segunda-feira, janeiro 31, 2011

Mais sobre a educação.

O Miguel Panão apontou, e bem, que a expressão «Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos», que eu critiquei no post anterior, consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). E perguntou «Se consideram isto treta, acabaram de considerar os direitos humanos universalmente estabelecidos como treta, ou não?» (1). Não.

É legítimo discordar do terceiro ponto do artigo 26º da DUDH sem rejeitar o documento por inteiro. Mas nem isso é necessário. Esta expressão só é problemática se a interpretarmos como um direito fundamental dos pais. Porque, nesse caso, sugere ser um direito legítimo proibir que os filhos aprendam a ler ou conheçam a teoria da evolução, ou meter as crianças em escolas onde lhes ensinem que quem não adora o deus certo merece uma eternidade no inferno. Mas se enquadrarmos esta expressão no que vem antes, como «Toda a pessoa tem direito à educação» ou «A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais», é mais natural interpretá-la como dizendo que os pais podem escolher entre as opções que garantam estes direitos das crianças. Porque estes é que são os direitos fundamentais.

Assim, o que compete ao Estado garantir é o direito a uma educação que permita, a cada criança, desenvolver-se como membro pleno da sociedade e consciente dos seus direitos. Que lhe permita «tomar parte livremente na vida cultural da comunidade [e] participar no progresso científico». Que lhe dê realmente «liberdade de pensamento, de consciência e de religião», «liberdade de mudar de religião ou de convicção» e «liberdade de opinião e de expressão». Só depois de se garantir estes direitos fundamentais é que os pais podem escolher se querem ter os filhos no ensino público ou pagar o ensino privado. Mas isso já não é com o Estado, nem é coisa que os outros pais tenham obrigação de pagar.

1- Comentários em Treta da semana: confusão de direitos.

domingo, janeiro 30, 2011

Treta da semana: confusão de direitos.

Há quem defenda que o Estado deve subsidiar as escolas privadas para proteger o direito à educação e a liberdade de escolha. Pelo que tenho visto, isto é uma confusão. Por exemplo, para o Nuno Lobo, «A primazia dos pais no direito à escolha do género de educação dos filhos é um direito e liberdade fundamental»(1). Isto é treta. Fundamental é o direito a uma educação decente, mesmo para quem não tenha pais ricos. Esse curioso “direito à escolha do género de educação dos filhos” parece-se pouco com um direito fundamental. Tem mais ar de ser um disfarce rebuscado para ideias pouco claras acerca do papel do Estado e do objectivo das escolas privadas.

«Considere-se uma pessoa que ganha 1500 euros por mês. Ganha-os porque produz um serviço ou um produto com o seu esforço»(2), escreve o João Miranda. É o mito da produtividade, segundo o qual uma pessoa ganha dinheiro simplesmente porque produz algo. Na realidade, só ganha dinheiro porque lho dão. Mesmo que lho dêem em troca do seu trabalho, isto é fundamentalmente diferente do mito porque o dinheiro vem de uma rede de interacções com outras pessoas, o que exige condições especiais. Seja taxista, cabeleireiro, advogado ou escritor, nenhum profissional consegue vender o seu trabalho sem uma enorme infraestrutura económica, social, legal, e mesmo física, desde a electricidade às estradas e esgotos, que permita essas transacções.

O João Miranda continua: «Esta pessoa tem uma determinada liberdade. Dos 1500 euros pode tirar uma parte para para meter o filho numa escola privada. Acontece que o Estado cobra metade desses 1500 euros em impostos e ao fazê-lo retira a dita liberdade à pessoa em causa.» Isto é ver as coisas ao contrário. Sem impostos ou Estado, nem ganhava os 1500 euros, nem tinha onde os gastar. A única liberdade que teria seria esgaravatar a terra para não morrer à fome.

Se os nossos impostos fossem um pagamento pela educação dos nossos filhos, seria razoável pedir um reembolso se puséssemos os miúdos na escola privada. Mas não é esse o caso. O Estado não é um negócio de vender educação a quem pagar. O papel do Estado, e dos impostos, é garantir as condições necessárias para podermos vender o nosso trabalho, ganhar dinheiro e ter a liberdade de o gastar. Uma dessas condições é a educação ser acessível a todos, mesmo que não a possam pagar. Quem julgar que só lhe interessa a educação dos seus filhos, lembre-se que a sociedade em que vive é composta, principalmente, pelos filhos dos outros.

Além destas confusões acerca de qual é o direito à educação, de quem é esse direito, e de qual o papel do Estado e dos impostos nisto tudo, há também um mal-entendido acerca do sector privado. Tanto o ensino privado como o ensino público são um direito, mas não são o mesmo direito. O ensino público justifica-se pelo direito à educação, que deve ser acessível a todos, ao passo que o privado resulta do direito de cada um gastar o seu dinheiro como entender. Quem quer pagar colégios finos para os seus filhos tem esse direito, e quem montar colégios finos tem o direito de aproveitar a procura para ganhar algum. Isso não é o direito à educação, mas apenas o direito de comprar e vender.

Por isso, o papel do Estado no ensino privado deve ser somente regular o negócio para que não se prejudique as crianças. De resto, não faz sentido subsidiar o lucro de privados com dinheiro público, seja com vouchers, contratos de associação ou outro esquema qualquer. Esse dinheiro faz falta para garantir o direito à educação.

1- Nuno Lobo, 29-1-2011, Reducionismos, mentiras (muitas), e enganos
2- João Miranda, 29-1-2011, pessoas e liberdade de escolha

sábado, janeiro 29, 2011

Interoperabilidade metafórica.

Acerca do uso de normas abertas na Administração Pública (AP), o Luís Amaral alega haver uma «confusão entre conceitos, como o do "software livre" (vulgo, open source) e o das "normas abertas". De facto, são conceitos que estão relacionados, mas um não implica necessariamente o outro.»(1) Não é bem assim. É que, na verdade, o código aberto implica necessariamente normas abertas. Porque se disponibilizam o código fica automaticamente acessível qualquer norma que lá esteja implementada.

Isto é importante na prática porque as duas normas abertas mais usadas para documentos de texto e folhas de cálculo, a OOXML da Microsoft e a ODF da OASIS, omitem aspectos como, por exemplo, os programas (“macros”) que se pode incluir nesses documentos. Um documento do MsOffice com estas funcionalidades não pode ser aberto por outras aplicações que não sejam da Microsoft, e nem há garantias de ser compatível com versões futuras criadas por essa empresa. Quando o Luís Amaral afirma que «Qualquer tipo de software pode ser interoperável (e, nesse sentido "aberto") com outras normas e com outro software» não só deturpa o sentido de “aberto” como ignora o problema mais importante.

É claro que o software proprietário pode usar normas abertas e ser interoperável com o software livre. O problema é que também pode não ser. Basta gravar uma macro num documento Excel ou Word para se perder a interoperabilidade. As normas abertas em software proprietário são uma treta porque, na prática, não dão garantias nenhumas. A empresa faz a norma, diz que é aberta, e depois acrescenta funcionalidades, em formatos proprietários, que continuam a prender os utilizadores ao seu esquema de licenciamento. Em contraste, com o software de código aberto isto não pode acontecer. Quem usar o LibreOffice, OpenOffice, KOffice ou qualquer programa de código aberto nunca terá este problema porque, mesmo que esse programa implemente funcionalidades únicas, essa implementação está acessível no código fonte e pode ser incorporada noutras aplicações se for necessário.

Segundo o Luís Amaral, não se deve usar software livre e aberto na AP «a curto/médio prazo» por causa do «custo dos serviços de suporte, da formação dos utilizadores e, no limite, o custo das funções de gestão de informática» Isto não faz sentido. Gerir umas dezenas de computadores com o mesmo kernel Linux é muito mais simples do que gerir o inevitável zoológico informático de Windows XP, Vista e 7 que se vai acumulando porque o equipamento antigo não funciona com os sistemas operativos mais inchados e a Microsoft não autoriza que se use os sistemas operativos antigos em computadores novos. O apoio técnico a software que qualquer empresa pode instalar, distribuir e configurar também não vai ser mais caro do que o apoio técnico monopolizado por distribuidores autorizados de software proprietário. E a formação dos utilizadores não é um custo. É uma medida de redução de custos.

A entrega do acórdão do caso “Casa Pia”, por exemplo, foi adiada várias vezes por um “problema informático”. Quando o problema é mesmo informático, resolve-se num instante levando os documentos para outro computador. Mas suspeito que, neste caso, o problema “informático” tenha ocorrido entre a cadeira e o teclado. O mais certo é os senhores juízes não saberem criar um documento grande e, tendo formatado tudo com enters e espaços, quando mexeram numa ponta desmanchou-se o resto. “Poupar” na formação dos funcionários não é boa ideia.

Apesar de todas estas asneiras, há um erro ainda pior no texto do Luís Amaral. Ironicamente, considerando as referências que faz às confusões dos outros. Como muita gente, o Luís Amaral parece julgar que o computador inclui a área de trabalho, pastas, programas e afins como se isso fizesse parte da máquina. Assim, julga que a interoperabilidade é apenas poder levar os documentos de um lado para o outro. Mas o computador é só a máquina. Todo o software, desde o sistema operativo ao jogo de cartas, é o equivalente electrónico da posição das contas do ábaco. Os programas, os ficheiros, as pastas, os botões e as janelas não são entidades reais. São metáforas. São uma ilusão criada por uma máquina que só faz contas com zeros e uns.

Por isso, a interoperabilidade do Luís Amaral também é só metafórica, limitada a poder levar o documento de texto ou a folha de cálculo para outro computador, mas tendo de o editar lá com o programa e ambiente que o vendedor ditar. A interoperabilidade a sério é mais que isso. Inclui a liberdade de usar o mesmo software, com as mesmas configurações, nos mesmos documentos ainda que o equipamento seja diferente. E isso só se garante com software livre e de código aberto. Só esse pode ser usado sem restrições impostas pelo distribuidor, livremente adaptado ao equipamento que se tiver, e sem ter de se pagar licenças a empresas privadas só para poder ter o computador novo a funcionar de forma igual ao do computador que se avariou. É essa interoperabilidade que a AP tem a obrigação de garantir. Qualquer alternativa é desperdiçar o dinheiro dos impostos em monopólios privados e criar mais dificuldades a longo prazo.

1- Luís Amaral, DN Opinião, 22-1-2011, Normas abertas e interoperabilidade, via o blog da Paula Simões.

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Resumindo.

O post sobre o aborto, há dias, levou a uma longa discussão onde ficaram perdidas as ideias mais importantes. A primeira é o valor do abortado. Perde-se sempre muito tempo a discutir se o embrião ou feto têm estatuto de pessoa, se são humanos, se têm a mesma “natureza” que nós e assim por diante. Isto pode ter interesse para a semântica ou para a taxonomia, mas, para a ética, não importa.

Coisas como cogumelos, colheres e carraças, cuja existência é desprovida de qualquer subjectividade, valem apenas pelo valor que outros, sujeitos, lhes derem. Nesses casos, a classificação de “alimento”, “talher” e “peste” pode ser relevante. Mas a existência de um chimpanzé, golfinho ou H. sapiens é diferente. O valor dessa existência para esse sujeito é mais importante do que o valor que lhe seja imputado por outros. É esse valor intrínseco que está em causa no aborto, onde a escolha é entre matar ou deixar existir algo que, durante décadas, viverá como nós. O rótulo que lhe colamos, e toda a discussão do “estatuto” ou “natureza” do feto, são eticamente irrelevantes.

Uma objecção é que isto não conta porque, no instante do aborto, o abortado não tem subjectividade. Isto é um erro fundamental porque a ética não visa só o que é mas, principalmente, o que deve ser ou o que devia ter sido.

A melhor altura para avaliar um acto é antes de o cometer e, nesse momento, as consequências são todas potenciais. Estão todas no futuro. Se estimamos que daqui a duzentos anos os contentores de plutónio que atiramos ao lago vão vazar, não podemos alegar que o acto é eticamente neutro só porque as pessoas que isto vai matar ainda não nasceram. E mesmo quando avaliamos um acto em retrospectiva, a ética exige sempre a comparação de alternativas forçosamente hipotéticas. Para decidir se foi correcto desligar a máquina há que pensar no que aconteceria ao paciente se não o tivéssemos feito. Se nunca iria sair de coma, então não havia nada a fazer. Mas se era só questão de tempo até que saísse feliz da vida, então terá sido um erro matá-lo. O valor ético dessa alternativa não pode ser descartado só por o paciente estar morto depois de o matarmos ou em coma quando o fizemos.

Porque considero que qualquer sistema ético tem de incluir estes dois princípios – a subjectividade dos valores e a comparação das alternativas – tenho de concluir que a diferença entre abortar o feto e deixá-lo viver é um factor importante.

O que não implica que seja, necessariamente, o mais importante. Não há valores absolutos, e nem sequer a vida humana é um valor incondicionalmente superior aos outros. Pode ser legítimo matar em defesa da própria vida, da integridade física e da liberdade e, em muitas situações, o valor da liberdade da mãe é maior que o valor da vida do filho. Em casos de violação e problemas graves de saúde, por exemplo.

Na verdade, só me ocorre um caso em que o valor da vida do abortado é claramente superior aos restantes: quando a gravidez resulta de um acto voluntário e consciente. Nesse caso, a liberdade dos pais é condicionada pela sua responsabilidade. E se bem que, por limitações biológicas, só a mulher é que corra o risco de engravidar, este facto é suficientemente conhecido para não desresponsabilizar ninguém das consequências dos seus actos.

Finalmente, há a objecção de que esta forma de avaliar a vida humana leva a um resultado inconveniente quando aplicada à contracepção porque, nesse caso, a decisão também elimina uma vida que de outra forma iria existir e ter valor para quem a viveria. É verdade, mas a objecção confunde o valor subjectivo das consequências com o valor ético do acto.

Para avaliar eticamente um acto precisamos de considerar também quanto o acto contribui para as consequências que dele seguem. Matar uma criança não é eticamente equivalente a deixar uma criança morrer, apesar de, em ambos os casos, estar em jogo o valor que essa vida teria para quem a vivesse. Enquanto que matar uma criança é a causa principal da sua morte, não ir salvar nenhuma de seis milhões de crianças que vão morrer à fome este ano é apenas um dos muitos factores que contribuem para a morte de cada uma delas. A relação causal entre o preservativo e cada um dos filhos que eu poderia ter tido – todas as combinações dos meus espermatozóides com todos os óvulos de potenciais parceiras – é muitas ordens de grandeza mais ténue ainda. Em contraste, o aborto é, deliberadamente, a causa principal da morte do feto.

No entanto, é verdade que a minha abordagem tem implicações inconvenientes, pelo menos na sociedade que temos agora. A contracepção e a investigação em células estaminais não são problema mas, se avaliamos o valor de uma vida pelo seu valor para quem a vive, em vez de pelo rótulo que lhe colamos, então quem mata golfinhos ou chimpanzés por dinheiro merece um tratamento semelhante ao de um assassino a soldo, e a tortura de animais em touradas e matadouros também é inaceitável. Mas, como a ética não se guia pela mera conveniência, isto não contradiz os fundamentos em que me baseio – a subjectividade dos valores e a necessidade de comparar as consequências esperadas – e não é razão para os rejeitar. Até porque não vejo como se pode ter um sistema ético sem esses princípios.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Pinaker.

Tenho andado a fazer um programa para me ajudar a organizar os livros. O objectivo é criar um ficheiro com os dados dos livros e depois, noutro programa que ainda está na calha, usar essa informação para anotar fotografias digitais das prateleiras. Assim posso saber onde tenho cada livro e facilmente reorganizar as coisas conforme preciso.

Para evitar a seca de copiar títulos, autores e editores de centenas de livros, o Pinaker lê os códigos de barras para obter o ISBN e liga-se a serviços na Internet de onde se pode obter os dados necessários. Assim, basta fotografar os códigos de barra com uma câmara digital e processar as imagens. Está feito de forma a ser fácil criar scripts para adicionar fontes de dados conforme necessário. Neste momento, usa o ISBNdb* e a Base Nacional de Dados Bibliográficos. Há também um script para o Google Books, mas é só experimental e só serve para obter os URL das imagens das capas.

Para quem quiser experimentar, na minha página puz os binários para Windows e Debian, e um guia resumido em PDF. E no Github está o código fonte e instruções para compilar (é preciso o Lazarus).

Obrigado à Paula Simões pela ideia, requisitos, testes e fontes para os dados, e ao Marcos Marado pelas correcções, dicas para para compilar no Linux e o pacote Debian. Apesar do Marcos já ter feito tudo o que é preciso para criar o pacote de instalação, eu ainda não tive tempo de perceber o que aquilo faz. Por isso é culpa minha que os binários para Linux se instalem com um script foleiro. Mas prometo melhorar isto em breve.

* Para este é preciso registar-se primeiro para obter uma chave de acesso, mas é gratuito.

domingo, janeiro 23, 2011

Treta da semana: o grande c...

O Grande © é um «concurso de criatividade para as escolas» e tem como missão «enraizar o valor da criatividade e da diversidade da obra original, como fundamento para a protecção concedida pelo Direito de Autor». No vídeo introdutório*, a ministra da cultura esclarece o que se pretende proteger: a nossa herança cultural e os conteúdos culturais produzidos para meios digitais (1). A “área pedagógica” apresenta aos alunos conceitos chave da cultura e da protecção da herança cultural, tais como «Aproveitamento da obra contrafeita ou usurpada», «Autorização», «Contrafacção», «Direitos de carácter patrimonial» e «Poder de impedir».

Isto não protege a cultura. Pelo contrário. A cultura é algo que se partilha, ensina, aprende, transforma e interioriza. É algo que, desde crianças, flui livremente dos outros para nós e de nós para os outros. O download e a Internet não ameaçam isto. Ameaça é até a ministra da cultura julgar que se deve regular o usufruto e conceder direitos de carácter patrimonial sobre a cultura. É por causa destas ideias que, só na Europa, se estima haver três milhões de livros que não podem ser editados porque não se sabe quem detém os tais direitos patrimoniais (2). Por causa da “protecção” que proíbe a cópia, nos EUA há cerca de duzentos mil filmes antigos, de grande valor cultural mas sem valor comercial, que não podem ser preservados e vão acabar perdidos para sempre quando o celulóide apodrecer (3). A necessidade de acções “pedagógicas” como a deste grande C vem precisamente de não ocorrer a ninguém que seja preciso proteger a cultura de quem a quer partilhar com os outros ou usufruir dela. A ninguém que pense com a cabeça, é claro. Quem pensa com os bolsos chega a conclusões diferentes.

A ênfase desta “pedagogia” limita-se a partes seleccionadas do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, omitindo alguns pontos importantes. Por exemplo, o disposto no ponto 2 do artigo 75º, segundo o qual é lícita, mesmo sem autorização, «a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos». Ou o artigo 189º, que esclarece que nada do que consta no título dos direitos conexos abrange o uso privado.

Já para não falar de outros elementos legislativos com prioridade sobre este código. Como o ponto 1 do artigo 73º da constituição Portuguesa, «Todos têm direito à educação e à cultura.» Ou o ponto 3, «O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultura». Ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no ponto anterior a estipular que «Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria», estabelece primeiro que «Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.» A protecção dos interesses comerciais faz sentido no contexto do comércio, mas a cultura não é o negócio e essa regulação só é legítima se não interferir com o direito de usufruir livremente das obras publicadas. Um direito que é de todos.

É um erro pôr o autor num pedestal como se fosse a única fonte da nossa cultura. Por um lado, porque ninguém cria sozinho. Toda a criatividade é transformativa e toda a obra é derivada. E, por outro lado, porque a criatividade não está só em quem pinta, compõe ou escreve. Se quem lê não criasse, das marcas no papel, uma história viva na sua mente, ninguém seria reconhecido como escritor. O mesmo para a música, filmes, ciência ou filosofia. A arte não começou quando um primeiro génio rabiscou a parede ou batucou num tronco. Começou quando todos viam no desenho o boi que tinham caçado ou dançavam ao som da música. Por isso, não faz sentido tirar direitos a todos só para dar direitos extra aos autores. E, menos ainda, aos distribuidores, principalmente agora que a distribuição é trivial.

O prémio deste concurso até ilustra bem o parasitismo inútil destas organizações. «O prémio em cada categoria consiste na divulgação da(s) obra(s) vencedora(s) [. A] AGECOP – Associação para a Gestão da Cópia Privada, mediante autorização escrita dos autores das obras, reserva-se o direito de expor, publicar, utilizar ou por qualquer forma explorar os trabalhos recebidos [...]. Esta autorização é concedida mediante aceitação dos termos e condições do formulário de aceitação electrónico que faz parte integrante do formulário de inscrição. Não serão aceites inscrições que não sejam acompanhadas da respectiva autorização.»(4) Dá mesmo vontade de concorrer...

Em 1710, os editores ingleses exigiram um monopólio legal sobre as obras impressas. O seu argumento foi que, sem esse monopólio, não iriam imprimir livros. O propósito dos direitos patrimoniais e dos monopólios sobre a cópia foi sempre subsidiar os distribuidores (5), que nessa altura ainda eram suficientemente honestos para o admitir. Gananciosos, mas honestos. Hoje já só lhes resta a ganância. Dizem que querem proteger a nossa criatividade e a nossa cultura. Cultura, o grande c. O que eles querem é dinheiro.

*Parece haver outros vídeos, da ministra da educação, do Pinto Balsemão e assim. Mas, talvez alguma restrição de licenciamento, nem com o Opera nem com o Firefox os consegui ver...

1- Grande ©, O que é [um grande C]?
2- Resource Shelf, 2010-7-2, New Report: 3 Million Orphan Books In Europe – EC Report
3- Duke, Law, CSPD: Access to Orphan Films
4- Grande ©, Regulamento
5- Question Copyright, The Surprising History of Copyright and The Promise of a Post-Copyright World, via Falkvinge on Infopolocy

sexta-feira, janeiro 21, 2011

Candidatos

No Domingo vou ajudar a eleger o Presidente da República, do Conselho de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas. Cargos que, ao que me parece, não me vão afectar muito. Mas vou votar à mesma. A democracia é daquelas coisas a que não se dá importância até ao dia em que, precisamente por isso, nos vemos sem ela. A questão é em quem. Se bem que, neste tipo de eleições, o voto em branco também conte para forçar a segunda volta, não vejo grande vantagem nisso. A oferta é fraquita, mas é o que se arranja. O melhor é despachar isto e pronto.

Cavaco Silva.
A favor: já anda nisto há muito tempo, e tem muitos contactos e experiência.
Contra: já anda há muito tempo nisto, tem muitos contactos e experiência, e é o que se tem visto.
Veredicto: nah...

Fernando Nobre.
A favor: parece-me ser o menos político dos três, tem um percurso louvável de activismo cívico e humanitário e parece ser um tipo porreiro.
Contra: a musiquinha irritante no site da campanha e a campanha ser só o Fernando Nobre. Não tem nada acerca do que ele quer fazer e, se bem que o Presidente não faça grande coisa, penso que era bom ter algo mais substancial do que dizer que é boa pessoa. Além disso, parece-me muito desajeitado a discursar, que ainda por cima é a função principal do Presidente.
Veredicto: era uma boa aposta para limpar a politiquice do cargo, se desse confiança de servir para Presidente. Infelizmente, meh...

Manuel Alegre.
A favor: não é o Cavaco Silva.
Contra: não tem cara de presidente. O que não é grande defeito mas quando já se está no fundo do tacho qualquer detalhe conta. Pior que isso, tem o apoio do PS e do BE. É verdade que me alinho, aproximadamente, com esses partidos de esquerda. Mas ando tão desiludido com os partidos em geral que mais valia não darem apoia nenhuma*.
Veredicto: Parece que lá terá de ser este. O que não fará grande diferença, porque deve ganhar o Cavaco outra vez. Mas pelo menos não será por culpa minha.

* Não é gralha. É chalaça.


Correcção: julgava que o voto em branco contava nestas, mas não conta. Segundo o número 1 do Artigo 10º da Lei Eleitoral do Presidente da República:

«Será eleito o candidato que obtiver mais de metade dos votos validamente expressos, não se considerando como tal os votos em branco.»

Obrigado ao João Vasco pelo aviso.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Atalhos.

Já vi em vários sítios a notícia de um casal australiano que decidiu abortar dois gémeos, rapazes, porque querem uma filha. A possibilidade de abortar por razões triviais é um problema para a defesa do aborto a pedido*. Quando começou o processo de referendar isto até que a lei fosse alterada, fui pressionado a não publicar um post que ofendia outro participante desse blog por mencionar que alguém poderia abortar para não estragar as férias ou não ter de comprar outro vestido. O episódio contribuiu para criar este blog, onde posso ofender à vontade, e os exemplos não são meramente hipotéticos. A lei que agora temos obriga o SNS a pagar o aborto até por razões destas, e os números sugerem que muitos abortos não se devem a situações de extrema necessidade. «No HSM, duas em cada três mulheres não aparecem à consulta de planeamento familiar que, nos termos da lei, deve ocorrer no prazo de um mês após o aborto. […] 433 mulheres que fizeram IVG em 2008 já tinham quatro abortos no seu historial»(2).

O problema é que só se pode justificar o aborto por razões económicas, sociais ou de planeamento familiar assumindo que a vida do abortado vale muito menos que a vida de um ser humano. Apesar de ser humano. E, nesse caso, vale tudo. É uma premissa frágil porque, por um lado, qualquer falta que tenha por ser feto ou embrião será meramente temporária e, por outro, só muito depois de nascer é que adquirimos as capacidades cognitivas e a autonomia características de uma pessoa. O que distingue um humano de um cão não surge sequer perto das dez semanas de gestação. Escolhendo exemplos dramáticos de miséria e coerção pode-se disfarçar a fragilidade da premissa, mas uma mulher abortar rapazes porque quer uma rapariga ou já ir no quinto aborto e não querer saber de contraceptivos mostram o erro do aborto como um direito incondicional.

Em grande parte, a posição irracional do aborto como um direito é uma reacção à posição igualmente irracional do aborto como um crime indesculpável, que nem permite o aborto a uma miúda de nove anos que foi violada, alegando que vida humana é “sagrada”. Ambos os extremos cometem o erro de reduzir o valor da vida a um só factor. A vida não vale pelo nosso estado às dez semanas de gestação nem pela bandarilha de sagrado que algum deus nos tenha cravado. A vida vale por tudo o que nos forma, que nos torna no que somos, por cada momento e por todos os momentos que vivemos. Qualquer vida. Umas valem mais do que outras, conforme as capacidades e possibilidades daqueles que as vivem, mas não se justifica traçar fronteiras arbitrárias entre espécies, idades, sexos ou raças. A prova do pudim está no sabor, e o valor da vida está em vivê-la.

Isto priva-nos dos atalhos convenientes das dez semanas e do sagrado, que permitem resolver tudo sem pensar mais no assunto. Mas estes atalhos são falsas soluções. O problema exige ponderar os valores das várias vidas em jogo. O valor da autonomia, por exemplo. Se me raptarem para dar transfusões de sangue a um violinista famoso (3) eu tenho o direito de arrancar os tubos e fugir mesmo que isso o mate, e mesmo que o violinista seja pessoa e inocente do sucedido. Da mesma forma, uma mulher violada tem o direito de abortar. Não pode ser obrigada àquela situação. Em contraste, se tenho relações sexuais com uma mulher e ela engravida não tenho o direito de “abortar” a paternidade e dizer que não é nada comigo. Quem opta por ter relações sexuais assume responsabilidades e, no mínimo, abortar por conveniência devia ser tão imoral (e ilegal) como não pagar pensão de alimentos.

Outro problema é a selecção de características congénitas. Abortar um feto por ter o sexo errado é claramente imoral. Mas abortar um feto que sofra de uma doença incurável pode não o ser. Porque além do impacto negativo nas pessoas que irão cuidar dessa criança, essa vida vale menos. Isto pode chocar, mas é a realidade. Não é um juízo arbitrário de quem proclama, de fora, que vale menos porque tem dez semanas ou vale mais porque tem um carimbo divino. É algo que se pode constatar imaginando, por exemplo, viver sem braços nem pernas ou com uma deficiência mental profunda. É evidente que uma vida dessas vale menos que a vida de uma pessoa saudável.

Neste caso dos australianos, os fetos foram abortados porque a lei proíbe os pais de escolher o sexo dos filhos mas permite abortar quando não são do sexo que eles querem. O que se alega, como fundamento, para proibir a escolha do sexo – e uma data de outras coisas como, por cá, a reprodução medicamente assistida para mulheres solteiras – é o princípio da não-instrumentalização da pessoa humana (4). Outro atalho da treta.

As pessoas têm filhos em dois tipos de situação. Por acidente, ou porque ter um filho é um instrumento para algum propósito. Proibir que uma mulher solteira tenha ajuda médica para engravidar, ou que um casal escolha os espermatozóides pelos seus cromossomas, em nome da “não-instrumentalização” não faz sentido. É um disparate como o do carácter sagrado da vida ou a bitola dez semanas. Em vez de resolver os problemas, estas simplificações grosseiras apenas impõem preconceitos e geram problemas ainda maiores.

* Neste caso, a decisão não é tão leviana quanto parece. A mulher ficou traumatizada com a morte da primeira filha já tiveram vários rapazes enquanto tentavam ter uma rapariga. Agora pedem uma alteração à lei que proíbe a selecção do sexo dos filhos (1). No entanto, também está longe dos exemplos dramáticos da miséria e pressões sociais a que se recorre para justificar o aborto SCUT.

1- Herald Sun, Couple aborts twin boys for girl
2- Público, 15-7-2009, Segundo aborto devia ser a pagar, diz director do serviço de ginecologia de Santa Maria
3- Judith Jarvis Thomson, 1971, A Defense of Abortion, Philosophy & Public Affairs, Vol. 1, no. 1
4- CNECV, Relatório – parecer sobre reprodução medicamente assistida (3/CNE/93)

terça-feira, janeiro 18, 2011

Hoje, visto de ontem.



Subestimaram bastante o progresso tecnológico, mas as ideias estão lá. Webcams, compras online, internet banking, email e assim por diante. O mais engraçado é não terem imaginado as alterações sociais que iriam acompanhar essa tecnologia.

domingo, janeiro 16, 2011

Treta da semana: O papel. Qual papel?

Em 1998, a senhora Maria Adelaide Carvalho Monteiro, mãe do então secretário de Estado do Ambiente, José Sócrates, comprou um apartamento no edifício Heron Castilho. Apesar da sua pensão declarada de 250€ mensais, pagou a pronto, a uma empresa offshore, esse apartamento com um valor tributável de 224,000€ (1). A lei obriga o registo destes negócios em escritura pública, só que o papel com os detalhes desta curiosa transacção “perdeu-se” (2).

Na urbanização da Coelha, em Albufeira, a casa de Aníbal Cavaco Silva parece ter sofrido de um problema parecido. Têm azar, os políticos. Talvez pela complexidade do negócio, envolvendo a SLN, empresas offshore, membros do gabinete de Cavaco Silva com acções nessas empresas, falências e até dois dinamarqueses, acabou por se perder os papeis todos. Nem sequer a matriz da casa encontram registada (3).

O caso Freeport também deu muito papel. Em vários sentidos. E quando há muito papel a circular há sempre coisas se perdem. Como o tempo para fazer 27 perguntas (4). Já se sabe como é, mete-se uma coisa e outra, num dia não dá jeito, noutro é preciso fazer compras para as férias e, no fim, não dá para perguntar ao primeiro ministro se tinha recebido o arguido em casa ou apoiado o primo nos negócios em Alcochete (5). Instauraram então um processo à directora do DCIAP e aos procuradores que investigaram o caso Freeport por violação dos deveres de zelo. Curiosamente, não foi por lhes ter faltado fazer as perguntas. Foi porque incluíram no processo o papel com as perguntas que ficaram por fazer, o que «é visto como uma mancha na imagem de Pinto Monteiro e do ex-vice-procurador-geral da República Mário Gomes Dias.»(6). Podemos ver assim a chatice que há quando os papéis não desaparecem.

A JP Sá Couto, vencedora do concurso para fornecer o Magalhães por ser a empresa que melhor preenchia o requisito “Chamar-se JP Sá Couto” (7), foi a tribunal em 2008 por, alegadamente, defraudar o Estado português em de cinco milhões de euros num esquema fraudulento de vendas em “carrossel”(8). Neste esquema, empresas em vários países europeus vendem bens entre si aproveitando a isenção de IVA em algumas transacções internacionais para não só evitar pagar o imposto como até pedir ao Estado o reembolso por impostos que ninguém pagou (9).

Passado um ano e meio dão por encerrado o processo «por não ser possível, em tempo útil, apurar a situação tributária dos implicados, o que impede a produção de prova.» (10). Pudera. Um ano e meio é muito pouco tempo para saber se pagaram o IVA. É preciso o papel, mas qual papel, o papel, mas qual papel, o papel.

Como dizem os criacionistas, há coisas que não se explicam por processos naturais, sem propósito ou intenção. Mas eu não iria ao ponto de lhe chamar design inteligente. É mais a esperteza saloia de quem nos toma por parvos. E safa-se. O que não abona muito em nosso favor...

1- Público, 31-1-2009 Mãe de Sócrates comprou a pronto apartamento a “offshore” e declarou menos de 250 euros
2- Sol, 1-5-2009, Documentos da casa de mãe de Sócrates perderam-se no notário
3- Esquerda.net, 15-1-2011, , E Observatório do Algarve, 15-1-2011, Albufeira: Cavaco Silva, Oliveira e Costa e Catroga são vizinhos na praia da Coelha. Via Esquerda Republicana
4- DN, 29-6-2010, MP sem tempo para fazer 27 perguntas a Sócrates
5- TVI24, 29-7-2010, Freeport: saiba que perguntas ficaram por fazer a Sócrates
6- RR, 29-12-2010, Processo disciplinar a Cândida Almeida
7- RR, 29-5-2010, Governo favoreceu JP Sá Couto, diz Comissão de Inquérito
8- Público, 7-10-2010, Empresa que produz o computador “Magalhães” vai a tribunal
9- Ricardo Carvalho, A “Fraude Carrossel” no IVA, (pdf).
10- Sapo Tek, 14-1-2011 Justiça arquiva processo contra JP Sá Couto. Via o FriendFeed do Marco Neves.

Editado a 17-1 para corrigir SNL para SLN, se bem que, palhaçada por palhaçada, antes o Saturday Night Live que a Sociedade Lusa de Negócios. Obrigado ao leitor que me apontou a gralha.

sexta-feira, janeiro 14, 2011

Utilitarismo.

O utilitarismo é muitas vezes mal compreendido, talvez pela ideia infeliz de que procura o que é melhor para todos. Infeliz porque sugere que “o melhor” é igual para todos e faz confundir a utilidade com a felicidade, o prazer ou sensações afins. É preferível pensar no utilitarismo como procurando o melhor para cada um. Apesar de “todos” ser o conjunto dos “cada um”, assim fica mais claro que a utilidade não é um padrão uniforme mas sim o critério de cada pessoa.

A utilidade mede quanto algo ajuda cada um a atingir os seus objectivos. Como não temos todos os mesmos objectivos, o que é útil para um pode não o ser para outro. Escalar o Evereste tem grande utilidade para um aficionado do montanhismo mas utilidade negativa para quem almeje uma vida longa e confortável. Esta medida não pode ser convertida num critério uniforme como a felicidade, a realização pessoal ou o prazer porque nem sempre são esses os objectivos. Pode haver quem escale o Evereste para se sentir realizado, mas pode haver outros para quem essa sensação é secundária e o objectivo principal seja escalar a montanha. Porque está lá. Se houvesse comprimidos que dessem a sensação de ter escalado o Evereste, provavelmente só os tomaria quem não tivesse interesse em fazer montanhismo.

Isto complica a avaliação da utilidade, porque não permite reduzi-la a um factor que seja comum a todas as pessoas. Mas é mesmo assim. As pessoas não querem todas a mesma coisa e, por isso, o bom e o mau variam em função do que as pessoas querem. O papel da ética é gerir estas diferenças sem enfiar todas as cabeças no mesmo chapéu nem deixar que alguém ponha o seu chapéu em quem não o quer. O utilitarismo é a corrente ética que melhor resolve este problema.

Outro problema da ética é ter como propósito encontrar normas para regular as nossas escolhas ao mesmo tempo que só avalia aquilo que resulta de uma escolha livre. Sistemas éticos categóricos, que insistem em Bem e Mal absolutos, acabam por ser auto-contraditórios porque, nesses, a perfeição ética eliminaria as escolhas e a ética em si. Na prática, o problema fica disfarçado porque ninguém é eticamente perfeito. No entanto, quem defende esses sistemas normalmente presume existir alguém assim, e até diz saber que foi carpinteiro.

O utilitarismo resolve este problema considerando que a possibilidade escolha é um valor como os outros, porque os nossos objectivos – e, por isso, a utilidade – resultam de escolhas. Esta “escolha” não é o papão metafísico da vontade livre alegadamente isenta de restrições físicas, biológicas ou culturais. Escolhemos conforme o que somos. Mas a liberdade de viver com as nossas restrições, em vez de sob restrições impostas por outros, é algo que o utilitarismo considera ter valor ético. Por isso pode ser louvável dar sangue, doar um rim ou arriscar a vida para salvar outras pessoas ao mesmo tempo que é condenável obrigar alguém a fazê-lo. A possibilidade de escolher pesa na balança como um valor em si.

O utilitarismo tem também a vantagem de prático, tanto em coisas grandes como pequenas. É responsável por muitos dos avanços sociais dos últimos séculos, e até eu me guio por ele, aqui neste cantinho. Por exemplo, quando critico a propriedade intelectual ou escrevo sobre a redistribuição de riqueza. Como não podemos todos comer a mesma maçã, leis de propriedade sobre maçãs reduzem os conflitos sem restringir as liberdades que a natureza permitiria. Mas partilhar ficheiros, ouvir música ou implementar algoritmos é diferente. Nessas coisas as leis de propriedade criam restrições desnecessárias. O mesmo se passa quando um sistema arbitrário de pontos de troca permite que uns poucos comprem todo o arroz do ano que vem e condenem à fome muitos milhões de pessoas. Ou quando querem limitar os nossos direitos de expressão ou privacidade para defender interesses económicos ou ideologias.

As tretas em geral são outra afronta à liberdade de escolha. Passa muitas vezes a ideia de que quanto mais astrologias, medicinas alternativas e aldrabices do género houver, mais escolha todos temos. Mas isto é falso porque a escolha exige informação correcta e a possibilidade de avaliar as consequências. Quem se mete nestas coisas não está a escolher. Está a enfiar um barrete. Especialmente na religião, e em contraste com a fé pessoal.

Algumas pessoas declaram-se crentes porque escolhem certos valores que lhes parecem bons e que são partilhados por algumas religiões. Estas pessoas não se preocupam com dogmas, não insistem que aquilo tem de ser verdade nem presumem que a sua opinião também sirva aos outros. Simplesmente optam por viver de acordo com aqueles princípios. Este um direito que o utilitarismo defende. Mas há outras pessoas que fazem o contrário. Alegam conhecer factos fantásticos, coisas do outro mundo e detalhes privados de pessoas mortas há milénios, e tentam usar essas alegações infundadas para ditar valores aos outros todos. Do preservativo à blasfémia, do que se pode comer a que dias têm de ser feriado, como se reza e a quem, querem mandar em tudo. O que certamente tem utilidade para quem faz disso profissão mas, pela utilidade negativa que tem para os restantes, é algo que convém resistir.

domingo, janeiro 09, 2011

Treta da semana: dupla maravilha.

No seu blog «A Lógica do Sabino», o Marcos Sabino comenta um achado paleontológico importante. Numa montanha na China encontraram milhares de fósseis de répteis, animais marinhos e outros organismos, com cerca de 250 milhões de anos. Alguns estão tão bem preservados que é possível ver a forma dos tecidos moles, como a carne e a pele (1).

Para quem tenha lido «a notícia meio ensonado ou com o cérebro desligado», o Marcos esclarece que isto é impossível porque «estruturas orgânicas desintegram-se em alguns milhares de anos, segundo aquilo que se sabe a respeito de deterioração molecular»(2). O que seria relevante se não fosse um pequeno detalhe. São fósseis. A fossilização é o processo de substituição gradual da matéria orgânica pela deposição de minerais. O fóssil é uma pedra com a forma do organismo que morreu nesse sítio. A preservação de tecidos moles é rara porque, normalmente, estes decompõem-se (ou são comidos) depressa demais. Mas se aguentarem o tempo que demoram a fossilizar, depois de estarem em pedra duram os milhões de anos que for preciso. É só questão de os encontrarmos, à superfície, antes que o vento e a chuva os desfaçam.

Revelando nas maiúsculas o seu condão de tele-evangelista, O Marcos pergunta também «O que fazem mais de 20 mil fósseis de animais MARINHOS em cima de uma MONTANHA?» Foi o Dilúvio, explica. Tal e qual como vem na Bíblia. Talvez por estar ensonado, o Marcos não reparou que estes fósseis foram encontrados num depósito de calcário com mais de 15 metros de espessura. Sendo o calcário formado principalmente pela deposição de conchas de organismos microscópicos, uma montanha erguer-se em 250 milhões de anos pelo movimento das placas continentais (dá uma velocidade média de centésimas de milímetro por ano) é bem menos espantoso do que uma camada destas se depositar enquanto Noé espera que a chuva passe.

Mas o Mats não fica atrás. É difícil dizer qual dos dois melhor mostra ao mundo o que é o criacionismo. No seu blog, sobre o criacionismo e evolução mas com mais ênfase no primeiro e mais confusão na segunda, o Mats explica porque é que a temperatura do nosso corpo é de 37ºC. «Aparentemente esta é a temperatura perfeita uma vez que é suficientemente quente para prevenir infecções fungosas mas não tão quente que nos force a comer o tempo todo como forma de manter o nosso metabolismo.»(3) E o que é que o Mats conclui daqui? Penso que já devem imaginar.

«Parece que Quem nos criou não só nos fez de um modo “terrível e maravilhoso”, como deixou uma vasta gama de evidências para o Seu Poder, Amor e preocupação com a Sua Criação.»

E é evidência de que, no paraíso, além de haver infecções fungosas havia também falta de comida. Só isso explica porque é que o criador, apesar do Seu Poder, teve de se ficar por uma solução de desenrasque que nem livrou Adão e Eva dos fungos, porque senão morriam à fome, nem lhes permitia comer só uma vez por mês como os répteis, porque se fossem de sangue frio morriam de pé de atleta ou coisa do género.

A cobra, essa, safa-se bem dos fungos. Graças a deus, certamente...

1- Lice Science, Cache in Chinese Mountain Reveals 20,000 Prehistoric Fossils
2- Marcos Sabino, Montanha chinesa tem mais de 20 mil fósseis marinhos
3- Mats, Porquê 37 graus?

sábado, janeiro 08, 2011

Propriedade.

Em 2007, o gabinete de patentes dos EUA atribuiu à empresa Actify uma patente cobrindo o uso do duplo-clique para «possibilitar uma nova interacção com o conteúdo representado por um elemento visual activo». Neste momento, várias empresas estão a ser processadas por violação desta patente (1). Julgo que até os defensores da propriedade intelectual dirão que isto é um abuso. Por um lado, porque a Actify não inventou este uso do duplo-clique e, por outro, porque a invenção em si não merece um monopólio.

Concordo com estas objecções, se bem que haja razões ainda mais fortes para não conceder estes monopólios. Mas estas objecções só são relevantes se admitirmos que uma patente é um monopólio e não um direito do proprietário da invenção. Se ninguém reclama a propriedade de algo é legítimo que o primeiro que o apanhe se aproprie dessa coisa. Por exemplo, se for algo que está no lixo ou abandonado.

Assim, se o duplo-clique for passível de ser propriedade, e estando por aí aos caídos, temos de aceitar que alguém o apanhe e diga “é meu”. O dono original, se algum houver, que não o tivesse abandonado. E é irrelevante tratar-se de algo trivial ou de pouco valor. Os meus lenços de papel são triviais e a minha escova de dentes tem um valor de revenda muito baixo, mas nem por isso deixam de ser propriedade. Enquanto a concessão de monopólios legais podem exigir coisas como relevância e originalidade, os direitos de propriedade não olham para isso. Se é propriedade, tem dono e ponto final.

Outro problema da propriedade intelectual é a inconsistência com a propriedade. A outra, aquela que é a sério. Se compro um CD, o disco de plástico é meu, a película reflectora é minha e, naturalmente, os sulcos microscópicos também deviam ser meus. Senão, era como comprar um queijo Gruyère e não ser dono dos buracos. No entanto, a canção que está representada no padrão dos sulcos, segundo dizem, é propriedade da editora. Que é ainda mais do que dona dos buracos no CD. É também dona dos padrões de pintas reflectoras em qualquer CD-R ou CD-RW que eu possa comprar, dos padrões de magnetização nos meus discos rígidos e de carga nos meus cartões de memória. Padrões que nem precisam ser semelhantes aos do CD, porque cada meio usa um formatos específico para representar sequências de zeros e uns. Nem essas sequências precisam ser as mesmas, porque os pacotes de dados que viajam pela Internet e os ficheiros comprimidos, encriptados ou convertidos para outros formatos têm todos sequências diferentes dos bytes no CD original.

Isto não é uma forma de propriedade. A propriedade serve para usufruirmos daquelas coisas cujo usufruto necessariamente exclui terceiros. Um CD, uma horta, uma bicicleta. Desta forma reduz-se os conflitos e a interferência de uns nos direitos dos outros. Estes monopólios a que chamam “propriedade intelectual” são precisamente o contrário. São restrições aos direitos de propriedade dos outros, limitando o que cada um pode fazer com as suas coisas para, alegadamente, proteger algo que todos poderiam sem ninguém interferir no usufruto alheio. Quando se canta no duche não se rouba notas musicais, e quando se copia bytes não se rouba bits.

Proibir os outros de aceder, copiar ou partilhar algo que voluntariamente se tornou público não é um direito. É um privilégio ilegítimo. A razão principal para opor estes monopólios, bem como a noção absurda de que são direitos de propriedade, é violarem os direitos dos outros. Violam direitos de propriedade e de acesso à cultura e informação. Violam a liberdade de expressão e, por necessidades de implementação, violam também o direito à privacidade, à presunção de inocência e a um processo judicial diligente. Tudo isto numa tentativa fútil de impedir que milhares de milhões de seres humanos façam o que os humanos fazem melhor. Partilhar informação.

A propriedade intelectual é uma treta. Felizmente. Porque, se não fosse, não estávamos a discutir quem tem a patente do duplo-clique. Estava uma carrada de advogados ainda a negociar o licenciamento da combustão de matéria vegetal para o aquecimento de cavernas.

1- MacObserver, Apple Sued for Violating Double Click Patent, via o FriendFeed do J M Cerqueira Esteves.

sexta-feira, janeiro 07, 2011

O sentido.

Este termo é muito usado na apologética cristã. Por exemplo, na homilia pascal de 2009, a propósito do conflito entre a criação bíblica e a teoria da evolução, José Policarpo disse que « A narração bíblica da Criação [...] é uma revelação do sentido profundo da criação e da vida e não a narração do modo como as coisas aconteceram». Acrescentou também que «o homem é a plenitude da criação e o seu sentido último», que «Em Cristo ressuscitado, todo o tempo adquire o sentido definitivo», e que «nós sabemos que o sentido radical e definitivo está em Cristo ressuscitado.»(1). Esta palavra é muito útil na apologética porque se pode equivocar facilmente vários sentidos de “sentido”.

Quando falamos no sentido da vida ou em dar sentido àquilo que somos e fazemos, referimos valores que não se podem extrapolar de uma pessoa para outra. Para um, o principal pode ser a família ou a comunidade. Para outro o que dá sentido à vida pode ser a arte, a carreira ou o desporto. Neste sentido de “sentido”, o sentido das crença acerca de qualquer deus é estritamente pessoal. Quem as tem está no seu direito e não deve satisfações por isso, mas também não tem legitimidade para as afirmar como conhecimento ou de alegar que têm alguma relevância para os outros. Isto basta para a fé individual mas é insuficiente para a religião.

A religião precisa de “sentido” num sentido mais objectivo. Aquele que referimos quando dizemos que uma explicação ou esclarecimento faz sentido, e que é mais do que uma preferência pessoal. Por exemplo, algumas espécies de formiga armazenam comida para alturas de escassez, ou para sobreviver no Inverno. Podemos explicar isto com na fábula de Esopo, assumindo que as formigas são inteligentes e precavidas. No entanto, esta explicação é inconsistente com o que sabemos da inteligência dos insectos. Faz mais sentido explicar este comportamento como um reflexo, sem propósito ou consciência, que surgiu pela eliminação gradual das variantes menos capazes de acumular alimentos e que, por isso, deixaram menos descendentes.

As religiões precisam de algo que passe por explicações que façam sentido. Daquelas que qualquer pessoa racional, conhecendo os mesmos factos, reconheça como válidas. Este é o grande trunfo da ciência: quando as explicações fazem sentido tanto faz que gostem delas ou não. As religiões precisam de imitar isto para que pareçam legítimos os seus alegados conhecimentos e as pretensões dos seus profissionais à categoria de peritos nos respectivos deuses. Mas, neste sentido, as religiões falham redondamente.

Os dogmas religiosas não fazem sentido. As histórias da criação, o suposto sacrifício de Jesus, o Corão que Allah ditou a Maomé e tantas coisas do género, são só fábulas como as de Esopo (só que sem a honestidade de o admitir). São marcos culturais importantes, revelam o pensamento de quem as inventou e mostram o que, nessa altura, essas pessoas consideravam dar sentido à sua vida. Mas não revelam nada acerca da origem do universo, de quem o criou, do propósito disto tudo, da existência de deuses ou da vida depois da morte. São apenas expressões dos anseios e crenças de quem sabia ainda menos do que nós acerca destas coisas, e quase nada acerca do resto.

É legítimo que, mesmo hoje, haja quem adopte estas crenças e valores. Cada um é livre de acreditar e julgar o que quiser, por muito disparatado que seja. Mas só é legítimo enquanto for uma opção pessoal e não prejudicar os outros. O problema de extrapolar do “eu acredito” para o “vocês devem fazer” é horrivelmente evidente nos países muçulmanos e em atrocidades várias ao longo da história. E é também um problema em países como o nosso, com o dinheiro público que se desperdiça em religiões, a educação religiosa de crianças e leis que respeitam mais o direito a crer em deuses do que o direito de duvidar disso.

Coisas como «só em Cristo se penetra no mistério do homem», «revelação do sentido profundo da criação e da vida» ou «Verbo eterno que se exprime na Palavra revelada da Escritura»(1) aproveitam o sentido que os crentes encontram na sua fé e nos seus valores pessoais para os persuadir de que estas coisas fazem sentido e de que estes “peritos” têm uma compreensão profunda desta matéria. É treta. São especulações absurdas e infundadas, porque não dizem nada de concreto nem se baseiam em evidência alguma, e são uma caricatura da sabedoria, porque o conhecimento não é algo que se obtenha pela reinterpretação demagógica de superstições antigas.

Para os ateus e agnósticos não serve de nada escrever isto. É pregar ao coro. Mas pode ser que leve alguns crentes a pensar no assunto. Pode ser que olhem para as outras religiões e vejam como os imames, rabinos, pastores e cardeais (cada um risque o que considerar a mais) mantêm autoridade sobre tanta gente dizendo saber o que obviamente não sabem. Pode ser que algum crente note a semelhança entre este truque e o negócio dos professores Bambos, dos astrólogos e cartomantes. E até pode ser que perceba que pode manter a sua crença e os valores que dão sentido à sua vida sem ter de enfiar barretes nem perder tempo com quem quer vender regulamentos para a fé.

1- Rádio Vaticano, Criação bíblica e darwinismo: relação analisada por D. José Policarpo na vigília pascal, negando contradições entre as duas "teorias".

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Aviso à navegação.

Alguns leitores têm tido problemas a colocar comentários. É por causa do filtro anti-spam do Blogger, que retêm os comentários que considera suspeitos, lá por razões dele, e só quando eu os aprovo é que eles aparecem.

Penso que é pior se tentarem enviar o mesmo comentário várias vezes, não só porque comentários repetidos devem alertar logo o filtro, como depois tenho de apagar os excedentários, o que provavelmente vai tornar o filtro mais sensível a comentários subsequentes das mesmas pessoas. Por isso, se o vosso comentário aparece e fica logo escondido, ou não aparece mas sem qualquer mensagem de erro, esperem um pouco até eu fazer a ronda.

Peço desculpa pela chatice, mas de vez em quando há por aí uns surtos de malta a vender coisas e nessas alturas dá jeito que o filtro esteja a funcionar.

domingo, janeiro 02, 2011

Treta da semana: subsidiar os empreendedores.

O Mário Valente defende que, para fomentar o empreendedorismo, o Estado devia adiar o pagamento de IRS, IRC e segurança social às empresas com menos de 3 anos. Estas ficariam também isentas de pagar ordenados mínimos e os seus donos poderiam encerrá-las «de forma liminar, sem abertura de falência, administradores judiciais, pagamento de indemnizações, etc»(1), caso em que não precisariam pagar os impostos adiados. Garante o Mário Valente que, desta forma, «o empreendedorismo duplicava e que passados esses 3 anos o acionista Estado estava a receber dividendos». Parece-me demasiado optimista.

É fácil ver o problema se percebermos que estas isenções e adiamentos equivalem a um subsídio ao fecho antes de acabar os três anos. Isto nem exige que os empreendedores sejam desonestos. É uma consequência inevitável da livre concorrência. Aqui na rua há um cabeleireiro estabelecido há mais de três anos. Com estas medidas do Mário, um cabeleireiro novo teria preços muito mais competitivos, sem ter de pagar IRS, IRC, segurança social ou ordenados mínimos. Mas, ao fim de três anos, quando tivesse de pagar tudo isto em atraso (mesmo que em “suaves prestações”), ia à falência. Melhor falir pouco antes dos três anos, para evitar chatices. E, entretanto, o outro cabeleireiro também já teria fechado as portas.

Para evitar que alguém abra um cabeleireiro novo de 3 em 3 anos, o Mário propõe «fiscalização, acção e cadeia». É parco em detalhes de implementação, que é onde estas coisas falham. Mas, seja como for, qualquer tem mercearias, cafés, restaurantes e lojas que dêem para décadas de abre e fecha, se o empreendedor não se importar de mudar de ramo para ter estas vantagens sobre a concorrência.

Também me parece errada a premissa de que, neste momento, a maior dificuldade do empreendedor é ter de partilhar os lucros com o Estado. Suspeito que o problema maior seja não ter sequer clientes suficientes para ter lucro, problema que só se agrava quanto mais o Estado cortar nas prestações sociais em favor dos benefícios fiscais. Com clientes, os impostos até se pagam. Sem clientes, não há benefícios fiscais que aguentem uma empresa.

Mas o que me interessa mais é a ideia que o Mário Valente tem do Estado. Uma ideia comum, mas incorrecta, de que o Estado é uma parte da economia de mercado, um "accionista" que devia ser o mais pequeno possível para não atrapalhar. «O melhor que o Estado pode fazer para promover o empreendedorismo é sair do caminho e deixar-nos trabalhar». Ou «a Justiça é uma das únicas justificações morais para a existencia de um Estado […] Se o Estado saísse de onde não devia estar (saude, educacao, fábricas de cerveja, postos de gasolina, etc) se calhar podia mais facilmente prestar um serviço de jeito na Justiça.» (2).

O papel mais importante do Estado é aguentar o capitalismo. O mercado de capitais, do lucro, da troca livre e afins é das melhores coisas que inventámos. É eficiente, esperto, inovador e rápido a cobrir qualquer necessidade, real ou imaginária. Mas tem dois defeitos letais.

O capitalismo é auto-destrutivo. Quanto mais recursos alguém controla, maior é o seu poder de negociação, mais capacidade tem para adquirir recursos e maior é a fracção de recursos que dedica à acumulação de capital. Os pobres gastam o que têm a comprar o que precisam (“consomem”). Os ricos só gastam uma fracção do que têm e emprestam o resto para ganhar mais (“investem”). Como não se pode ter um mercado, ou sequer uma sociedade, com meia dúzia de mega-milionários no meio de uma multidão de miseráveis, o capitalismo só se aguenta enquanto houver uma redistribuição eficaz que mantenha o capital a circular. Sem impostos o capitalismo não dura.

E o capitalismo só serve para o que dá lucro. Que é muita coisa, admito. Como bolachas, cabeleireiros, telemóveis, viagens às caraíbas e operações plásticas. Mas não é tudo. Ter sucesso económico com uma escola privada não é o mesmo que garantir que todas as crianças podem ter uma educação, mesmo sem pais ricos. Lucrar com a venda de serviços de saúde não é o mesmo que garantir que qualquer pessoa tenha acesso a assistência médica, mesmo que não tenha dinheiro.

É um erro ver o Estado como um empecilho, como mais um prestador de serviços no mercado ou como apenas alguém que paga a Justiça (porque só os mesmo muito ricos é que seriam a favor de privatizar o exército e a polícia). O Estado é o lastro, sem o qual o barco vira. Sem escolas e serviços de saúde públicos não há empreendedores nem empregados nem clientes; há analfabetos esfomeados de um lado e ricos barricados do outro. E sem uma redistribuição eficaz não há “justiça” que safe estes últimos do desespero dos primeiros.

A Somália até pode ser um paraíso para os empreendedores, pelo Estado minimalista e as vantagens fiscais. Mas só para uma certa definição de “empreendedor”...

Correcção: Por alguma razão estranha, deu-me para chamar "Miguel" ao Mário. Espero que tenha corrigido antes de alguém notar...

1- Mário Valente, Deixem-nos ser empreendedores. Via o FriendFeed do Miguel Caetano.
2- Mesmo post, mas nos comentários.

PS: esta é a 200ª treta da semana. Não sei é se isso é bom ou mau...