segunda-feira, maio 31, 2010

Berbicacho.

Tropas israelitas mataram nove pessoas, pelo menos, ao invadir barcos que tentavam chegar à faixa de Gaza (1). Dispararam porque os tripulantes e passageiros dos barcos atacaram os soldados com facas e o que mais tinham à mão. Estes atacaram os soldados porque os queriam impedir de chegar a Gaza levando ajuda humanitária, umas centenas de militantes e talvez outras coisas.

Os israelitas estão a bloquear a faixa de Gaza precisamente por causa dessas outras coisas, muitas delas que servem para rebentar israelitas. E num milhão e meio de palestinianos em Gaza há muita gente com vontade de rebentar israelitas, porque há três anos que Israel impede a entrada de quase tudo, de champô a automóveis, de adubo a lâmpadas (2). O bloqueio começou em 2007 quando o Hamas venceu a batalha de Gaza contra o Fatah e substituiu o governo palestiniano pela sua milícia extremista (3). Este conflito veio na sequência da vitória do Hamas nas eleições de 2006 e o anúncio que não ia cumprir os acordos que o anterior governo palestiniano tinha celebrado com Israel, o que levou Israel a parar com as transferências mensais de cerca de cinquenta milhões de dólares em taxas aduaneiras que pertencem à Autoridade Palestiniana mas que são cobradas por agentes alfandegários israelitas nas fronteiras com os territórios palestinianos.

O Hamas ganhou poder com o fermentar de hostilidades desde a guerra dos seis dias, em 1967, quando Israel atacou o Egipto, a Síria e a Jordânia e ocupou os territórios palestinianos, entre os quais a faixa de Gaza (4). Este ataque foi uma reacção à movimentação de tropas do Egipto, que tinha acabado de expulsar a Força de Emergência das Nações Unidas (FEUN) e estacionar um milhar de blindados e cem mil soldados na fronteira com Israel. A FEUN estava lá desde 1957, quando forças britânicas e francesas tinham invadido essa região do Egipto para reabrir o canal do Suez. E os palestinianos estão na faixa de Gaza desde 1948, quando cerca de setecentos mil foram expulsos de suas casas durante o todos-contra-todos que foi a saída das forças britânicas da Palestina, a guerra entre judeus e árabes e a formação do estado de Israel. E assim por diante.

Parece-me que para resolver os problemas do médio oriente vai ser preciso pelo menos duas coisas. Boa vontade e uma máquina do tempo. E, das duas, acho que a máquina do tempo será a mais fácil de encontrar.

Obrigado ao Bruce Lose pelo link para a notícia.

1- BBC, Israeli PM 'regrets' deaths as troops storm aid ships
2- BBC, Guide: Gaza under blockade
3- Wikipedia, Battle of Gaza 2007
4- Wikipedia, Six-Day War

domingo, maio 30, 2010

Treta da semana: vuvuzela.

Conta-se que na África do Sul gostam de tocar a vuvuzela durante os jogos de futebol. O que é lá com eles. Mas por cá parece forçada esta tradição instantânea criada com anúncios na TV e pedidos para “apoiar” a selecção. Cada um dos 24 jogadores portugueses recebe €800 por dia, um apoio melhor que muita gente tem por mês (1). E soprar num tubo de plástico imitando uma assoadela dá mais incómodo que apoio. Especialmente quando anda tudo a vuvuzelar por cá e eles estão do outro lado do continente africano. É um facto, apesar de muito ignorado pelos adeptos do futebol, que o barulho que fazemos à frente do televisor não se ouve do lado de lá.

O principal promotor deste apoio é a Galp Energia, segundo a qual «Paixão, futebol e Galp Energia são palavras indissociáveis»(2). Er... pois. Talvez por isso tenham decidido contribuir para o meio ambiente distribuindo centenas de milhares de cornetas de plástico.

Mas nem tudo nisto é mau. Para aqueles que acham o som da vuvuzela desagradável deixo aqui o hino da vuvuzela. Sempre que ouvirem o assoar da corneta pensem que não estão a ouvir alguém a cantar isto.



1- Correio da Manhã, Jogadores recebem 800 €/dia na Selecção
2- Galp Energia, Galp Energia desafia adeptos portugueses a tocar vuvuzela para apoiar a selecção

sábado, maio 29, 2010

A apresentação na FMUP.

Já fiz o vídeo da minha apresentação no debate do passado dia 21, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto:



Já agora, lembrei-me de uma história interessante que o padre José Nuno contou durante o debate. Era miúdo e estava a comer bolachas às escondidas da avó quando trovejou subitamente. A avó, apanhando-o em flagrante, disse que era Deus a ralhar. Mas ele contou que, felizmente, não tinha acreditado naquele deus que ralhava com trovões, senão nunca teria ido para padre. O deus em que ele acreditava era um deus que é amor, bonzinho e essas coisas.

Esta história singela ilustra bem como é falsa a ideia da religião como guia moral. A religião não é uma bússola que aponta para o bem. É um caixote delas, cada uma encravada na sua direcção, de onde cada crente tem de escolher uma que calhe apontar para algo minimamente aceitável. E se sabe escolher a bússola certa é porque já sabia distinguir, por si, entre o bem e o mal.

Quem sabe escolher uma religião decente não precisa de religião para ser decente. E quem não sabe é melhor não se meter nessas coisas...

quinta-feira, maio 27, 2010

Inteligência e croché.

Eu sei como resolver equações diferenciais. A minha avó não faz ideia o que isso seja mas sabe fazer croché. Muita gente pensa que resolver equações diferenciais exige mais inteligência, mostrando que uma opinião não é mais fiável só por muitos opinarem o mesmo. Resolver equações diferenciais é tão trivial que com meia dúzia de linhas de código se põe um computador a fazê-lo. A minha avó faz croché ao mesmo tempo que segue os diálogos da novela, conversa com a vizinha e decide o que vai fazer para o jantar, coisa que ninguém faz ideia de como por um computador a fazer.

Não sei se um poeta é mais inteligente que um bailarino ou se ser professor e ensinar informática demonstra mais inteligência que ser avó e fazer croché. Quando tentamos ver em detalhe quanta informação se tem de processar para executar uma tarefa, muito do que nos parece trivial se revela extremamente complexo. E vice-versa. Temos programas de computador que vencem qualquer um no Xadrez mas nem um que perceba a piada da anedota mais simples. Por isso não sei dizer se um crente é mais ou menos inteligente que um descrente ou se a crença tem alguma coisa que ver com inteligência, uma capacidade tão abrangente que nem sei bem em que consiste.

Mas há uma coisa que me parece estar relacionada a diferença entre crente e descrente. À falta de um nome melhor, e não querendo confundi-la com inteligência, direi que é prática na análise crítica de proposições. A minha avó tem a quarta classe e quase tudo o que julga ser verdade aprendeu porque confiou em quem lho disse. Nos professores, nos pais, nos padres, na TV. Apesar de ter vivido muito mais que eu, teve poucas oportunidades (e menos encorajamento) para questionar se essas afirmações eram verdadeiras ou falsas e como responder a essa questão. Só aprendeu a acreditar e, com poucas oportunidades de aprender pela dúvida, até acha que duvidar é má educação.

E como a minha avó há milhares de milhões de pessoas. Nas estepes da Mongólia, nas favelas do Brasil, nas aldeias do Paquistão. E também nos países mais ricos, que poucos têm a possibilidade de ganhar a vida questionando hipóteses e pensando em como distinguir o verdadeiro do falso. E assim proliferam as superstições, entre as quais aquelas a que chamam religião.

Sei que muitos que se dizem entendidos nestas coisas alegam que religião e superstição são diferentes. Só que nunca explicam a diferença*, e a religião sentida da maioria dos crentes, os que pedem e negoceiam os favores dos deuses, é igual a qualquer outra superstição. Só no ar rarefeito da teologia e da exegese é que se discute, a par do sexo dos anjos, a diferença entre crer que a ferradura dá sorte e crer que a hóstia se transubstancia.

Mas é com esses que discuto religião. Não é com a minha avó, ou com a maioria dos crentes, que crêem porque sim e para quem isso não se discute. Discuto apenas com os que dizem estudar essas coisas. E, ao contrário do que me acusam por vezes, não assumo que são menos inteligentes ou menos capazes de distinguir o verdadeiro e o falso. Discuto com quem me parece querer discutir o assunto e ser perfeitamente capaz de o fazer. No entanto, há na posição do crente um obstáculo difícil de transpor. Não é falta de inteligência ou de capacidades. Nem sequer é aquela falta de treino que me dissuade de discutir isto com a minha avó. É a crença.

Essa é a grande diferença. A minha descrença é uma conclusão que proponho defender no diálogo. É o ponto final de um raciocínio no qual posso mostrar a sequência de razões que me conduzem a essa conclusão. Todos sabemos que danos no cérebro afectam a mente e essa fragilidade é evidência que não resistimos à morte do corpo. Todos sabemos que há crianças que pisam minas e ficam estropiadas, ou morrem de cancro, ou nascem com deficiências, e isso indica não haver um deus omnipotente a cuidar dos inocentes. Eu posso apontar o porquê da minha descrença com razões que o meu interlocutor reconheça serem verdade.

Em contraste, o crente assume a verdade daquilo em que crê sem nada que a possa justificar a quem não creia. Acredita numa vida eterna sem dados que suportem essa hipótese. Acredita que existe um deus, aquele deus, sem evidências disso. Conclui as premissas. Mas não de forma banal. A caminho do ponto de partida invoca a tradição, cita autoridades, aponta que não se pode provar o contrário, fala em amor, relação e razão, usa maiúsculas q.b., chama liberdade ao infortúnio e faz corar o Dr. Pangloss. Não falta nisto inteligência nem revela capacidades diminuídas. Mas opta por não contribuir para o diálogo racional, cujo objectivo é encontrar as razões aceites por ambas as partes que justifiquem uma conclusão consensual. Em vez disso faz croché com as palavras.

Admito que o croché tem mérito. Não é qualquer um que consegue. Mas é uma arte meramente decorativa.

*Há uma excepção que devo notar. Uma vez vi um antropólogo entrevistado na TV, penso que na RTP-2. Não me lembro do nome do senhor, mas à pergunta acerca da diferença entre religião e superstição ele disse haver um critério simples. Em cada cultura, religião é a sua e superstição as dos outros.

quarta-feira, maio 26, 2010

A moda devia mesmo ser esta.



Obrigado pelo email com a referência ao vídeo.

terça-feira, maio 25, 2010

Eficiência.

Há umas semanas encomendei um leitor de e-books baratinho de Hong-Kong (1) e esta semana recebi uma carta da alfândega para apresentar a factura e pagar o imposto. Como era uma carta registada e não estava ninguém em casa quando a entregaram tive de a ir levantar aos correios. Aproveitei para perguntar se podia tratar disto electronicamente. A factura é um email, o pagamento foi electrónico e era só fazer forward para eles, davam-me um código para pagar pelo Multibanco e a encomenda seguia para casa. Mas não. A senhora dos CTT até se riu e disse que isso era muito avançado. Ou imprimia e enviava o papel no envelope que me tinham mandado, esperando mais uns dias, ou ia lá pessoalmente que era mais rápido.

Decido ir lá de manhã, munido do email impresso e da carta que me enviaram. Quando lá chego, perto da estação dos CTT em Cabo Ruivo, não estava ninguém para ser atendido. Perfeito. Dirijo-me ao balcão, mostro os papeis e a senhora pede-me que volte lá atrás para trazer uma senha. Compreendo que haja um sistema de controlo e que seja preciso ter um contador das pessoas atendidas. Mas a senhora podia ter um botão ao pé dela para passar ao próximo cliente sem ter de gastar papel e tinta a imprimir uma senha quando não há mais ninguém. Não é muito, mas sempre se poupava um pouco.

Verifica a factura que lhe apresento, escreve umas coisas no computador, faz-me umas perguntas, imprime uns papeis, dá-mos para a mão e diz que tenho de ir ao guiché do lado pagar. Mas primeiro tenho de tirar outra senha. Volto à entrada, tiro a outra senha, vou para o guiché indicado – a dois passos do primeiro – e espero que a senhora desse guiché me atenda. Este também não tinha ninguém para ser atendido mas a senhora estava atarefada ao computador. Ao fim de um pouco entrego-lhe os papeis e ela passa uns minutos a copiar aquilo para o computador dela. WTF? Não têm rede?

Imprime mais uns papeis, pago, assino um, dá-me outro e manda-me ir a outro guiché que estava no meio destes dois. Sem ninguém. Nem para ser atendido nem para atender. Pergunto à primeira senhora se é preciso mais senhas. Ela ri-se, diz que não e diz-me para dizer à senhora do segundo guiché para chamar alguém. Peço-lhe para chamar alguém, ela toca uma campainha e, um pouco mais tarde, lá vem o senhor do terceiro guiché. Bom dia, papelinho para aqui, papelinho de volta, e finalmente vai buscar o pacotinho com o meu leitor novo.

Ufa.

Fiquei surpreendido por estarmos a atravessar esta crise. Não pela crise. Com este bailado repetido em milhares de repartições pelo país, e o gasto de tempo, papel e tinta que isso acarreta, a crise não me surpreende. O que me admira é estarmos ainda a atravessá-la e não termos já caído do outro lado.

1- Da Shop Kami, se estiverem interessados.

domingo, maio 23, 2010

Treta da semana: a liberdade segundo Haught.

Tanto o Alfredo Dinis como o Miguel Panão me recomendaram que lesse John Haught. Parece que este professor de teologia teria encontrado a forma de conciliar a sua religião com a teoria da evolução (1,2). Já há algum tempo nestas andanças, desconfio quando me dizem que há um argumento fabuloso sem dar sequer ideia do que se trata. Por isso, antes de perder tempo e dinheiro num livro que nem no Rapidshare encontro, decidi procurar alguma coisa mais curta onde Haught explicasse a ideia.

Num artigo para a American Association for the Advancement of science, Haught distingue quatro posições acerca das implicações da teoria da evolução para a teologia cristã (3). A primeira é de que são incompatíveis. A teoria da evolução explica a origem das espécies por processos naturais, alimentada por mutações aleatórias e guiada pela competição por recursos limitados que faz propagar umas características em detrimento de outras. Isto põe de parte a hipótese de um deus pessoal que não se esteja nas tintas para isto tudo. Nisto concordo com os criacionistas. Ou foi por desígnio e inteligência, ou foi por um processo que dispensa quer desígnio quer inteligência. Não pode ser ambos. E as evidências favorecem a teoria da evolução.

Haught rejeita esta posição, a que chama de “conflito”, bem como a posição de que a ciência e as religiões operam em domínios separados. Também me parece incorrecto considerar as religiões à parte. Só teriam um domínio exclusivamente seu se nunca alegassem factos acerca da realidade. Mas sem milagres, revelações ou rituais não havia trabalho para os sacerdotes, e sem os auto-proclamados “peritos” em questões divinas não era preciso religião. Bastava a fé de cada um.

Mas o que queria focar aqui é a alegada conciliação entre ciência e religião, as posições que Haught designa por “contacto” e “confirmação”. Segundo explica Haught, o principal problema teológico da teoria da evolução é a aleatoriedade das mutações. O que é apenas parte da história. O principal problema é a teoria da evolução ser uma explicação detalhada, confirmada por um enorme conjunto de dados, que encaixa perfeitamente no resto da ciência e que não tem deuses em lado nenhum. Isto põe a teologia na mesma posição embaraçosa da alquimia, da astrologia e de relatos semelhantes assentes em premissas inúteis.

E além de Haught ignorar o fundamental para se concentrar num detalhe, a aleatoriedade das mutações, revela também a diferença entre tentar compreender o que se passa e argumentar por uma posição que se assume, à partida, inquestionável. Escreve Haught que o seu deus criou o universo por amor. Como isto foi determinado fica por explicar. Assume-se que sim, e pronto. E, como o amor é persuasivo em vez de coercivo, este deus dotou o universo de indeterminismo para assim termos liberdade.

«Se, como a tradição religiosa teísta tem sempre insistido, Deus se importa verdadeiramente com o bem-estar do mundo, então o mundo tem de ser algo à parte de Deus. Tem de ter alguma “liberdade” ou autonomia. Se não existisse por si não seria mais que uma extensão do ser de Deus, e assim não seria um mundo por si. Por isso tem de haver espaço para indeterminação no universo, e a aleatoriedade da evolução é um exemplo disto»

Mesmo pondo “liberdade” entre aspas isto é um disparate. Aleatoriedade não é o mesmo que liberdade ou autonomia. Eu sou livre de ficar em casa ou sair porque sou eu que escolho se saio ou fico. Se alguém atirasse uma moeda ao ar e, conforme o resultado, me trancasse em casa ou me expulsasse à paulada isso não me dava autonomia ou liberdade. Nem entre aspas.

Quando um erro na meiose dá a um desgraçado três cópias do cromossoma 21, a deficiência mental que daí resulta não é expressão de liberdade nem autonomia. Muito menos de amor. As mutações que fizeram o encaixe da mandíbula dos mamíferos ser diferente da dos répteis, que formaram as penas das gaivotas e definharam os olhos às toupeiras não surgiram por liberdade, autonomia ou amor. Foram acidentes. Para bem ou para mal, surgiram por processos desprovidos de qualquer consideração pelo resultado, um aspecto fundamental dos actos de amor, de liberdade e de autonomia.

A teologia cristã assume um deus criador que se importa com o universo. Por isso precisa que a natureza actue visando resultados futuros. Com intenção. Não haver intenção na formação das estrelas, na erosão das encostas ou nas reacções químicas não é muito problemático porque a teologia, apesar do nome, foca quase exclusivamente os seres humanos. Astros e minerais têm pouca importância. Mas a teoria da evolução puxa-lhe o tapete ao demonstrar que o processo pelo qual a nossa espécie surgiu foi dominado, e determinado, por processos cegos ao futuro. Chamar a isso amor, autonomia ou liberdade é um acto desesperado de quem não consegue abdicar de uma premissa obviamente falsa.

1- Companhia dos Filósofos, Cristianismo e Evolucionismo em 101 Perguntas e Respostas, de John F. Haught (Gradiva)
2- Por uma Cultura de Comunhão, Cristianismo e Evolucionismo por John F. Haught (Gradiva)
3- John Haught, Does Evolution Rule Out God's Existence?

sexta-feira, maio 21, 2010

Como correu.

Na sexta-feira passada falei na Biblioteca-Museu República e Resistência sobre como a ciência permite rejeitar as hipóteses religiosas acerca dos deuses. Não é porque prove a inexistência desses deuses. Isso não é possível, como apontam frequentemente os que rejeitam a grande maioria dos deuses guardando só um ou três tão improváveis quanto os outros. A ciência rejeita estas hipóteses como rejeita qualquer outra que, posta à prova, tenha um desempenho inferior ao das alternativas. A hipótese de não haver deus nenhum é muito mais simples e esclarecedora que quaisquer superstições que pretendam substituí-la.

Como a audiência era descrente a conversa foi pouco polémica. Moderada pelo João Mário Mascarenhas, presidente do museu, incidiu apenas sobre os aspectos sociais da religião. Ontem, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, foi diferente. Debati ateísmo e religiões com José Nuno Ferreira da Silva, padre capelão do Hospital de São João e coordenador nacional das capelanias hospitalares. O debate foi moderado pelo Carlos Magno Castanheira, que participou activamente na conversa, perante uma audiência maioritariamente católica. Como de costume, questionaram como um ateu pode ter valores.

Antigamente as religiões davam modelos acerca de como o universo funciona. De onde vêm as tempestades, porque há doenças e se Eva tinha umbigo. Mas essas ideias foram sendo rejeitadas, excepto para uns que ainda acreditam que a Terra é plana ou que foi criada em seis dias. Para muitos, como os católicos, a religião deixou de explicar os factos e tornou-se só fé e valores. O José Nuno até exultou esta mudança, dizendo ser óptimo que os cientistas compreendam tudo acerca do cosmos, libertem Deus da tarefa de o explicar e deixem que a fé seja um acto de vontade livre. Por mim tudo bem.

No entanto, os mesmos católicos que vêem a fé como uma escolha livre duvidam que o ateu consiga ter valores sem deuses ou religiões. É uma dúvida estranha porque, se um católico se torna católico quando opta livremente por essa fé, é evidente que pelo menos nessa decisão seguiu valores que não são religiosos. Isto é tão evidente como Maomé não ter nascido muçulmano, uma blasfémia punida por lei em certos países mas forçosamente verdadeira.

Uma explicação para a dificuldade dos religiosos em aceitar que os ateus tenham valores pode ser a confusão que a religião faz entre valores e factos. Um facto é uma descrição correcta daquilo que é, enquanto um valor é um critério de decisão. Mas as religiões ensinam os seus seguidores a aceitar critérios de decisão como se fossem factos. Deve-se confessar os pecados e ir à missa, não se deve pensar em sexo, deve-se louvar este deus e seus representantes oficiais mas não aqueles outros deuses e os representantes deles, e assim por diante. E isto leva o crente a julgar que os valores não vêm de si. Apesar da história da maçã e de apregoarem a fé como um exercício de liberdade (não obstante baptizarem recém-nascidos) não notam que é cada um de nós, individualmente e por si, que em última análise tem de distinguir o bem e o mal. Religiosos ou ateus, todos os valores que seguimos são da nossa responsabilidade, mesmo que alguns julguem que os seus lhes caíram do céu.

Esta dificuldade é tal que quando expliquei que os meus valores são principalmente a consideração por todos os que as minhas escolhas afectem alguém obstou que se fosse assim a sociedade seria um caos. Mas é o contrário, e só quando outra pessoa apontou a semelhança entre este princípio e a máxima cristã de amar o próximo é que a ideia se tornou compreensível para os que partem do princípio que nenhum humano pode ser decente sem ter um deus a puxar os cordéis.

Não defendo o dever de amar o próximo. Não escolhemos quem amamos nem culpo ninguém se não gostar de mim. Defendo é o dever de ter consideração pelos outros; sejam próximos ou distantes, amados ou odiados. O que dá quase no mesmo. E este valor não vem dos deuses. Vem da nossa capacidade natural de perceber o impacto das nossas escolhas, fruto das pressões selectivas que formaram um cérebro capaz de compreender o que os outros pensam e sentem. Com ou sem religião, só o psicopata não assenta a ética nesta capacidade de empatia.

Suspeito que muitos religiosos não tenham escolhido a sua fé. Calhou-lhes, como a terrina lascada que era da bisavó. Mas, pelo que me dizem, alguns há que escolheram livremente a religião que seguem. Se assim for, não devem ter dificuldades em perceber os valores dos ateus. Nessa decisão tiveram de decidir por si, sem deuses, qual a opção boa e qual a má. O ateu apenas continuou a decidir por si, não delegando os seus valores a padres, livros ou dogmas.

Aproveito para agradecer os convites, a recepção amável do Museu República e Resistência e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, o trabalho do Vítor Santos e do Nuno Leal na organização destes encontros e a participação da audiência em ambos os eventos. Mais uma razão para eu não gostar de missas: falta-lhes o melhor, a sessão de perguntas no fim. E, já agora, deixo o anúncio que logo às 18:30 vai ser o Carlos Esperança a falar no Museu República e Resistência, em Lisboa.

quinta-feira, maio 20, 2010

Dia de Desenhar Maomé.

Em Abril um episódio da série South Park foi censurado pela Comedy Central por causa de ameaças de um grupo islâmico que se ofendeu porque um personagem vestido de urso era apresentado como sendo Maomé. No dia 20 de Abril a cartoonista Molly Norris criou um poster satírico a anunciar que 20 de Maio seria o “Dia de Todos Desenharem Maomé”. Se bem que ela não tivesse intenção de que levassem o poster a sério, a ideia pegou e hoje celebra-se esse dia pela Internet (1).

Provavelmente muitos vão aproveitar para ofender os muçulmanos desenhando Maomé como uma lata de salsichas ou coisa assim. Mas como os muçulmanos são ainda mais fáceis de ofender que os católicos – e isto não é dizer pouco – parece-me que dá mais gozo tentar ser um pouco pedagógico. Ofende à mesma, é quase certo, mas pode ser que aprendam alguma coisa.

Alguns muçulmanos acham bem ameaçar, agredir, e até matar pessoas que desenhem Maomé porque acham que é pecado desenhar Maomé. Pena não acharem que ameaçar, agredir e matar sejam pelo menos pecados tão graves. Mas além de intolerantes e com os valores trocados, esses muçulmanos demonstram também ignorância acerca da sua própria religião. Desenhar Maomé foi prática comum nas nações islâmicas durante muito tempo antes desta religião degenerar numa das ideias mais parvas de sempre.

A imagem abaixo é o detalhe de uma ilustração de um manuscrito persa do século XIII, representando Maomé a dar um sermão aos convertidos no Monte Ararat, uma ilustração muito apreciada nos manuscritos árabes da época.

Ai pecado!

Esta outra mostra Maomé a receber os ensinamentos do anjo Gabriel, no “Compêndio de Crónicas” (Jami' al-Tawarikh), da autoria de Rashid al-Din e publicado na Pérsia em 1307.

Ai pecado, e com um anjo!

Finalmente, uma imagem da visita de Maomé ao inferno, acompanhado por Buraq e o anjo Gabriel, onde assistiu a mulheres penduradas pelos cabelos a arder para toda a eternidade, condenadas pelo pecado de incitar os homens mostrando os seus cabelos.

Outro pecado lixado, o de não usar touca...

Isto não só demonstra que era legítimo desenhar Maomé e que o Islão não é muito simpático para as mulheres, mas também que os homens muçulmanos, pelo menos os dessa altura, eram um bocado totós para se deixarem incitar por tão pouco.

Estas imagens foram copiadas do Mohammed Image Archive.

1- Wikipedia, Everybody Draw Mohammed Day

quarta-feira, maio 19, 2010

Evolução: intenção e falta dela.

Se queremos compreender o que o oleiro faz enquanto molda o barro precisamos considerar a ideia que ele tem do produto final, porque é essa ideia que o guia desde o início do processo. Em contraste, se queremos compreender a trajectória de uma pedra a cair consideramos apenas o que aconteceu à pedra até aquele momento. O vento, a velocidade inicial, a forma e peso da pedra e se bateu em algo são factores relevantes para perceber porque está naquela posição, e com aquela velocidade, naquele instante. O que vai acontecer a seguir é irrelevante porque nada neste processo antecipa alguma finalidade.

Nem sempre se pensou assim. A física de Aristóteles descreve que a pedra cai porque a sua finalidade é ir para o centro da Terra (que também julgava ser o centro do universo). Aristóteles incluía esta “causa final” nos factores que invocava para explicar qualquer fenómeno. Até Newton tinha ainda um resquício disto. Descreveu a gravidade como uma acção misteriosa que cada corpo exercia à distância e que Newton explicava como sendo obra de Deus. Einstein é que dispensou de vez a intencionalidade na descrição da pedra a cair. Sendo a gravidade uma deformação local do espaço-tempo não é preciso invocar alguma inteligência ou antecipação consciente do resultado final para explicar a queda da pedra.

Um processo é intencional se for guiado por algo que antecipa um resultado futuro. É o que faz o oleiro, o agricultor ou o caçador, por exemplo. Em contraste, um processo não é intencional se o seu progresso depender apenas do seu passado e presente sem qualquer antecipação do futuro. Uma pedra a rebolar pela ribanceira tem uma trajectória que, a cada instante, depende do que a trouxe até aí e não da possibilidade de cair ao rio ou partir um vidro.

Na evolução temos os dois tipos de processo. A domesticação de vários animais e plantas decorreu por um processo de evolução intencional, guiado pela selecção artificial. Os agricultores comiam as sementes mais pequenas e guardavam as maiores para plantar, não por gostarem mais de comer sementes pequenas mas por anteciparem que plantando as maiores iriam ter colheitas melhores. Foi também por antecipar resultados futuros que cruzaram as ovelhas com mais lã, plantaram as sementes das pêras mais doces e assim por diante. Por isso para explicar o processo de evolução que conduziu aos animais domésticos precisamos considerar o propósito daqueles que guiaram esse processo.

O que demonstra que a ciência é perfeitamente capaz de considerar o propósito e o desígnio inteligente para explicar os processos que são guiados por um “porquê” além do “como”. Se há propósito, seja nas mamas das vacas seja no pote do oleiro, podemos incluí-lo na descrição correcta do processo que os gerou.

Mas acontece que, na grande maioria dos casos, a evolução não é guiada por qualquer propósito. A evolução dos trilobites não antecipou o seu fim trágico, as penas não surgiram com o propósito de, milhares de gerações adiante, servirem para voar, e é falsa a ideia comum que os animais se reproduzem para assegurar o futuro da sua espécie. Quando explicamos o que se passa na evolução por selecção natural nunca é necessário assumir uma antecipação de acontecimentos futuros. Os trilobites dominaram a Terra numa altura em que as condições favoreciam o seu sucesso reprodutivo e extinguiram-se quando deixou de ser assim. As penas conferiram vantagens pelo isolamento térmico e na competição sexual. Esta característica propagou-se por ser vantajosa naquela altura e não por vir a dar jeito no futuro. E os animais têm fortes instintos reprodutivos não por se preocuparem com as gerações vindouras mas porque descendem exclusivamente daqueles que tinham fortes instintos reprodutivos nas gerações anteriores.

Saliento que não estou a dizer que estes processos podem ser descritos até ao mais ínfimo detalhe apenas pelo que conhecemos do seu passado. A informação de que dispomos é incompleta e há na natureza acontecimentos sem causa e imprevisíveis. Muitos apontam que a ciência não explica tudo, e eu estou de acordo. Não proponho o contrário. O que aponto é que só em alguns processos, como a domesticação ou a olaria, é que conseguimos melhorar os nossos modelos incluindo intencionalidade. Nos outros processos, da queda da pedra à evolução da nossa espécie, assumir que algo os guiou antecipando o resultado final só prejudica o modelo, ou dando previsões erradas ou carregando-o com premissas sem qualquer utilidade.

A evolução por selecção natural é um processo sem propósito. Não é guiada por inteligência nem tem um fim em vista. Acontece a cada momento empurrada pelo que aconteceu antes, como uma avalanche ou um incêndio. E não afirmo isto por mera cegueira ideológica. A ciência que descreve assim a evolução por selecção natural é a mesma que descreve a evolução por selecção artificial reconhecendo nesta o papel crucial da inteligência e dos propósitos que a guiaram. Acontece apenas que estes processos são diferentes.

Adenda ao post anterior.

Só agora reparei neste post do Pedro Sales no Arrastão. Tem uma imagem da capa do “i diário”, que não é graficamente parecido com o jornal i. E tem uma explicação para a queixa da Sojormedia. Essa a empresa ficou com a concessão para vender faixas, lenços e medalhas alusivas à visita papal, pelo que qualquer crítica ao Papa poderia afectar o lucro.

Admito que é subjectiva a minha opinião de que não é fácil confundir com o jornal i este “i diário”, tendo na capa a notícia de duas mulheres casando pela igreja e o Papa a declarar que as mulheres podem ser padres. Admito que um juiz pudesse discordar e exigir a alteração do título. Mas a apreciação dos fiscais da ASAE foi tão subjectiva quanto a minha e, entre o negócio da Sojormedia e a liberdade de expressão, deviam ter presumido a inocência de quem tinha o maior valor em risco. E por valor não me refiro a euros, o que talvez seja o problema logo à partida...

terça-feira, maio 18, 2010

UMAR contra a maré.

No passado dia 10 a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) distribuiu gratuitamente em Lisboa um boletim de protesto intitulado “i diário”. Representava um jornal com notícias obviamente falsas (as mulheres agora podem ser padres e até chegar ao papado, o fim das propinas, o perdão da dívida externa do Haiti e assim por diante) e pretendia chamar a atenção para vários problemas, entre os quais a discriminação sexual na Igreja Católica.

No dia 11 receberam um email da Sojormedia Capital SA, proprietária do jornal i, ameaçando uma queixa crime e alegando que «conceberam e distribuem um jornal intitulado "i diário". Jornal que toma várias posições contrarias à igreja católica em geral e de Sua Santidade o Papa Bento XVI.» A UMAR emitiu imediatamente um comunicado à imprensa esclarecendo que o seu boletim de protesto nada tinha que ver com o jornal i (2).

Mas no dia 12 dois inspectores da ASAE apreenderam todos os boletins da UMAR por crimes de contrafacção e uso ilegal de marca, impedindo a distribuição dos boletins no Porto como a associação tinha planeado.

Além da surpreendente rapidez com que esta nossa força policial correu ao auxílio da pobre empresa milionária e da indefesa Igreja, protegendo-as dos terríveis panfletos desta associação feminista, este caso aponta outro problema preocupante. A ASAE lida com a segurança das actividades económicas e alimentares. E ainda bem. Mas deve restringir-se a problemas de segurança e a actividades económicas e alimentares. Que intervenha quando nos vendem peixe estragado. Ou electrodomésticos contrafeitos que possam electrocutar alguém. Que actue em litígios entre agentes económicos e em casos de segurança económica e alimentar.

Mas a UMAR não estava a vender nada. Não é um agente económico nem pôs em perigo a segurança ou alimentação de ninguém. Os seus boletins eram um protesto político, um exercício de liberdade de expressão. Esses agentes da ASAE decidiram, ou foi decidido por eles, que a liberdade de expressão devia ceder perante o suposto perigo de se confundir um boletim fictício de protesto com um jornal que vende anúncios embrulhados em notícias. E isto só porque os nomes partilham uma vogal que, em princípio, é de todos. Não só me parece uma decisão errada mas, acima de tudo, é uma decisão que só deve ser tomada por um juiz num tribunal competente e nunca pelos fiscais das bolas de Berlim.

Este problema estrutural é difícil de resolver. Infelizmente, por cá só se luta pela “dignidade” quando “dignidade” quer dizer “mais dinheiro”. Há grandes manifestações contra o congelamento dos salários mas poucos se preocupam quando a polícia atropela os nossos direitos. Não só os da liberdade de expressão mas até da propriedade privada (3). Por isso duvido que seja desta vez que uma grande pressão popular mostra às forças policiais que deve proteger os direitos de todos e não os interesses dos mais ricos. Ou sequer dos mais pios.

Mas há outra possibilidade, mais ao meu alcance. E, quem sabe, talvez funcione. Hoje comprei o i para ver quais são as empresas que lá anunciam e que vendem alguma coisa. Gastei um euro, a ver se vale a pena. As três maiores parecem ser a Samsung mobile, o BES e a TMN. Procurei os contactos de imprensa ou relações públicas destas empresas e agora vou mandar-lhes uns emails para tentar sensibilizá-las e para comunicar que não vou ser cliente de quem anuncie no i enquanto a Sojormedia não se corrigir. Sei que estas empresas não têm culpa, nem o jornal i, mas é a única forma de persuadir os donos. E pode ser que mais gente alinhe nisto. Nem deve ser preciso muita gente. Basta um anunciante de peso se mudar para outro lado que a Sojormedia perceberá como atropelar os nossos direitos lhe sai do bolso. Empresas como estas não ligam aos nossos direitos, mas o bolso é sagrado.

Já agora, não faço isto por simpatizar em particular com a UMAR. Concordo com a luta pelos direitos das mulheres mas não conheço a UMAR e não sei se defendem o mesmo que eu. Mas isso não importa porque a liberdade de expressão não é só a liberdade de concordarem comigo. O que importa aqui é não deixar que quem tem dinheiro faça da ASAE outra PIDE.

E é uma experiência social importante. Se um dia estas coisas funcionarem, se quem abusar do poder económico levar um pontapé nos bolsos, pode ser que a nossa democracia passe finalmente a reger-se pelos votos de todos em vez de pelos euros e cunhas de alguns...

Deixo abaixo os contactos que encontrei (para pouparem um euro) e um exemplo de um email que enviei.

Samsung Mobile, relações públicas a cargo da Lift Consulting
TMN, Departamento de comunicação institucional: press@tmn.pt
Banco Espírito Santo, Contactos

«Exmos Senhores,

Escrevo-vos a propósito da publicidade à [...empresa...] publicada no jornal i, porque a Sojormedia, proprietária dessa publicação, recentemente tomou medidas repressivas e injustas contra a associação UMAR censurando um protesto político com a alegação que um boletim satírico gratuito de título “i diário” seria uma contrafacção do seu jornal. Reconheço que a [...empresa...] não é responsável por esta decisão da Sojormedia mas, como clientes dos serviços publicitários do jornal i, queria por este meio sensibilizar-vos para esta situação. Queria também comunicar a minha decisão de não adquirir produtos ou serviços anunciados no jornal i até que a Sojormedia decida respeitar a liberdade de expressão que a todos deve ser reconhecida numa sociedade democrática.

Grato pela vossa atenção e pelo reencaminhamento desta mensagem a quem julgarem apropriado.

Com os meus melhores cumprimentos [...]»


1- Público, UMAR “chocada” com queixa crime da Sojormédia depois de distribuição de boletim “i diário”
2- UMAR, Comunicado da UMAR - Exemplares do “i diário” apreendidos pela ASAE
3- Arrastão, Liberdade de expressão? Claro. Mas só depois de Sua Santidade ir embora.

segunda-feira, maio 17, 2010

Patentes e software.

Uma patente é um monopólio sobre a utilização de uma inovação, concedido em troca da publicação detalhada daquilo que se inventou. O nome vem da mesma raiz do adjectivo, “patente”, que qualifica algo visível a todos, porque é precisamente esse o seu propósito. A concessão de patentes visa incentivar a divulgação das invenções cobertas.

Um exemplo histórico é a “Carta de Patente” concedida por Henrique VI a João de Utynam, em 1449. O rei britânico concedeu ao artífice, por um período de vinte anos, o direito exclusivo de usar a técnica de fabrico de vidro colorido que este trouxera da Flandres. Em troca, o vidreiro teria de ensinar a técnica aos artesãos locais. Teria de tornar patente, aberto a todos, aquilo que de outra forma ficaria em segredo. Esse foi o propósito original das patentes e é ainda o mais importante.

Outro efeito do sistema de patentes é incentivar o investimento em inovações que sejam muito dispendiosas de desenvolver. Mas este incentivo é relevante apenas em áreas muito restritas. Como na indústria farmacêutica, por exemplo, onde se exige testes clínicos dispendiosos antes de autorizar a venda de um fármaco, sendo preciso compensar esse investimento privado cedendo algo em troca. Mas à parte de casos extremos como este, a vantagem de inovar é incentivo suficiente para investir em investigação e desenvolvimento e não é necessário conceder monopólios.

Além disso, conceder um monopólio incentiva essa inovação à custa de impor restrições a outras inovações possíveis. E quanto mais patentes se concede maior é esse desincentivo. Por isso a concessão de patentes devia ser muito limitada excepto se necessária para que o invento seja revelado. Quando o segredo é a alma do negócio é que vale a pena comprar a alma do negociante pagando a patente.

Na prática foi assim durante muito tempo. Tradicionalmente, as patentes cobriram processos de fabrico ou transformação de bens materiais que seriam fáceis de manter secretos e cujo âmbito era restrito e bem definido. A patente cobria aquele produtos químico, o fabrico daquela máquina e assim por diante. Leis naturais, descobertas e conceitos abstractos estavam fora do sistema não só pela sua amplitude mas também por não ser preciso comprar o segredo a ninguém. Mas isto mudou radicalmente nos últimos anos com as patentes sobre software (1), tão prejudiciais quanto absurdas.

A patente só cumpre o seu propósito se houver uma diferença clara entre a invenção e a descrição da invenção. Henrique VI concedeu um monopólio sobre o fabrico do vidro e, em troca, recebeu uma descrição detalhada de como o vidro se fabrica. Mas um programa informático é a descrição formal de funções algébricas, escrita numa linguagem que o computador pode interpretar. Por isso uma patente de software concede um monopólio sobre a mesma descrição que a patente devia tornar acessível. É um negócio absurdo. Não só por ser desnecessário pagar a quem vende software para que divulgue os algoritmos, pois estes estão descritos em detalhe em cada ficheiro vendido, como porque se paga essa descrição cedendo todos os direitos sobre ela. É como dar dinheiro ao padeiro, deixar lá o pão e ainda prometer não comer pão durante vinte anos.

O problema fundamental de aplicar estes mecanismos à informática, tanto patentes como copyright, é que todo o conteúdo digital é álgebra. São números e operações sobre esses números num formalismo em que dados e processos não se distinguem (2). Uma função algébrica é redutível a um número, um número é redutível a uma função algébrica, e a correspondência entre ambos é arbitrária. Por isso é impossível fixar que número corresponde a que processo ou à descrição de que obra, quais os números que são dados e quais são algoritmos e que números hão de pertencer a que inventor ou empresa.

E há duas razões para verem nisto mais do que a divagação ociosa de um blogger à procura de tema. Estas leis e decisões judiciais impõem restrições às contas que é legal fazermos com os nossos computadores, aos números que neles guardamos e à informação que trocamos entre nós. Não são leis só para quem tem fábricas ou empresas. São leis que nos afectam a todos. E, pior ainda, esta situação tem sido criada, e continua a ser agravada, à margem da democracia. É tudo decidido por lobbies, dos clubes de vídeo à Microsfot, e por advogados cujos honorários dependem muito mais dos litígios que da inovação tecnológica. Convém lembrar-lhes que a álgebra é de todos.

1- Não só pela sua natureza como pelo número. Se tiverem uns minutos, este documentário vale bem a pena.
2- Por estranho que pareça, matematicamente números inteiros ou operações sobre números inteiros são o mesmo. Sobre isto, recomendo este artigo no GrokLaw. É extenso e algo técnico mas excelente para perceber o que é a informática e porque isso importa para estas coisas.

sábado, maio 15, 2010

O como, o porquê, e o disparate.

Uma alegação comum, para não dizer vulgar, é que a ciência apenas nos diz o como das coisas e não o porquê. A ciência, segundo alguns, não pode explicar propósito, finalidade nem sentido naquilo que encontramos. O que é obviamente falso. A história, a antropologia e a paleontologia fazem parte da ciência e lidam muitas vezes com essas questões. Quando um paleontólogo estuda uma ponta de seta não considera apenas como foi feita mas também o propósito do seu fabrico e o significado que teria na sociedade que a criou.

A razão pela qual a ciência muitas vezes revela apenas o como e não porquês ou propósitos é estes não existirem. Muito no universo acontece por sequências naturais de acontecimentos que não visam propósito nem constituem sentido. Como a evolução. E a evolução dos parasitas tem bons exemplos de “comos” obviamente desprovidos de “porquês”.

Loa loa, ou verme dos olhos, é o nome africano para várias espécies de nemátodo (Wuchereria bancrofti, Brugia spp., Onchocerca volvulus e Mansonella spp., 1) que vivem nos tecidos subcutâneos dos hospedeiros humanos. Têm esse nome por serem mais visíveis quando passeiam nas membranas conjuntivas dos olhos. Os adultos destas espécies espalham os seus rebentos, microfilárias, pelo sangue do hospedeiro. Moscas que se alimentam de sangue depois ingerem algumas destas larvas, que perfuram o aparelho digestivo do insecto e se alojam nos músculos. Passam aí uma parte da sua fase larvar e, quando mais crescidas, migram para a cavidade bucal da mosca de onde saltam para o próximo infeliz que for picado.

Outro verme parasita, Leucochloridium paradoxum, vive em adulto na cloaca de pássaros. Os adultos são multicelulares e reproduzem-se sexualmente, espalhando os ovos com as fezes dos hospedeiros. Alguns ovos acabam no sistema digestivo dos caracóis da espécie Succinea putris, por um processo óbvio que é escusado descrever tão perto da hora do jantar. Dos ovos eclodem os miracídios, uma forma unicelular do verme, que se desenvolvem num longo esporocisto onde nascem dezenas de milhar de cercárias, uma forma larvar multicelular gerada por reprodução assexuada mas que se vai desenvolver na forma adulta, sexuada.

O esporocisto é um saco inchado, colorido e pulsante que se aloja num dos tentáculos dos olhos do caracol, de preferência o esquerdo. Isto reduz a sensibilidade do caracol à luz e altera o seu comportamento. Enquanto um caracol saudável prefere sítios escuros, o caracol infectado sobe para as partes mais iluminadas, e expostas, das plantas. Além disso, o esporocisto colorido e pulsante – que se agita quando exposto à luz – atrai a atenção dos pássaros que acabam por comer o caracol e ingerir uma molhada de cercárias que o irão acompanhar durante os tempos que se seguem e repetir o ciclo (3).

Como é comum nos parasitas, estes nemátodos são especialistas no que fazem, com ciclos de vida complexos e bem adaptados a cada hospedeiro e cada fase do seu desenvolvimento. E a teoria da evolução permite compreender como isto surgiu. A cada geração, milhares de milhares de milhões de ovos e larvas com ligeiras diferenças entre si são espalhados por folhas, caracóis, pássaros e o que mais calhe. A selecção natural filtra radicalmente estes grandes grupos, deixando vingar apenas uma fracção ínfima do total. Os erros de cópia do ADN e a reprodução sexuada mantêm a diversidade e este ciclo repete-se por milhões de gerações. Um processo destes inevitavelmente gera um grande leque de especializações extraordinárias.

Mas enquanto o “como” se vai descobrindo, perguntar pelo “porquê” ou pelo “sentido” disto só merece uma gargalhada. A hipótese destas coisas fazerem parte de um plano inteligente não é meramente supérflua. Nem sequer é apenas falsa. É uma hipótese francamente ridícula. E quem defende que os seres vivos não podem ser produto de processos naturais mas têm de ser obra de um projectista inteligente só tem duas opções. Ou abdica da honestidade intelectual ou conclui que o hipotético projectista não joga com o baralho todo.

1- Wikipedia, Loa loa filariasis
2- Quem quiser ver uma foto de um verme dentro do olho de uma pessoa, está aqui.
3- Algumas imagens na página do Erich Heise, Insane Snail Parasite

quinta-feira, maio 13, 2010

Próximas.

Amanhã vou participar no ciclo de conferências «Ateísmo, Laicismo e Anti-clericalismo em Portugal», organizado pela AAP e a Biblioteca-Museu República e Resistência. Vai ser às 18:00, nas instalações da Biblioteca-Museu República e Residência – Espaço Cidade Universitária. Fica perto da Faculdade de Farmácia e do hospital de Santa Maria, em Lisboa (Rua Alberto de Sousa, 10 – A). Vou falar sobre o que sabemos dos deuses e como sabemos que Deus não existe (sim, sabemos, no mesmo sentido em que sei que não tenho gorilas no frigorífico).

E na próxima quinta-feira vou estar na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, num debate sobre «Religião e Ateísmo» com o padre José Nuno, capelão do hospital de São João.

cartaz

Editado no dia 14 para especificar melhor o sítio. Obrigado ao Nuno pela dica.

A palavra de Deus.

a unica e verdadeira

quarta-feira, maio 12, 2010

Como usar o Facebook.

Sou um novato no Facebook. Não tenho dicas para plantar couves mais depressa ou esconder carros blindados. Mas tenho uma ideia do que está por trás da interface e para onde vai cada click, foto e tecla que lhe mandamos.

A primeira impressão que temos quando criamos uma página no Facebook é que nos tornámos clientes de uma grande empresa que nos presta esse serviço. Gratuitamente. Maravilha. É uma impressão errada. O Facebook, tal como o Blogger, o YouTube, o Google e tantos outros, são empresas e têm clientes, é certo, mas os clientes não somos nós. São quem lhes paga os anúncios. Nós somos o produto. O Facebook é uma frota de pesca, as empresas que lá anunciam compram o peixe e nós somos sardinhas. Pensem nisso sempre que lá forem. “Sou uma sardinha; isto é a rede”. É meio caminho andado para evitar dissabores.

Outra falsa impressão é a do Facebook ser um sítio onde conversamos com amigos e lhes mostramos coisas giras. Daquelas que se mostra a amigos, em sussurros no café ou gargalhadas na sala de estar. Mas enquanto nós queremos partilhar certas coisas só com algumas pessoas, ao Facebook interessa é atrair gente com os detalhes da nossa vida privada. Quanto mais olhos mais anúncios e mais negócio. É por isso que as opções de privacidade estão todas, por omissão, no equivalente WWW das cuecas à mostra*. E se bem que haja muitas opções para trancar e isolar a informação (1), no fundo vai tudo parar aos servidores do Facebook e eles lá fazem daquilo o que quiserem.

E lembrem-se do logout. É no menu “Account”, a última opção. Depois de ver o que os amigos andaram a fazer, responder a comentários e pedir um balde para ordenhar a vaca é sempre bom terminar a sessão. Não só evita que alguém use o computador para remodelar o vosso perfil mas também que o Facebook vos siga pela Internet e vá instalando coisas sem que lhe peçam. Um “erro”, segundo os responsáveis (2), mas “erros” destes acontecem com alguma frequência. E descuidar-se na 'net é como descuidar-se na piscina. Espalha-se e pronto, não há nada a fazer (3).

Não quero dizer que o Facebook seja mau. Apenas que é público. Aquelas opções todas parecem proteger os nossos dados mas, na realidade, tudo o que lá pomos deixa de estar sob o nosso controlo. Ainda assim, o Facebook é bom para encontrar pessoas que já não vemos há tempos, fazer novos amigos, partilhar ideias e discutir coisas. Só não é o sítio certo para contar a bebedeira da semana passada, dizer com quem se namora ou deixou de namorar, nem mostrar fotos que não se quer que o patrão veja. Se encararmos todas estas redes sociais como sítios públicos (4) podemos tirar bastante proveito delas sem chatices. Nem é preciso andar disfarçado. Basta só partilhar lá o que não nos importaríamos de partilhar com estranhos na rua.

*Sei que hoje em dia isso já não quer dizer muito, mas foi a analogia que me ocorreu. Estou a ficar velho...
1- AllFacebook, 10 New Privacy Settings Every Facebook User Should Know
2- MacWorld, Facebook's new features secretly add apps to your profile
3- The Independent, Facebook can ruin your life. And so can MySpace, Bebo...
4- Pelo menos até o Diaspora estar operacional.

Campanha de Apostasia 2010

OK, este ainda tem que ver com a visita do Papa, em parte, mas é um comunicado da AAP. Eu preferia que a ICAR me excomungasse logo e dispensasse a papelada. Afinal nego o Espírito Santo, a divindade de Jesus e a autoridade do Papa. Até nego São Brás da Murrunhanha, se for preciso. Mas se querem tudo no papel, seja. Lá vou ter de descobrir onde me baptizaram...

Campanha de Apostasia 2010

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP), com a chegada de Joseph Ratzinger a Portugal, junta-se aos diversos protestos da sociedade civil no que diz respeito à forma como o papa católico está a ser recebido pelas entidades oficiais;

Reitera o seu repúdio em relação à tolerância de ponto e aos privilégios concedidos pelo Estado à Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), violando grosseiramente os princípios laicos da Constituição da República Portuguesa e agravando a difícil situação económica e social do País;

Considera inoportuna a visita de Joseph Ratzinger neste momento quando, a nível internacional, no meio de tantos escândalos de pedofilia e do seu encobrimento, está abalado o seu prestígio.

Neste sentido, a AAP começa por recordar que:

Apenas cerca de 18 por cento dos portugueses se afirmam como “católicos praticantes”, um número que tem vindo a diminuir de forma consistente ao longo dos anos;

Desde 2007 existem por ano mais casamentos civis do que religiosos;

Desde 2008 cerca de um terço dos nascimentos ocorrem inclusive fora do casamento, segundo dados do INE.

Estes números ilustram uma clara e progressiva secularização da sociedade Portuguesa, de todo incompatível com a encenação pia levada a efeito com a cumplicidade e a expensas do estado laico.

Assim, de acordo com a referida secularização da sociedade, a AAP toma a iniciativa de lançar, no mesmo dia em que Joseph Ratzinger aterra em Lisboa, uma “Campanha de Apostasia 2010“, a nível nacional, por forma a que todos aqueles que foram baptizados, e que hoje em dia não se consideram católicos, possam agir em conformidade e deixar de ser contabilizados para efeitos estatísticos pela ICAR. Esperamos, assim, ajudar a evitar o uso abusivo desses números por parte da Igreja, na sua tentativa de tentar usufruir e reclamar privilégios injustos e injustificáveis.

Pedimos a todos a divulgação da presente “Campanha de Apostasia 2010″. Aos interessados basta seguir as instruções abaixo indicadas. Neste ano de centenário, todos juntos poderemos contribuir para uma República mais justa, sempre fiel aos seus princípios laicos.

Apresentamos os nossos melhores cumprimentos,

Associação Ateísta Portuguesa, 11 de Maio de 2010


INSTRUÇÕES:

1) Preencher correctamente este documento. [pdf]

2) Descobrir a data e a paróquia de baptismo (informação a preencher na carta indicada). Alguns locais onde pode encontrar esta informação: certificado de baptismo; livrete de casamento dos pais; no próprio livrete de casamento (quando casado pela igreja).

3) Pedido endereçado ao actual padre da paróquia de baptismo, e duplicados enviado “com conhecimento” para a diocese correspondente e para o bispo do qual depende a paróquia em questão, sempre acompanhado de cópia do cartão de cidadão/bilhete de identidade. Ao pedido deve seguir-se uma carta da própria paróquia a confirmar a renúncia ao baptismo. Se a resposta tardar, poderá ser necessário novo pedido com recomendação de resposta.

terça-feira, maio 11, 2010

A lei de Poe

Quando a religião é levada suficientemente a sério, torna-se impossível de distinguir da paródia. E esta lei não se aplica só à conversa do Jónatas acerca dos leões e melancias:

«18.00 - Nuno Gomes e Rui Costa oferecem ao Papa uma camisola do Benfica, que diz Bento e é o número 16.»

No Diário de Notícias

Pronto, acabo com as coisas do Papa por agora que também já eu estou farto...

Treta da semana: medidas de segurança.

É verdade. Outro post sobre a visita do Ratzinger. Na maior parte dos casos estas tretas de superstições e religiosices não me afectam pessoalmente, o que me deixa à vontade para ir variando os temas. Criacionismos, copyright, evolução, copyright, religião, copyright, e assim. Mas esta semana estão a despejar a treta em cima de mim e tenho de desabafar.

Hoje só dei aulas de manhã porque fecharam a faculdade de tarde, por motivos de missa. Ao chegar de autocarro ao Campo Pequeno a polícia mandou o motorista dar uma curva, literalmente, e só depois de alguma pedinchice é que o deixou ir até à paragem. Para mim não teve problema porque planeava apanhar aí o Metro, mas muita gente ficou sem forma de chegar ao Areeiro.

Passando umas dúzias de velhotas com bandeirinhas, desci para a estação do Metro e deparei-me com uma medida de segurança engraçada. Os caixotes do lixo na estação do Campo Pequeno estavam cobertos com folhas de plástico transparente, coladas à parede com fita-cola.

protegido contra terroristas

Fiquei sem saber se era por terem dado tolerância de ponto ao pessoal da limpeza ou se era para impedir qualquer plano terrorista que exigisse reunir, in situ, bilhetes usados e pauzinhos de gelado. Depois, já no comboio parado na Cidade Universitária, deparei-me com outra medida de segurança menos engraçada mas não menos misteriosa. A circulação do Metro foi interrompida devido à visita papal. Parece que sempre que o papamóvel passa numa estrada ao longo da rede do Metro os comboios têm de parar. Ninguém explicou porquê. Talvez tenham medo que dê azar ou que a tremura faça cair o Espírito Santo das hóstias. Ou talvez a resposta esteja em algum filme do Bruce Willis que o director da polícia viu recentemente.

Este é o tipo de tretas que o Bruce Schneier chama Security Theater(1). Medidas concebidas para derrotar planos fictícios e incomodar as pessoas sem contribuir para a segurança de ninguém. Eu passei por lá com a mochila cheia de tralha. Em vez de um portátil, uma camisola e livros podia ter granadas ou barras de dinamite que ninguém dava por nada. E o dispositivo implementado para proteger o Papa de um hipotético terrorista com um carro armadilhado consistia numa senhora fardada, o seu apito e meia dúzia de velhotas com bandeirinhas. Ah, e caixotes do lixo plastificados.

É claro que esta presença policial tem a sua função. E não é só fazer inchar o peito aos chefes. A «Igreja acredita que não vai haver manifestações hostis ao Papa durante missa», segundo noticia a agência Ecclesia (2). A Antena 1 explica a razão desta crença. As manifestações estão proibidas e «qualquer movimentação não validada é alvo de intervenção imediata por parte das forças de segurança»(3). E se bem que o prejuízo seja significativo – entre barcos de guerra, aviões e helicópteros, polícia por toda a parte e, especialmente, tolerâncias de ponto, são um setenta milhões de euros (4) – a polícia sempre ajudou o negócio da Eliane, que tem uma banca de gelados no Jardim do Ultramar. Se não fosse haver tantos polícias por perto a coitada não tinha vendido nada (5).

Já que virei a conversa para o dinheiro, deixo uma sugestão. Quando passarem estes feriados de improviso e quando alguém na polícia tiver tempo para fazer outras coisas, podiam perguntar aos senhores da Estradas de Portugal porque é que pagaram ao Patriarcado de Lisboa mais de um milhão de euros por mil metros quadrados de terreno na Buraca (6). Afinal, o próprio Papa disse hoje que a Igreja «tem profunda necessidade de penitência, de aceitar a purificação, de pedir perdão e que se faça justiça»(7). E se começassem a cortar nas maroscas também não era mal pensado.

Mas talvez venha alguma coisa positiva daqui. Não que valha a despesa e o incómodo, mas no caminho para casa pareceu-me haver mais gente chateada com este disparate todo do que com bandeirinhas à espera do Ratzinger. Talvez o efeito mais duradouro do espectáculo seja uma pequena redução nas tretas que temos de aturar.

1- Wikipeda, Security theater, e também no original.
2- CatInfor, Lisboa: Igreja acredita que não vai haver manifestações hostis ao Papa durante missa
3- RTP, Visita do Papa: meios das operações de segurança
4- SIC, Papa €uros. Obrigado ao Tito pelo link.
5- Expresso, Belém: Mais polícias do que fiéis
6- I, Igreja recebe mais de um milhão por terreno do tamanho de piscina olímpica
7- Expresso, "Igreja tem profunda necessidade de pedir perdão"

segunda-feira, maio 10, 2010

Jogar sem bola.

Na sua coluna no DN, o João César das Neves faz uma analogia engraçada entre futebol e religião. «Imagine uma pessoa que assiste a um jogo de futebol sem conseguir ver a bola. […S]ofrendo de uma estranha forma de daltonismo, não vislumbra a pequena esfera de couro que prende a atenção de toda a gente. […] Esta é a situação de grande parte dos debates, públicos e privados, sobre a próxima vinda do Papa. [...Q]uase todos, seguidores ou adversários, passam ao lado do elemento central, da única coisa que, de facto, tem algum interesse neste homem e que, mesmo inconscientemente, focaliza a atenção geral. [...A]quela pessoa frágil, sorridente e tímida, tão fascinante para uns e irritante para outros, é o 265.º vigário de Cristo na Terra.»(1)

Em sete parágrafos, César das Neves mói e remói a ideia de que o que importa é Deus mas os ateus como eu são estranhos daltónicos que não vêem a bola.

Mas se eu fosse esse estranho daltónico, mesmo não vendo a bola veria que todos os jogadores olhavam para o mesmo sítio, que só um chutava de cada vez e que todos sabiam onde a bola andava. Se pedisse à pessoa à minha esquerda para apontar para a bola, ela apontaria para o mesmo sítio que a pessoa à minha direita. E podiam atirar-me uma bolada à cara ou pôr-me a bola nas mãos. Podia sentar-me nela, chutá-la contra uma janela e ver o vidro partir e uma data de coisas que, em conjunto, tornariam irrelevante o meu estranho daltonismo. Porque se essa bola existisse, e se fosse possível saber que existia, eu até podia ser cego que conseguiria reunir as evidências necessárias para o demonstrar conclusivamente.

O problema é que as religiões jogam sem bola. Os jogadores chutam o ar deambolando pelo campo, os árbitros discutem se a bola é redonda ou quadrada e, nas bancadas, uns gritam golo, outros gritam que não é e outros tentam saber o que é isso dos golos. O Papa é um comentador deste jogo, um perito naquilo que nem ele nem ninguém sabe como é.

Há séculos que a ciência lida com coisas que não vemos. Não vemos átomos nem electrões, não vemos ondas rádio nem a força da gravidade. Não vemos o centro da Terra, nem vírus, nem proteínas nem a formação dos planetas. Mas conseguimos saber muito acerca disso tudo porque é real e porque exploramos hipóteses que a realidade pode derrubar se estiverem erradas.

As religiões só inventam. Cada uma para seu lado, com revelações, corações, intuições e confusões, criam e agarram-se a ideias que não sabem nem podem saber se são verdade. E passam o tempo a dizer que marcam golos quando ninguém sabe da bola.

1- DN, Revelar os corações

domingo, maio 09, 2010

Tolerância.

Há muitas crenças, disposições e comportamentos que podemos adoptar sem que seja necessário estarmos todos de acordo e sem que as escolhas de uns interfiram na liberdade dos outros. É perfeitamente viável uns acreditarem que o casamento só é legítimo entre pessoas da mesma cor ou do sexo oposto, e outros discordarem, sem que ninguém seja impedido de casar com quem ama, obrigado a casar com quem não quer ou proibido de ter a opinião que tem. A liberdade de crença e de expressão, a liberdade de se ser quem se é e, em geral, a liberdade de fazer o que não impede, obriga ou prejudica os outros, fazem parte desta categoria. Nestes casos não há problema em aceitar diferenças de valores nem é preciso limitar as escolhas de ninguém.

Depois há comportamentos que restringem a liberdade de terceiros mas que seria ainda pior reprimí-los por coacção. O marido que diz que vai comprar tabaco e nunca mais volta está a enganar a mulher mas não se justifica prendê-lo por isso. Por vezes é difícil decidir se é melhor castigar ou deixar fazer. Nem sempre se vê uma divisão clara entre esta categoria a aquela dos comportamentos que são claramente de combater, até pela força. Mas apesar desta fronteira não ser consensual, há um grande conjunto de disposições, opiniões e comportamentos que é claramente melhor permitir que proibir.

É aqui que a tolerância é uma virtude. Não vamos tolerar que violem crianças ou que escondam tais crimes. Mas devemos tolerar aquilo que não se imponha contra a vontade dos outros ou que, se afectar direitos de alguém, que seja por tão pouco que não justifique medidas coercivas. Se este gosta mais de homens ou de mulheres, se aquele acredita que a Terra foi criada na terça-feira passada ou o outro diz à mãe que vai estudar com um amigo quando vai a um concerto, é deixá-los.

Este dever de tolerância não vem de concordarmos com o que toleramos nem de algum respeito abstracto pelos valores ou crenças dos outros. Podemos tolerar discordando e até considerando os valores desprezíveis e as crenças ridículas. E podemos tolerar criticando, apontando defeitos e dizendo o que pensamos. Ser tolerante não implica morder a língua nem acenar que sim. Implica apenas reconhecer que não é legítimo impor os nossos valores aos outros senão para impedir uma imposição ainda maior da parte deles, ou sobre nós ou sobre terceiros.

Isto vem a propósito de um comentário do Miguel Panão, um de vários comentadores que se queixam de eu ser intolerante quando critico as crenças que eles defendem (mas nunca, admito, quando critico outras). Escreveu o Miguel Panão que «O que é intrínseco à vivência Cristã não precisa de ser assinado, mas vivido e testemunhado. Quem não vê isso, só pode ser intolerante.»(1) Não. A intolerância não tem nada que ver com isso.

Eu posso não ver nada da “vivência Cristã” sem ser intolerante. Ou posso ver lá muita coisa e achar que é tudo disparate, o que também não faz de mim intolerante. Não há intolerância nenhuma em criticar o que me parece treta nem em achar que as crenças do Miguel são mera superstição. O Miguel diz que eu sou assim por «falta de um experiência religiosa séria» e não o chamo intolerante por isso. Mesmo apesar de me parecer que uma experiência religiosa só pode ser trágica ou cómica, e nunca séria no sentido de genuíno e correcto que o Miguel parece sugerir. E nada nestas críticas que fazemos um ao outro é intolerância porque nada disto nos restringe de forma alguma ou nos impõe o que quer que seja.

Um exemplo de intolerância é fechar escolas. É fechar ruas ao trânsito. É interromper a circulação do Metro, impedir pessoas de trabalhar e gastar dinheiro que é de todos em segurança e aparato só porque alguns querem uma missa no Terreiro do Paço em vez de a fazer em Fátima ou onde não incomode tanto. Ao contrário do Miguel, não classifico isto de intolerância só por discordar ou por não terem uma “vivência” como a minha. Isto é intolerância porque impõe restrições a quem não quer ter nada com o assunto e desrespeita o direito de não ser incomodado pela “vivência Cristã” dos outros.

Não quero dizer que o Miguel Panão seja intolerante. Sozinho pouco pode fazer. Mas a Igreja dele é intolerante porque, sempre que pode – e os exemplos abundam – impõe regras arbitrárias sobre comportamentos pessoais. Na sexualidade, no casamento, no divórcio, na contracepção, na educação das crianças e assim por diante. E o Miguel, ao classificar de intolerantes os que não partilham a sua religião ou criticam a sua crença, revela seguir o mesmo caminho. Tal como a Igreja Católica, só não é intolerante quando não o deixam ser e, se tivesse esse poder, não ia respeitar nos outros o direito de discordar dele. Porque, para ele, isso é que é intolerância.

Há quem ache que não vale a pena defender o ateísmo em voz alta agora que vivemos numa sociedade democrática e cada um tem o direito de dizer e acreditar o que quiser. Mas é necessário. E continuará a sê-lo enquanto houver quem julgue que intolerância é criticar crenças ou protestar se nos fecham as escolas e cortam as estradas por causa de uma missa.

1- Comentário em Os papamóveis

sábado, maio 08, 2010

Como criar a palestra perfeita.



E aqui está o TEDPad.

Via Facebook (quando me enviam ou encontro coisas na 'net identifico a fonte e deixo uma ligação; e quando me enviam algo por email, que é privado, não digo de quem vem. Mas com o Facebook não sei o que fazer, por isso vou considerar que é privado, à cautela...)

sexta-feira, maio 07, 2010

Treta da semana: Melancias.

Segundo o Jónatas Machado, antes de Adão comer a maçã não havia morte nem violência no paraíso e os leões comiam «Relva e outras plantas e frutos. Por exemplo, os seus dentes fariam certamente muito jeito para abrir melancias, abóboras ou ananáses...»(1).

Certamente. Muito jeito. Eu, quando penso em abrir melancias ou descascar um ananás, a primeira coisa que me ocorre é um utensílio destes:

descascador

Aqueles caninos protuberantes, hoje usados para perfurar e prender o infeliz almoço, serviam originalmente para retirar as pevides da melancia, com delicadeza, para o leão degustar o suculento fruto. E, por sorte, os músculos que o deus do Jónatas concebeu inteligentemente para abrir melancias servem igualmente bem para partir o pescoço às zebras. Se não fosse a excepcional resistência das melancias do Éden, hoje em dia os leões iam ver-se aflitos para comer.

Outro animal que transpira vegetarianismo é o tubarão. O megalodon, em particular, nunca deve ter comido outra coisa senão verduras, porque se extinguiu há cerca de um milhão e meio de anos. Muito antes do pecado original. Aliás, muito antes da criação do universo. A cronologia criacionista é quase tão confusa como o seu nutricionismo. Os paleontólogos ateus darwinistas evolucionistas hereges olham para umas mandibulas como estas e julgam que o animal era carnívoro. Que ideia, animais carnívoros com dentes assim...

ralador

É óbvio que o megalodon comia exclusivamente algas. Sabemos isto, com toda a certeza, porque o Jónatas o leu num livro e nos assegura que era mesmo assim. A razão desta dentição é que o bicho gostava das algas cortadas fininho, como aquelas deliciosas saladas dos restaurantes japoneses. E com um corpanzil de setenta toneladas precisava de várias fileiras de dentes para despachar a preparação, senão morria de fome enquanto fazia o almoço.

Com o que tenho encontrado nas internets já não me surpreende a crença em tais disparates. Ainda estranho a inconsistência dos que afirmam, com igual certeza, que o Papa não é infalível mas a Terra tem só dez mil anos ou que a astrologia é ficção mas a hóstia se transubstancia mesmo. Faz-me suspeitar que mesmo quando têm razão só acertam por acaso. Mas o que mais me causa admiração – aquela do queixo caído, não a outra do aplauso – são estes exemplos de convicção tão extrema que nem a noção do ridículo sobrevive.

1- Comentário em Os papamóveis.

quinta-feira, maio 06, 2010

Os papamóveis.

Não me refiro ao caruncho mas sim aos carros blindados que o Papa usa para se deslocar entre os fãs. Segundo noticia o DN, dois agentes do Corpo de Segurança Pessoal da PSP embarcaram num avião de transporte da Força Aérea Portuguesa (FAP) para ir ao Vaticano buscar os carros do Joseph Ratzinger (1). Estas viaturas foram concebidas especialmente para garantir a segurança e o espectáculo, com o representante oficial de Deus sentado numa cadeira, elevada hidraulicamente, dentro de uma caixa de vidro à prova de bala (2).

papamóvel

Como os pára-raios nas igrejas, isto faz lembrar sempre aos ateus que fé e confiança não são sinónimos. Mas isso compreendo. Como o Miguel Panão já explicou aqui várias vezes, o deus sofisticado do católico moderno age sem intervir no espaço de possibilidades da Natureza. Ou seja, tanto faz se existe ou não que o resultado é o mesmo. Por isso serve bem para rezas e missas mas, quando o problema é balas, o vidro laminado torna-se a melhor opção.

No entanto, carros com vidro à prova de bala temos que chegue por cá. A segurança do Joseph Ratzinger, mesmo sem protecção divina, pode ser adequadamente garantida com os recursos disponíveis em Portugal sem ser preciso enviar agentes ao Vaticano, e um avião de transporte, para trazer esses carros. E, provavelmente, levá-los de volta no fim da festa. Pago por nós. É que transportar carros de avião não sai nada barato. Além disso, estes C-130 da FAP têm quase a minha idade e não são nada amigos do ambiente. Mesmo que o PEC tenha uma clausula permitindo esbanjar dinheiro em crendices, parece-me que a despesa e a “pegada” de CO2 não são justificadas pela dúbia vantagem de ver o Ratzinger numa cadeira elevada dentro de um aquário. A segurança, o orçamento, o ambiente, a dignidade do personagem e até, lamento dizer, a estética, saiam todos a ganhar se o ilustre visitante fosse conduzido num carro diplomático com vidros escuros.

E outra coisa me preocupa nisto. «Ao que o DN também apurou, [os dois agentes da PSP enviados para ir buscar os carros] são católicos praticantes e casados pela Igreja.» Pode ter sido coincidência. Talvez sejam católicos praticantes casados pela Igreja como poderiam ser divorciados, viver com a namorada ou namorado, serem protestantes, budistas, agnósticos ou ateus. Mas gostava de saber se foi mesmo coincidência ou não. Porque se a PSP selecciona os agentes para estas missões com base nestes aspectos da sua vida privada, como a religião que professam, se a praticam com assiduidade e se o seu estado civil é reconhecido por uma organização religiosa, então o problema já vai além do mero desperdício idiota.

1- DN, 4-5-2010, Agentes católicos vão buscar papamóveis, via Diário Ateísta
2- Wikipedia, Popemobile

quarta-feira, maio 05, 2010

Biscate.

Para quem tem tolerância de ponto no dia 14, uma oportunidade de fazer alguns trocos empregando-se como «Apoiante ao Papa Bento XVI, na sua missão ao Porto».

Entregam:

«1 T'shirt alusiva ao evento (ficará de recordação para os participantes)
1 bandeira alusiva ao evento (deverá devolver à agência)»


Não esperem mais. Inscrevam-se já:

Apoio ao Papa Bento XVI - Porto.

Pode dar jeito aos muitos que vão ter de faltar ao emprego e perder um dia de férias ou de ordenado para cuidar dos filhos porque a escola fechou.

Obrigado ao Nuvens de Fumo pela notícia do Sapo e ao Alexandre Pinto por ter desencantado esta fantástica oferta de emprego. Actualização: São dezassete euros e meio.

Adenda: o anúncio original já foi retirado, mas o Pedro Amaral Couto encontrou-o noutros lados:
net.empregos
lisboacity.olx.pt
gratispt.com.

E o Jairo Entrecosto chamou a atenção para o comunicado da comissão organizadora da visita do Papa. O comunicado salienta que a comissão não tem nada que ver com isto, apesar de ninguém ter dito que tinham... Mas também me parece que não deve ter sido iniciativa deles. «Milhares de voluntários associaram-se a este momento sem receberem nada em troca» está mais de acordo com a forma como a ICAR opera.

Petição «Cidadãos pela Laicidade»

Devia ter posto isto ontem mas, infelizmente, calhou mesmo no dia em que dou aulas até mais tarde e na véspera do dia em que as começo mais cedo. Não sei se o Joseph terá metido uma cunha com o chefe dele...

Senhor Presidente da República Portuguesa,

Nós, cidadãs e cidadãos da República Portuguesa, motivados pelos valores da liberdade, da igualdade, da justiça e da laicidade, manifestamos, através da presente carta, o nosso veemente protesto contra as condições – oficialmente anunciadas – de que se revestirá a viagem a Portugal de Joseph Ratzinger, Papa da Igreja Católica.

Embora reconhecendo que o Estado português mantém relações diplomáticas com o Vaticano e que a religião católica é a mais expressiva entre a população nacional, não podemos deixar de sublinhar que ao receber Joseph Ratzinger com honras de chefe de Estado ao mesmo tempo que como dirigente religioso, o Presidente da República Portuguesa fomenta a confusão entre a legítima existência de uma comunidade religiosa organizada, e o discutível reconhecimento oficial a essa confissão religiosa de prerrogativas estatais, confusão que é por princípio contrária à laicidade.

Importa ter presente que o Vaticano é um regime teocrático arcaico que visa a defesa, propaganda e extensão dos privilégios temporais de uma religião, e que não reúne, de resto, os requisitos habituais de população própria e território para ser reconhecido como um Estado, e que a Santa Sé, governo da Igreja Católica e do «Estado» do Vaticano, não ratificou a Declaração Universal dos Direitos do Homem – não podendo portanto ser um membro de pleno direito da ONU – e não aceita nem a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nem do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, antes utilizando o seu estatuto de Observador Permanente na ONU para alinhar, frequentemente, ao lado de ditaduras e regimes fundamentalistas.

Desejamos deixar claro que, se em Portugal há católicos dos quais uma fracção, mais ou menos importante, se regozijará com a visita de Joseph Ratzinger, há também católicos e não católicos para quem o carácter oficial da visita papal, o seu financiamento público e a tolerância de ponto concedida pelo Governo, são agressões perpetradas contra os princípios de laicidade do poder político que a própria Constituição da República Portuguesa institui.

Esta infracção da laicidade a que estão constitucionalmente vinculadas as autoridades republicanas torna-se ainda mais gritante e deletéria quando consideramos que se celebra este ano o Centenário da Implantação da República, de cujo legado faz parte o princípio de clara separação entre Estado e Igreja, contra o qual atentará qualquer confusão entre homenagens a um chefe de Estado e participação oficial dos titulares de órgãos de soberania em cerimoniais religiosos.
Declaramos também o nosso repúdio pelas posições veiculadas pelo Papa em matéria de liberdade de consciência, igualdade entre homens e mulheres, auto-determinação sexual de adultos, e outras matérias políticas.

Porque nos contamos entre esses cidadãos que entendem que a laicidade da política é condição fundamental das liberdades e direitos democráticos em cuja defesa e extensão estão apostados, aqui deixamos o nosso protesto e declaramos a Vossa Excelência o nosso propósito de o mantermos e alargarmos através de todos os meios de expressão e acção ao nosso alcance enquanto cidadãos activos da República Portuguesa.

Subscritores:
Alexandre Andrade, Andrea Peniche, António Serzedelo, Carlos Esperança, Eugénio de Oliveira, Francisco Carromeu, João Pedro Cachopo, João Tunes, Joana Amaral Dias, Joana Lopes, José Rebelo, Ludwig Krippahl, Luís Grave Rodrigues, Luís Mateus, Luis Sousa, Maria Augusta Babo, Miguel Cardina, Miguel Duarte, Miguel Madeira, Miguel Serras Pereira, Onofre Varela, Palmira Silva, Pedro Viana, Porfírio Silva, Ricardo Gaio Alves, Rui Tavares, J. Xavier de Basto.

Para assinar a petição http://www.peticaopublica.com/?pi=CPL2010

domingo, maio 02, 2010

Estado laico.

O Estado deve ser laico. Não porque a religião seja sagrada, passo o trocadilho, mas porque o propósito do Estado é organizar coisas como infraestrutura, justiça, bens públicos e distribuição de recursos, sem interferir nas nossas escolhas pessoais. Que sobremesa comer, a que clube aderir ou que religião escolher, se algo disto quisermos, são problemas para cada um resolver por si e não para o Estado resolver por nós. A laicidade do Estado é apenas parte, e consequência, deste requisito. Por isso a laicidade não é um conceito arbitrário que se possa definir como der jeito. Muitos há que reclamam privilégios para a sua religião começando por “o Estado deve ser laico mas”, seguido de uma redefinição de laicidade que não cumpre este objectivo e, por isso, não serve.

Neste contexto percebe-se que não é legítimo o Estado conceder privilégios a uma religião só por ser maioritária, mais antiga ou ter mais prestígio. O Estado deve ser democrático, seguindo a vontade da maioria, mas apenas naquilo que compete ao Estado. Se a maioria prefere vias ferroviárias em vez de autoestradas é a essas que o Estado deve dar prioridade cumprindo o seu papel de acordo com a vontade dos eleitores. Mas se a maioria gosta de arroz doce e poucos apreciam pudim flan, ou se o FCP tem mil vezes mais sócios que o Desportivo da Charneca, o Estado não tem nada que ver com isso. Isto não é rejeitar a democracia. Pelo contrário. É reconhecer que a democracia serve para resolver problemas colectivos e não questões de gosto pessoal.

Importa frisar este ponto porque é muitas vezes mal compreendido. A questão não é que todas as religiões sejam iguais, ou que todos os clubes sejam o mesmo ou que não haja diferença entre flan e arroz doce. Há religiões mais antigas, com mais adeptos e mais impacto social, clubes maiores e mais influentes e o arroz doce é claramente melhor. Não é tudo o mesmo. Mas a questão fundamental é que esta avaliação compete a cada indivíduo e não ao colectivo estatal. É por isso que o Estado não deve favorecer nenhuma destas opções sobre as outras. Não é para isso que o Estado serve.

Outra confusão infeliz é julgar que o Estado, por ser laico, se deve abster de tomar posições acerca do que as religiões alegam. Isto confunde factos com valores. O Estado não deve interferir nas nossas escolhas pessoais acerca destes valores subjectivos. Se um adulto informado decide acreditar que uma transfusão de sangue lhe condena a alma ao sofrimento eterno, o Estado deve respeitar o seu direito de rejeitar transfusões. Mas isto não obriga o Estado a levar a alegação a sério. Não é razoável que o Ministério da Saúde acabe com as transfusões de sangue por não poder decidir se esta religião tem razão e não querer arriscar a alma das pessoas. Cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por muito pouco fundamento que tenha, mas o Estado deve guiar-se por dados concretos e não por crendices, rejeitando aquilo para o qual não há evidências.

É por isto que me incomoda especialmente que o Estado conceda benesses a religiões ou a crenças infundadas em geral. Já me incomodaria se dessem tolerância de ponto para o pessoal ir ver a final do mundial de futebol ou o concerto da Lady Gaga. Mas ao menos essas coisas são o que são e não enganam ninguém. Os jogadores jogam à bola e a rapariga canta e dança. Mas dar tolerância de ponto para ir à missa, ou gastar dinheiro dos serviços públicos contratando padres para hospitais e escolas, é ainda pior porque implica um erro objectivo e não apenas uma questão de gosto.

Na próxima semana muitos vão ter folga, atravancar o trânsito e gastar dinheiro público porque decidiram ter fé no Joseph Ratzinger. E decidiram isto porque estão convencidos que há um deus, que esse deus e o Ratzinger são unha com carne e que o Ratzinger consegue transubstanciar hóstias, invocar bênçãos e outros pseudo-milagres. Só que isso, tanto quanto se saiba, é tão treta como ir para o inferno por causa de uma transfusão de sangue.