para copiar ou distribuir certos ficheiros. Esta apropriação de direitos de propriedade afasta-se do capitalismo, onde estes direitos são privados e individuais, e aproxima-se do comunismo, onde a propriedade tende a ser gerida colectivamente.

Muitos vão apontar que a definição de comunismo não é esta, mas eu não estou a propor uma fronteira entre capitalismo e comunismo. Proponho apenas que a concessão de monopólios sobre a cópia, por exigir a apropriação estatal de direitos de propriedade privada, aproxima-se mais do comunismo neste eixo fundamental. Restringir os direitos de propriedade sobre os computadores para que compositores e editores sejam mais compensados pelo seu trabalho é análogo a restringir direitos de propriedade sobre terrenos agrícolas para que os lavradores sejam melhor recompensados pelo seu trabalho. Em contraste, a partilha de ficheiros e a violação destes monopólios é uma afirmação individual de direitos de propriedade privada que se aproxima mais do capitalismo. Onde está a fronteira, não sei, mas os sentidos são estes.

A ideia importante é que, quando partilhamos informação – seja código fonte, músicas, filmes ou posts em blogs – não estamos a ceder direitos de propriedade para o bem comum. Pela natureza destas coisas, pode-se partilhá-las livremente sem ceder qualquer direito de usufruir delas. Os monopólios legais é que obrigam a ceder ao Estado direitos de propriedade sobre bens materiais. Se querem chamar comunismo a alguma destas partes, deve ser a essa.

Este post é um remake de Comunismo, capitalismo e partilha, a propósito da minha participação na Cultura Pirata 2011

quarta-feira, setembro 14, 2011

Evangelização ateísta.

Truth is something we can attempt to doubt, and then perhaps, after much exertion, discover that part of the doubt is unjustified. (Niels Bohr)

Reality is that which, when you stop believing in it, doesn't go away. (Philip K. Dick)

O João “o discípulo amado” Silveira escreveu que eu cometo os erros de defender «que só faz sentido acreditar na ciência», de ter a certeza absoluta de «que não há certezas absolutas» e, não sei se por consequência se sem relação, acusou-me «Usas o blog, as tuas aulas, e presumo que o teu dia-a-dia a defender as tuas ideias, e a apontar os erros dos outros. Isso é evangelizar. A diferença é que o evangelho é outro.»

Como outros comentadores aplaudiram – o Jairo até voltou cá só para isso – pareceu-me valer a pena desembaraçar o novelo que o João enleou. Começo pela sugestão, implícita na acusação, de que evangelizar é mau. Eu concordo que evangelizar não é bom, mas não só me parece estranho que um católico partilhe esta opinião, como não me considero culpado disso.

Em muitas aulas, obviamente, defendo certas ideias e aponto erros. O João deve estar a pensar nas aulas de Pensamento Crítico, que tanto incomodam alguns comentadores. Mas, na verdade, isto é muito mais comum nas aulas de programação, bioinformática e disciplinas afins. Há aulas práticas de programação onde passo três horas seguidas a apontar erros nos programas dos alunos. Nessas disciplinas a matéria consiste de problemas com respostas claramente certas. Em Pensamento Crítico é diferente. O objectivo é tomar consciência do processo pelo qual formamos opiniões, pelo que os temas abordados – como astrologia, futebol, animais de estimação ou religião – são escolhidos precisamente por não terem um critério óbvio, à partida, para decidir a resposta. Isto permite que os alunos explorem respostas diferentes e incentiva o foco no raciocínio sem encarrilar numa resposta.

E se bem que, como professor, passe muito tempo a apontar erros, é incorrecto chamar-lhe evangelização. Literalmente, os evangelhos são as alegadas boas novas cristãs e, mesmo em sentido figurado, evangelizar implica tentar converter alguém a uma ideologia, o que não faço nem na minha profissão nem nos blogs. Nas aulas, quando mostro como criar um programa para ler um ficheiro de texto ou explico como comparar sequências de proteínas ou analisar um argumento, apenas me preocupa se percebem as técnicas e as conseguem aplicar. O resto é com cada um. Também não me preocupa o destino das almas de quem discordar de mim no blog. Aqui justifico algumas opiniões, discuto com quem discorda e até ficaria desiludido se alguém concordasse comigo por fé, sinal de que não tinha percebido nada do que eu defendo.

Também quando fala de ciência, o João confunde a crença com o valor da dúvida. Eu não acredito na ciência. É tão fácil acreditar em mentiras como em verdades, pelo que a crença não ajuda a distinguir entre tretas e conhecimento. A dúvida é muito mais útil. Mesmo os mais pós-modernos e relativistas, por muito que digam duvidar da realidade objectiva das paredes, não têm outro remédio senão sair pela porta. A ciência é a dúvida metódica, insistente, dedicada e disciplinada que sopra a fantasia e o erro para deixar à vista a realidade, a única coisa que lhe resiste. Por isso eu duvido da ciência. Esta dúvida não é aquele gesto vazio, por mera aparência, do crente que diz “por vezes tenho dúvidas”. É procurar activamente hipóteses alternativas, atirá-las umas contra as outras e confrontá-las com as evidências até haver um vencedor claro. E depois continuar o processo, não vá essa ter ganho por sorte. O valor da ciência não vem de acreditarem nela. Vem da forma como responde às dúvidas, admite os seus erros, muda de ideias e se corrige. Quem se arroga da infalibilidade das suas crenças não se livra dos erros. Livra-se apenas da oportunidade de os corrigir.

Finalmente, eu não tenho certezas absolutas. Tenho certezas relativas. Há proposições para as quais não adianta procurar mais evidências a favor porque já tenho o máximo de confiança que consigo. O Sol vai brilhar amanhã, a Terra não é plana e o Pai Natal não existe, por exemplo. São certezas porque mais provas disto não me farão diferença nenhuma. Mas são relativas ao que sei agora, e se descobrir evidências contrárias estou disposto a mudar de ideias. É também assim a minha certeza de não se justificar certezas absolutas. É certeza porque qualquer evidência a favor me deixará na mesma. Isso já eu sei. Mas é relativa porque admito poder haver algo, que ainda desconheço, capaz de enfraquecer a certeza de que não se justifica certezas absolutas.

Em contraste, quando a Igreja Católica estipula o «Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra» não quer dizer “com base na informação disponível e sujeito a revisão na eventualidade de se encontrar indícios contrários”. Está a dizer que isso é para crer categoricamente. Em absoluto, e não de forma relativa aos dados que se tenha. É esse tipo de certeza que eu rejeito. Precisamente porque o caminho para a verdade é pela dúvida, e não pela crença, nunca me arrogo de proclamar um assunto encerrado. E por muita certeza que tenha numa opinião estou sempre disposto a abandoná-la caso se justifique. Ao admitir isto, desqualifico-me como evangelista.

1- Comentários em Treta da semana: ele é o quê?

domingo, setembro 11, 2011

Treta da semana: ele é o quê?

Explica o Anselmo Borges que a religião «em sentido estrito [...] refere-se ao pólo subjectivo, isto é, ao movimento de transcendimento e entrega confiada a uma realidade sagrada, que é o pólo objectivo - o Sagrado ou Mistério. O religioso diferencia-se, pois, do profano, já que indica o modo concreto e peculiar de assumir a existência na perspectiva do Sagrado.»(1) Ultrapassando a terminologia desnecessariamente rebuscada, até aceito a ideia. O crente religioso é aquele que assume haver algo de sagrado. Tudo bem.

Mas, logo a seguir, «Todas as religiões têm em comum o facto de estarem referidas a um âmbito de realidade que é o Sagrado, e são um sistema organizado de mediações - crenças, práticas, símbolos, lugares... - nas quais o Homem religioso exprime o seu reconhecimento, adoração, entrega à Transcendência enquanto fonte de sentido e salvação.» Ora aí está. Afinal, a religião não é o movimento de entrega da pessoa, àquilo que considera sagrado, mas sim «um sistema organizado de mediações». Isto é diferente e muito mais problemático. Eis porquê:

«A religião enquadra-se na experiência radical de dependência, implicando um núcleo com esses dois pólos: um pólo objectivo, constituído pela presença de uma realidade superior de que se depende, e um pólo subjectivo, que consiste na atitude de reconhecimento dessa realidade por parte do ser humano.»

O problema é que esse pólo objectivo, «aquele âmbito de realidade que se traduz por termos como "o invisível", "a ultimidade", "a verdadeira fonte do valor e sentido últimos", "a realidade autêntica"», não está directamente acessível ao crente. Porque, se estivesse, não era preciso mediação nenhuma. E nem é evidente que esse “pólo objectivo” seja realidade. Toda a informação que o crente recebe acerca dessa “ultimidade invisível” provém de “sistemas organizados de mediação” como aquele ao qual o Anselmo Borges pertence. E cada um desses “sistemas organizados de mediação” descreve a “realidade autêntica” de forma diferente e inconsistente com as descrições dos outros.

O resultado é que a “experiência radical de dependência” do crente não é do tal “pólo objectivo” mas apenas dos “sistemas organizados de mediação” que, independentemente de existir ou não alguma “ultimidade” e “verdadeira fonte do valor e sentido últimos”, acabam por ser uma ferramenta jeitosa para tomar conta da vida de quem decida depender deles radicalmente.

Além da forma do texto, o conteúdo também ilustra a fraqueza e inconsistência desta apologia religiosa. Apresenta a religião como uma relação pessoal com o sagrado e, ao mesmo tempo, como sendo a organização que medeia essa relação, tentando o feito impossível de justificar a autoridade eclesiástica sobre as crenças das pessoas com o direito de cada um ter a crença que quiser.

O objectivo também é inconsistente. «[P]ara a sua compreensão adequada, a realidade mesma aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê». No entanto, essa presença é «o Sagrado ou Mistério», que é precisamente o oposto da compreensão.

E o processo também é inconsistente. «O homem religioso faz a experiência do Sagrado ou Mistério enquanto Presença originante e doadora de toda a realidade», mas esse aspecto da realidade é proposto como estando além da «imediatidade empírica». Ou seja, fora daquilo que pode ser parte da experiência.

Há pessoas que acreditam que os deuses são mesmo pessoas, têm manias, fazem coisas e são alguém a quem se pode pedir favores ou com quem se pode trocar promessas por milagres. Os teólogos “sofisticados” torcem o nariz a isto mas, ao menos, essas superstições até fazem sentido. As premissas são falsas, mas o raciocínio não se contorce por tantas contradições. A teologia “sofisticada” nem consistência tem, e os teólogos até apregoam as contradições, «ao mesmo tempo absolutamente transcendente e radicalmente imanente», como se fossem uma coisa boa. Não são. São apenas sinal de que já disparataram por completo.

1- Anselmo Borges, DN, Que se entende por religião?

Um, dois, despesa, receita.

Diminuir a despesa do Estado é bom, m'kay. Aumentar os impostos é mau, m'kay. Ouve-se isto constantemente. Mas a distinção é muito arbitrária. Todos os meses tenho uma “Redução Remuneratória” de €260 que dizem ser redução na despesa do Estado em vez de um imposto. Mas a única diferença é ser um valor negativo nos “Abonos” em vez de um valor positivo nos “Descontos”. Não me oponho à medida, mas era escusado chamarem-me parvo. E quando cortam a comparticipação nos medicamentos para a asma não é razoável fingir que cada asmático será livre de optar entre a respiração e alternativas mais em conta. Isto é um imposto sobre a asma, para todos os efeitos, porque não têm outro remédio senão pagá-lo. E aumentar o preço dos transportes equivale a um imposto sobre quem não tem carro mas tem de ir trabalhar. Quando o pagamento é efectivamente obrigatório, a distinção entre o dinheiro que não temos porque pagámos ao Estado e o dinheiro que não temos porque pagámos em vez do Estado é mero ilusionismo contabilístico.

Além disto, não há uma boa justificação para a regra geral de cortar na despesa em vez de aumentar os impostos. Os dois argumentos principais, de que é imoral tirar muito dinheiro a quem mais tem e de que o mercado é mais eficiente, têm mérito apenas em casos particulares, não como regra geral.

É imoral que o Estado nos tire o que nós tornamos nosso. Dá jeito um sistema legal que desencoraje o roubo mas, para coisas como casa, máquina de barbear e anéis, o Estado tem um papel secundário. O principal responsável pelo controlo sobre essas coisas é o proprietário, com chaves, portas, trancas e cuidado. Concordo que o Estado não deve apropriar-se de jóias, quadros e afins, mesmo de pessoas muito ricas, porque isso seria violar direitos de propriedade que são essencialmente negativos. Nestas coisas, basta deixar as pessoas em paz para que exerçam por si os seus direitos.

Mas ter 68% de uma cadeia de supermercados ou 26% de um banco é um caso diferente. Não são direitos negativos, que o proprietário possa exercer por si. São direitos que exigem muito de muita gente, do Estado e da sociedade, só para que um accionista possa controlar a sua empresa. Por isso, é moralmente justificável que o Estado, em nome da grande maioria que não tem bancos nem supermercados, exija contrapartidas por dar eficácia ao papelinho segundo o qual o Exmo. Sr. Fulano tem tantas acções disto ou daquilo. Essas contrapartidas podem ir desde o Estado contabilizar a valoração de acções no IRS até apropriar-se de parte das acções de cada empresa. Não nego os problemas práticos destas medidas, mas isto responde aos que perguntam, como o Rui Albuquerque, «que espécie de princípios morais se fundamenta para se arrogar a dispor de um património que não lhe pertence»(1). A justificação moral vem do contributo do Estado e da sociedade para que alguém possa controlar uma empresa só pela força de papeis e assinaturas. É legítimo cobrar esse serviço a quem dele beneficia, e em proporção ao benefício que dele retira.

O argumento da eficiência também não é sólido no caso geral. Num mercado competitivo, a concorrência entre os agentes económicos elimina os menos rentáveis e aumenta a rentabilidade média dos investimentos. Mas isto só nos adianta se houver concorrência efectiva, se a eliminação dos agentes menos eficientes for um custo aceitável e se o objectivo principal for a rentabilidade económica. Na prática, é frequente não se cumprir todas estas condições. Na distribuição da electricidade e nos transportes não há concorrência efectiva. No ensino e na saúde não é aceitável deixar falir os serviços que não dão lucro. E, nestes casos, o objectivo principal não é a rentabilidade económica. O sector privado é ideal quando o mais importante é o preço, mas quando queremos algo como educação, segurança, mobilidade ou saúde é preciso investimento público.

Se nos deixarmos hipnotizar pelo mantra “cortes sim, impostos não” vamos perder de vista o mais importante, que é estabilizar as finanças do país, as públicas e as privadas, da forma mais justa possível. E o mais justo é que quem tem mais pague a maior parte. Tanto faz se é a cortar nas parcerias público-privadas se é a aumentar nos impostos à riqueza. Os ricos que paguem a crise é chavão mas faz sentido. Faz sentido porque quem tem muito pode dar uma boa parte do que tem sem lhe fazer muita diferença, enquanto que de quem tem pouco não se pode tirar nada sem magoar. E faz sentido porque quem tem muito beneficia mais do Estado. A propaganda diz que é o contrário porque o mais óbvio são os gastos com saúde, subsídios e outras coisas que se dá aos pobres. Mas quase tudo o que os ricos têm depende da maquinaria do Estado. Sem o Estado a dar poder aos papelinhos ninguém poderia ser proprietário de acções, empresas e afins. Quem só é dono das calças que veste e da cama onde dorme, por muitas prestações sociais que receba, depende menos do Estado para ter o que tem.

Esta dicotomia arbitrária entre cortar na despesa ou aumentar a receita é distração. É claro que há muito desperdício no Estado, muita “gordura” a cortar, mas o critério fundamental não é o da despesa nem o da eficiência. O mais importante é em que direcção vai o dinheiro. Haver pessoas ineficientes a ganhar €600 por mês ou gastar-se para prevenir a doença e a miséria não é um problema, porque acaba por fazer mais bem do que mal. O problema é haver pessoas com grandes fortunas a contribuir menos do que deviam e as privatizações e parcerias que tiram a quem tem menos para dar a quem tem mais. É a isso que temos de estar atentos.

1- Blasfémias, as imoralidades do professor rosas

sábado, setembro 10, 2011

Interlúdio: música popular de Valinor.

De tempos mais felizes, antes da morte de Finwë.



Nuapurista kuulu se polokan tahti jalakani pohjii kutkutti.
Ievan äiti se tyttöösä vahti vaan kyllähän Ieva sen jutkutti,
sillä ei meitä silloin kiellot haittaa kun myö tanssimme laiasta laitaan.
Salivili hipput tupput tapput äppyt tipput hilijalleen.

Ievan suu oli vehnäsellä ko immeiset onnee toevotti.
Peä oli märkänä jokaisella ja viulu se vonku ja voevotti.
Ei tätä poikoo märkyys haittaa sillon ko laskoo laiasta laitaan.
Salivili hipput tupput tapput äppyt tipput hilijalleen.

Ievan äiti se kammarissa virsiä veisata huijjuutti,
kun tämä poika naapurissa ämmän tyttöä nuijjuutti.
Eikä tätä poikoo ämmät haittaa sillon ko laskoo laiasta laitaan.
Salivili hipput tupput tapput äppyt tipput hilijalleen.

Hilipati hilipati hilipati hillaa, hilipati hilipati hilipampaa.
Jalituli jallaa talituli jallaa tilitali tilitali tilitantaa.
Halituli jallaa tilituli tallaa tilitili tilitili tilitili tallaa.
Halituli tilitali jallati jallan, tilitali talitali helevantaa.

Rimpatirallaa ripirapirallaa rumpatiruppa ripirampuu.
Jakkarittaa rippari lapalan tulituli lallan tipiran tuu.
Jatsu tsappari dikkari dallan tittari tillan titstan dullaa,
dipidapi dallaa ruppati rupiran kurikan kukka ja kirikan kuu.

Ratsatsaa ja ripidabi dilla beritstan dillan dellan doo.
A baribbattaa baribbariiba ribiribi distan dellan doo.
Ja barillas dillan deia dooa daba daba daba daba daba duvja vuu.
Baristal dillas dillan duu ba daga daiga daida duu duu deiga dou.

Siellä oli lystiä soiton jäläkeen sain minä kerran sytkyyttee.
Kottiin ko mäntii ni ämmä se riitelj ja Ieva jo alako nyyhkyytteek.
Minä sanon Ievalle mitäpä se haittaa laskemma vielähi laiasta laitaa.
Salivili hipput tupput tapput äppyt tipput hilijalleen.

Muorille sanon jotta tukkee suusi en ruppee sun terveyttäs takkoomaa.
Terveenä peäset ku korjoot luusi ja määt siitä murjuus makkoomaa.
Ei tätä poikoo hellyys haittaa ko akkoja huhkii laiasta laitaan.
Salivili hipput tupput tapput äppyt tipput hilijalleen.

Sen minä sanon jotta purra pittää ei mua niin voan nielasta.
Suat männä ite vaikka lännestä ittään vaan minä en luovu Ievasta,
sillä ei tätä poikoo kainous haittaa sillon ko tanssii laiasta laitaan.
Salivili hipput tupput tapput äppyt tipput hilijalleen.

Letra daqui, cantada por Loituma. Adaptação do Quenya por Eino Kettunen.

sexta-feira, setembro 09, 2011

Parcimónia.

É possível que o Elvis esteja vivo, que as pirâmides tenham sido construídas por extraterrestres e que ocorram curas milagrosas. Não há qualquer contradição lógica que permita rejeitar categoricamente estas hipóteses. No entanto, não basta ser possível para se concluir que é verdade. Também é possível que o Elvis não esteja vivo, que as pirâmides não tenham sido construídas por extraterrestres e que ninguém se cure por milagre, pelo que aceitar uma alegação como verdadeira apenas por ser possível obriga a aceitar uma imensidão de hipóteses inconsistentes entre si.

Um primeiro passo é considerar as evidências, mas mesmo isso não resolve imediatamente o problema. Temos a certidão de óbito do Elvis, relatos históricos da construção das pirâmides e explicações médicas para muitas curas, mas é sempre possível conciliar qualquer hipótese com qualquer conjunto de dados invocando hipóteses auxiliares. Por exemplo, que a certidão de óbito foi falsificada por conspiradores, que os relatos da construção das pirâmides são parte do plano dos extraterrestres para esconder a sua presença e que tudo o que a medicina não sabe explicar é necessariamente milagre.

Portanto, mesmo dispondo de dados concretos, ainda é necessário critérios que permitam avaliar a verdade de uma alegação sem ficar soterrado numa derrocada de hipóteses inconsistentes. Além de factores como a fiabilidade dos dados, da fonte da alegação e das suas motivações, há um critério fundamental para lidar com o excesso de hipóteses possíveis. A parcimónia. Ou seja, preferir aquelas hipóteses que se adequam aos dados com o mínimo de hipóteses auxiliares sem fundamento independente.

É importante perceber que a parcimónia não é simplesmente a preferência pela hipótese mais simples. O objectivo deste critério é evitar a explosão de hipóteses que se pode compatibilizar com os dados por mera especulação, como teorias da conspiração, mistérios e afins. Por isso, o que importa é considerar a alegação enquadrada na rede de hipóteses auxiliares de que precisa. Por exemplo, alguém diz ter visto pardais em Lisboa. Aceitar esta alegação implica aceitar a hipótese auxiliar de haver pardais em Lisboa. Por outro lado, rejeitar esta alegação implica aceitar a hipótese auxiliar de que essa pessoa está enganada ou a mentir. Na ausência de indícios de que essa pessoa seja mentirosa ou incompetente para identificar pardais (e.g. ser invisual ou não saber o que são pardais), a primeira alternativa é preferível porque temos suporte independente para a hipótese de haver pardais em Lisboa. Em contraste, se a alegação fosse de ter visto um brontossauro, o principio da parcimónia recomendaria rejeitá-la como falsa porque há mais suporte independente para a hipótese da pessoa estar enganada ou a enganar do que para a hipótese de haver brontossauros em Lisboa. Considerando as alegações no contexto das hipóteses auxiliares que exigem é fácil ver, nestes casos, qual a alternativa mais parcimoniosa.

Isto vem a propósito de duas discussões paralelas num post recente. A Miriam Levi tem defendido, se bem percebo, a possibilidade de culturas antigas, como a dos maias ou a dos chineses de há dois mil anos, terem muito mais conhecimento do que aquilo que nós julgamos que tinham, ou até ter muito conhecimento que nós já não temos. «Por exemplo, os chineses sentem a pulsação no pulso (nos dois), são capazes de diagnosticar de forma bastante precisa. Infelizmente preferimos gastar muito dinheiro em testes químicos, invasivos ou ressonâncias atómicas que podem queimar ou favorecer o aparecimento de tumores...»(1). O problema é que a possibilidade dessas coisas funcionarem não basta para concluir que funcionam. Sem evidências concretas de que sentir o pulso pode substituir a ressonância magnética ou a TAC, a hipótese mais plausível, pelo critério da parcimónia, é que isto é só conversa.

A outra foi uma pergunta, crítica e desabafo do Carlos Soares, escrevendo de mim que «Critica a bíblia e o cristianismo, que são bastiões da [ciência], do método científico, da rejeição da superstição e da idolatria... Como é possível? Que é que tem contra os cristãos?»(1). Não tenho nada contra os cristãos, mas o critério da parcimónia leva-me a rejeitar o que esta religião alega. A alegação de que o universo foi criado por alguém inteligente implica haver um processo que permita tal criação e implica ser inteligente criar um universo destes, com milhares de milhões de anos e uma imensidão vazia totalmente hostil à vida excepto em pontinhos como este planeta. A alternativa, de tudo isto ser fruto de processos naturais sem inteligência, implica que tem de haver tais processos e, se bem que não seja mais simples por si, essas hipóteses auxiliares estão bem fundamentadas pela ciência moderna. Não sabemos tudo o que ocorreu desde o início do universo até à evolução da nossa espécie, mas sabemos muito acerca da maior parte do percurso. E se considerarmos as alegações adicionais que cada religião acrescenta, acerca do número de pessoas na substância divina, dos livros sagrados, das encarnações e preceitos morais, o que temos é precisamente a tal derrocada de hipóteses infundadas da qual só a parcimónia nos safa.

É possível que os cristãos tenham razão. É possível que as medicinas especulativas sejam melhores do que a medicina experimental. E é possível que o Elvis esteja vivo. Mas ser possível não basta e, pelo que sabemos, o mais certo é nenhuma destas ser verdade.

1- Comentários em Hepatoscopia

terça-feira, setembro 06, 2011

Penas pesadas.

Uma resposta comum à criminalidade é exigir-se castigos mais severos, e muita gente se lembrou disso a propósito dos motins em Londres. Se bem que isto faça sentido em alguns casos, não é nestes. Não tenho uma receita para resolver o problema dos gangs, do pessoal que parte lojas, estraga coisas e faz idiotices destas, mas é fácil ver que há coisas que não adiantam. Não vale a pena pôr alho à porta das lojas, nem contratar exorcistas nem agravar as penas.

Penas mais pesadas seriam úteis em alguns ilícitos, como os cometidos em empresas e instituições afins. Da maneira como isto funciona agora, a maioria destes é punida com multas pagas pela instituição, com pouco efeito em quem os comete e que, por isso, não desencoraja estas práticas ilícitas com as quais se ganha muito dinheiro. Nestes casos, uns meses de prisão efectiva seria um dissuasor eficaz. Mas isto é uma classe muito particular de ilícitos e crimes. São cometidos por pessoas informadas, normalmente com aconselhamento jurídico, que sabem bem o que arriscam e que o fazem com o intuito de maximizar os seus ganhos. Nessas condições, as penas podem ter um efeito significativo.

No outro extremo está o miúdo de 11 anos que foi condenado a dezoito meses numa casa de correcção por roubar um caixote do lixo durante os motins(1). Pela notícia, é evidente que o miúdo é uma peste. Uns dias antes tinha estado no tribunal por ter cortado um assento do autocarro, tentado pegar-lhe fogo e partido o vidro para fugir quando o motorista não o quis deixar sair. Não sei o que se pode fazer a um miúdo assim. Mas pô-lo dezoito meses com miúdos mais velhos a ainda piores não parece uma boa maneira de o educar nem uma forma eficaz de dissuadir o próximo miúdo de 11 anos que, no meio de um motim, tenha ideia de fazer outro disparate qualquer.

Um problema é que estas pessoas que formam gangs, partem montras e se amotinam têm uma visão do sistema judicial diferente daquela que têm os legisladores, os advogados e a grande parte da população que raramente tem problemas com a lei. Não vêem a lei como um sistema que protege a maioria punindo criminosos com castigos proporcionais ao crime. Vêem, e sentem, a lei como sendo a invenção de pessoas que estão melhor do que eles e que têm o poder de lhes estragar a vida de forma arbitrária e muitas vezes injusta. Sabem daquele que não fez nada mas ficou sem os dentes por estar no sitio errado quando veio a polícia de choque, do outro que já deu facadas em meia dúzia mas que nunca foi preso, de outros que ficaram sem casa por uma decisão qualquer na câmara e assim por diante. Para estas pessoas importa mais apanhar o juiz bem disposto do que a moldura penal do ilícito de que forem acusadas.

O outro problema é que as decisões de andar bêbado, drogado, partir montras e virar carros não são de quem está a optimizar racionalmente o resultado das suas escolhas avaliando custos e benefícios. São de quem, basicamente, nem se rala por estar a estragar a vida nem tem grande esperança de que a vida melhore. Não é provável que alterar a lei ou a sua aplicação contribua para prevenir estes crimes.

Durante milénios, aplicou-se penas terríveis aos mais diversos crimes. Até coisas que hoje nem consideramos crime, como ser vagabundo ou herege. Mas nem com o castigo de tortura até à morte se conseguiu uma redução significativa da criminalidade. Pelo contrário. A taxa de homicídios na Europa medieval, mesmo com torturas e pena de morte, era quinze vezes maior do que é em Portugal agora (2).

O crime de quem está bem, sabe o que faz e, fazendo as contas, vê uma possibilidade de ficar ainda melhor parece-me bastante sensível ao poder dissuasor das penas, que nem precisam de ser pesadas. Mas o crime de quem não vê possibilidade de ficar melhor, não tem como prever o que lhe vão fazer e já nem se rala com o que lhe acontece, esse não se consegue dissuadir com penas pesadas. Só se pode prevenir alterando essa situação.

Quem sugere penas mais pesadas para estes criminosos está a sobrestimar a capacidade do sistema penal para resolver este tipo de problemas. Esta criminalidade tem de ser combatida com alterações culturais, sociais e económicas, o que é tramado de fazer, demora tempo e vai precisar de muitas tentativas e muitos erros. Mas implementar uma solução ilusória e ineficaz é ainda pior do que não fazer nada.

1- Daily Record, English riots: 11-year-old boy handed 18-month sentence for stealing a bin
2- Wikipedia, Murder

domingo, setembro 04, 2011

Treta da semana: hepatoscopia.

A imagem abaixo mostra dois diagramas de fígado de carneiro. Os babilónios desenvolveram a prática de prever o futuro pelo fígado dos animais. Os etruscos chamaram haruspices a estes rituais, o que ficou auspices em Latim. Os babilónios catalogaram detalhadamente que pedacitos de fígado correspondiam a que divindades ou acontecimentos e ensinavam-no como parte da formação dos seus sacerdotes. Era uma tecnologia usada ao mais alto nível, até vedada ao povo comum, de tão poderosa que a julgavam ser.


Fígado

Diagramas de fígado de carneiro. À esquerda, da Babilónia, em barro (Archeolog) e à direita, uma variante etrusca, em bronze (Wikipedia).

No entanto, apesar do detalhe que nos chegou por diagramas como estes e relatos desta prática, ninguém se preocupou em explicar como é que descobriram isto. Nem babilónios, nem etruscos, nem romanos. O que é pena, porque o fundamental deste suposto conhecimento é precisamente a forma como os primeiros praticantes da arte teriam encontrado o pedaço de fígado correcto para cada deus. Como qualquer livro, história ou relato, estes diagramas só seriam conhecimento se houvesse uma relação evidente entre o seu conteúdo e os aspectos da realidade que pretendem descrever. Sem isto, não passam de uma curiosidade histórica.

Este problema não afecta apenas o fígado. Passa-se o mesmo com a astrologia, com o tarot, com as medicinas alternativas e toda a superstição em geral. Escreve-se resmas de papel descrevendo as energias positivas, os efeitos das constelações e o que cada carta prevê, mas ler isto é como ler o futuro no fígado do carneiro.

E é o que se passa com as religiões e as teologias. Alguns religiosos dirão que não, que a religião é acerca do sentido, do transcendente e coisas que não têm nada que ver com isto. Mas há dois problemas com este argumento.

O primeiro é que, historicamente, estas artes divinatórias eram religião. Eram os sacerdotes que praticavam astrologia, que previam o futuro nas entranhas dos animais e que sacrificavam animais e prisioneiros para apaziguar os deuses. A praticamente tudo o que chamamos superstição já houve quem chamasse religião. Em muitos casos, ainda há. E não há forma objectiva de distinguir entre as práticas que se reconhece religiosas e as que consideramos superstição. Como ouvi uma vez um antropólogo dizer a superstição é a religião dos outros.

Mas o segundo problema é o mais fundamental. Todas as religiões têm o equivalente aos diagramas dos fígados. Os livros sagrados, os dogmas, as alegações acerca do que é que cada deus quer, de quem era virgem, quem ressuscitou, quem recebeu ordens de um anjo, e assim por diante. E têm o equivalente aos videntes que interpretavam os fígados. Os sacerdotes, os teólogos, os peritos naquilo que, no fundo, não pode ser conhecimento por ser apenas alegações às quais falta evidências de corresponderem ao que pretendem representar.

É por isso que é tão importante perguntar como é que sabem o que dizem saber. Se perguntarem a um físico como sabe a idade das estrelas, ou a um bioquímico como sabe a estrutura do ADN, eles explicam com o detalhe que quiserem. Mais detalhe do que quiserem, provavelmente. O conhecimento é essa ligação entre as descrições e aquilo que estas descrevem, um encadeado de dados e inferências que se pode apreender e compreender. Sem mistérios insondáveis, sem saltos de fé, sem fontes autoritárias, poderes especiais ou revelações divinas.

Para conhecimento não basta apenas uma lista de alegações acerca da realidade. Para se saber é preciso também conseguir fundamentar essas alegações. Não pela fé mas, tal como a realidade, com algo que resista à dúvida. O resto é inventar deuses no fígado do carneiro.

sexta-feira, setembro 02, 2011

Evolução: zig-zag.

Sem indicar a fonte, o Mats traduziu parte de um artigo do Institute for Creation Research, segundo o qual a teoria da evolução terá atrasado a descoberta de que uma espécie de golfinho consegue sentir campos eléctricos fracos (1). A tese é de que os biólogos demoraram tempo a descobrir isto porque assumiram que os poros grandes que os golfinhos têm no focinho, que nesta espécie são sensíveis a campos eléctricos, eram estruturas vestigiais, heranças dos poros onde os mamíferos terrestres têm bigodes. No entanto, nem o Mats nem o artigo original referem qualquer publicação onde os criacionistas previssem que os golfinhos desta espécie tinham esta capacidade, e não é claro que haja vantagem em assumir que tudo foi criado por milagre. Seja como for, o Mats copia vários erros que merecem algum esclarecimento.

Primeiro, a noção de estrutura vestigial não é, ao contrário do que os criacionistas insistem, a de uma estrutura que não tem qualquer função. É, e sempre foi, a de uma estrutura que perdeu uma função importante original. Citando Darwin, «Um órgão servindo duas funções, pode tornar-se rudimentar ou totalmente inadequado para uma, mesmo a mais importante, e ainda ser perfeitamente eficaz a desempenhar a outra»(2). É este o caso. Os golfinhos nascem com bigodes nestes poros, só que os perdem a seguir. Terem-se adaptado à detecção de campos eléctricos não invalida que estes poros sejam vestigiais na sua função original de ter bigodes.

O Mats copia também a alegação de que a evolução convergente é uma desculpa para o que não encaixa na teoria de descendência com modificação e escreve que «não há explicação científica para a origem de um único mecanismo electro-receptor». No entanto, a convergência é uma consequência esperada da evolução. Se há vantagem reprodutiva em voar, em certas condições, é de esperar que várias linhagens desenvolvam essa capacidade, ainda que de formas tão diferentes como o morcego, a mosca, o pato ou o peixe voador. A restrição que a teoria da evolução impõe é que esta característica surja pela adaptação de características ancestrais em vez da criação milagrosa de estruturas novas. Daí que, destes, só o pato tenha penas, e o morcego fique sem braços para poder ter asas enquanto a mosca manteve as patas.

É isto também que observamos nos peixes e mamíferos com sensibilidade eléctrica excepcional. Enquanto que nos peixes há estruturas específicas dedicadas a sentir campos eléctricos, nos mamíferos estes sensores são, essencialmente, terminações nervosas simples inseridas na mucosa. O resultado é que enquanto os tubarões conseguem sentir gradientes eléctricos da ordem dos nanovolt por centímetro, os golfinhos só sentem gradientes mil vezes maiores (3).

Quanto a explicar porque é que isto é assim, quando consideramos todos os dados é mais fácil fazê-lo pela teoria da evolução do que pelo criacionismo. A ideia de que um deus omnipotente e inteligente criou estes animais não é consistente com o golfinho ter um sistema tão rudimentar quando comparado ao do tubarão. Nem com a enorme coincidência dos receptores eléctricos do golfinho não só se encontrarem onde estariam os bigodes mas até lá crescerem pêlos quando o golfinho é novo(4). Em contraste, os sensores eléctricos do tubarão nunca têm pêlos e estão distribuídos de forma a optimizar a detecção em vez de imitar bigodes.

Em traços gerais, a evolução de sensores eléctricos nos poros dos bigodes é relativamente fácil de perceber. Primeiro, logo à partida todos os neurónios são sensíveis a campos eléctricos. Desde não é preciso muita corrente para desestabilizar as membranas das células e fazer o neurónio disparar. Na nossa língua, onde a humidade e os sais facilitam a criação de correntes eléctricas, até um gradiente da ordem de um volt por centímetro é fácil de sentir e uma pilha de 9V já dói. Por isso, qualquer zona especialmente sensível a qualquer estímulo, como pressão ou temperatura, será também mais sensível à electricidade pelo simples facto de ter mais terminações nervosas. Especialmente dentro de água. Além disso, muitos peixes produzem campos eléctricos, uns mais fracos, para detectar outros peixes, mas outros bastante fortes e até letais. É por isso razoável que a sensibilidade aos campos eléctricos fosse útil aos antepassados destes golfinhos mesmo antes de estar tão aperfeiçoada que pudesse sentir os campos eléctricos dos camarões.

O criacionismo não prevê nem explica o que quer que seja, pelo que a única coisa que o criacionista pode fazer é atacar a teoria da evolução. O que é difícil, devido à quantidade de evidências a seu favor. Resta, por isso, a aldrabice. Neste caso, a de fingir que a evolução tem de ir sempre em frente, que nenhuma estrutura ancestral pode ser adaptada para uma função diferente da original ou que as pressões selectivas para uma característica, como bigodes sensíveis, não podem depois possibilitar a resposta a outras pressões selectivas, como para a sensibilidade a campos eléctricos. O Mats, talvez na única parte do post que é mesmo da sua autoria, diz que eu devo estar destroçado com isto dos golfinhos. Destroçado não diria, mas confesso que tenho pena que o Mats se dedique tanto a estas coisas mas que, ao mesmo tempo, faça um esforço tão grande para não perceber nada do que lê.

1- Artigo original: Evolution Delays Discovery of Dolphin Sensory Ability, e o plágio do Mats: Golfinhos: modelo evolutivo impede avanço científico. Professor Ludwig Krippahl destroçado.
2- Da “Origem das Espécies”, via Wikipedia
3- Damal et. al, Electroreception in the Guiana dolphin (Sotalia guianensis).
4- Dolphin Research Center, «When they are born, dolphins have whiskers on their rostrum. A dolphin’s whiskers are about one quarter inch long, and will fall out shortly after birth, as a result of water pressure». Normalmente não cito trechos nestas notas de rodapé, mas como quando se carrega com o botão da direita, nesse site, vem uma mensagem a dizer que é proibido copiar, não resisti a fazer-lhes um manguito. Ctrl-C, Ctrl-V, e vão se lá mas é lixar. Citar é um direito que não me vão roubar.