quarta-feira, março 31, 2010

As perguntas do Henrique Raposo.

O Henrique Raposo escreve para um blog do Expresso. Não sei bem se é blog se é expresso, mas interessaram-me as perguntas «A Igreja tem o monopólio da pedofilia?» e «por que razão só se fala da pedofilia de alguns padres católicos?»(1).

A Igreja Católica não tem o monopólio dos maus tratos a crianças. Infelizmente, porque era bastante mais fácil proteger as crianças se os abusadores estivessem todos num sítio. E a Igreja Católica nem sequer terá a maioria dos violadores de menores. A concentração lá parece estar acima da média mas os maus tratos a menores são um drama muito maior que a Igreja Católica. Só que o problema mais saliente aqui não é ter havido alguns pedófilos. É ter havido muita gente a organizar-se para os encobrir. É nisso que a Igreja Católica sobressai bastante.

Os representantes católicos tentam disfarçar este problema focando apenas os pedófilos, ou hebófilos, salientando que a maioria da vítimas tem mais de 11 anos. O bispo Carlos Azevedo, por exemplo, diz que a vergonha está nos «falhanços de alguns membros do clero»(2). A expressão dá ideia que a intenção era boa mas que falharam o alvo, fraco consolo para as vítimas. Mas o mais grave não foi os “falhanços” de alguns. Foi o grande sucesso de todos os que esconderam os crimes e negaram justiça às vítimas durante décadas a fio.

Um exemplo de falhanço é a justificação do Vaticano para Ratzinger não ter agido no caso do padre Lawrence Murphy. Parece que já estava velho e doente quando o Vaticano tomou conhecimento dos abusos a crianças surdas (3). Coitadinho. Tenho pena, mas julgo que mesmo assim as vítimas mereciam um pedido público de desculpas. Não só da parte do padre mas também de todos aqueles que o deixaram lidar com crianças durante mais de duas décadas apesar das queixas das vítimas.

E esta é a minha resposta às perguntas do Henrique Raposo. Pessoas ruins há em todo o lado. As organizações religiosas dão ares dos seus sacerdotes serem exemplos de virtude, mas concordo que temos todos a responsabilidade de ver que isso é treta e de perceber que padres são homens como quaisquer outros. Por isso se as notícias fossem que um padre católico tinha ido preso por violar uma criança eu não culpava a organização. Culpava-o a ele e pronto.

Mas o que vejo são notícias de padres católicos que violaram crianças durante décadas, de outros que os foram transferindo quando havia queixas, da organização que ocultou da justiça, da sociedade e até dos familiares das vítimas estes crimes, e que se esforçou por descredibilizar os queixosos e coagir-lhes o silêncio. Isto não é um problema de pedofilia. Isto é uma organização com os valores todos trocados, que põe a manutenção das aparências à frente da consideração pelas crianças violadas e até da prevenção de mais crimes.

O que me traz à última pergunta do Henrique. «Quando um professor é acusado de pedofilia, alguém se lembra de colocar em causa a profissão de "professor"?» Depende.

Se um professor abusa das crianças e os colegas o denunciam assim que sabem e o impedem de fazer mais vítimas não será de os censurar. A culpa foi do violador e os outros fizeram o que podiam.

Mas se um professor abusa das crianças e os colegas abafam o caso, descredibilizam as vítimas, o transferem para uma escola onde não o conheçam, e onde possa fazer mais vítimas, e o deixam continuar assim durante décadas, então sim. Se isso acontecesse era de meter todos os cúmplices na cadeia com o pedófilo e contratar professores novos.

É isso que aqui em causa. Que os violadores merecem castigo ninguém disputa. O problema é o que fazer aos outros e à organização que os encobriu durante tanto tempo. Os representantes da Igreja dizem que a vergonha é dos “falhanços” e os Henriques Raposo dizem que isto é só um ataque à Igreja Católica, e só por causa de umas violações que os outros também fazem. Pois é mesmo por isso que temos de fazer barulho. Por não verem que o problema é a organização em si e coisas como a Concordata de 2004, que além de pôr essa organização a cargo de escolher alguns professores para o ensino público – onde mesmo quem não é católico paga dos seus impostos para eles ensinarem crianças – tem artigos como este:

«Artigo 5
Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério.»
(4)

A Igreja Católica não tem o monopólio sobre a pedofilia. Mas tem muita coisa que não devia ter. E foi por causa dessas coisas, do seu poder, do aparato e dos privilégios legais, que em vez dos pedófilos serem presos assim que violassem alguém puderam fazer do abuso carreira até se reformarem, coitadinhos, velhos, doentes e certamente tão arrependidos que nem vale a pena mencionar as vítimas.
1- Henrique Raposo, A Igreja tem o monopólio da pedofilia?
2- Lusa/Fm, D. Carlos Azevedo fala em "vergonha" pelos "falhanços de membros do clero" nos casos de pedofilia
3- Lusa/FM, Vítima afirma que Papa estava informado de abusos
4- ARL, CONCORDATA ENTRE A SANTA SÉ E A REPÚBLICA PORTUGUESA – 2004

terça-feira, março 30, 2010

O pensamento ateu.

Apesar do outro post sobre o assunto (1), continuam a insistir que o pensamento ateu é pouco profundo, que o ateísmo só vive da crítica à religião, que é insensato definirmo-nos por sermos apenas contra uma ideia e assim por diante. Não sendo inteiramente erradas, estas alegações sugerem, no entanto, uma visão demasiado estreita do ateu e do ateísmo porque focam apenas um detalhe de uma atitude muito mais abrangente.

Os crentes chamam-me ateu porque não acredito no que me dizem acerca dos seus deuses. Mas, para mim, isto é como não acreditar quando me dizem que o Pai Natal traz as prendas, que há um monstro em Loch Ness ou que extraterrestres raptam pessoas. Não aceito como verdade aquilo que não for devidamente justificado. E com hipóteses tão extraordinárias o mais razoável é mesmo assumir que são falsas enquanto não haver indícios igualmente extraordinários.

Isto não é um ismo. É bom senso. Quando recebo um email de um general africano a pedir para lhe enviar 50€ para ele transferir cinquenta milhões para a minha conta não confio na promessa e nem sequer fico indeciso acerca da honestidade da proposta. A indecisão levaria a estimar 50% de probabilidade de ser verdade, um risco aceitável nesse caso. Mas o que eu concluo, como a maioria das pessoas, é que é treta. Nem com um ganho possível de um milhão para um arrisco, e quem for consistentemente crente ou agnóstico nestas coisas vai à falência num instante. Felizmente, a maioria rege-se pela regra de rejeitar alegações extraordinárias que não sejam suportadas por evidências extraordinárias.

Para perceber o tal “pensamento ateu” basta perceber que esta atitude não é excepcional. Não se discrimina um deus ou os deuses só para implicar. Por não haver termos equivalente a “ateu” para quem duvida de outras alegações duvidosas, como raptores extraterrestres ou monstros em lagos, parece que ser ateu é um caso à parte. Mas rejeitar como incorrectas as alegações de quem diz saber que deuses existem e como são deriva simplesmente da aplicação homogénea dos critérios para aceitar alegações extraordinárias.

Lamento desiludir quem procura um “pensamento ateu” único e original, mas isto é o mesmo que os crentes fazem. A diferença está só em não abrir excepções arbitrárias. Pensem no nível de evidência que exigiriam para aceitar afirmações como: Maomé é o maior e derradeiro profeta de Deus e o Corão é a palavra divina; “eu” é uma mera ilusão que devemos descartar, desprendendo-nos de tudo para quebrar o ciclo de reencarnações que nos prende a uma falsa identidade e existência; há 75 milhões de anos um maléfico imperador da galáxia trouxe milhares de milhões de extraterrestres para a Terra e chacinou-os aqui com bombas de hidrogénio; Deus encarnou como o filho de um carpinteiro para morrer por nós e agora transubstancia hóstias em pedaços do seu corpo. Qualquer crente razoável duvidará de pelo menos três destas, mesmo que seja muçulmano, budista, cientólogo ou católico. O ateísmo, enquanto rejeição de dogmas religiosos, consiste simplesmente em aplicar à que sobra os mesmos critérios que se aplica a todas as outras hipóteses religiosas, de OVNIs, de astrologia, monstros e emails suspeitos. Se exigirem da vossa religião o mesmo que exigem do resto facilmente perceberão que o “pensamento ateu” é apenas pensamento. É o mesmo de sempre e de todos.

No entanto, isto restringe a discussão ao juízo de afirmações sobre factos. Se bem que “ateu” normalmente refira aquele que rejeita explicitamente os dogmas religiosos, a distinção entre quem tem e quem não tem deuses vai além da mera avaliação de hipóteses. Um factor importante, e independente até dos deuses existirem ou não, é a disposição para a veneração, a participação numa comunidade religiosa, a oração e aquela coisa vaga a que chamam espiritualidade. Isto, talvez mais que o resto, determina se alguém se sente um crente.

Nisto já se pode apontar uma diferença radical entre crentes e ateus. Não é uma diferença de pensamento, no sentido de uma decisão racional e justificável a terceiros, mas sim uma diferença de personalidade. Há quem se sinta bem pensando que obedece a deus, que o ama e que é livre na servidão e obediência, ou coisas do género. E há quem não veja interesse nenhum nisso. Infelizmente, separar assim ateus e crentes cria o problema de classificar os que seguem os rituais da sua religião por hábito e tradição, e que professam os dogmas oficiais, mas que não sentem qualquer ligação a um deus. E suspeito que não sejam poucos.

Por isso proponho que se contorne estes problemas simplificando a discussão. Primeiro, dando menos importância ao termo e à definição de “ateu”. É mais confuso que relevante e não se define ninguém por não acreditar num deus, tal como ninguém se define por não acreditar noutra coisa qualquer. Em segundo lugar, aceitando que a religião não agrada a todos. Uns gostam e outros não. É um género de sauerkraut espiritual. E, finalmente, reconhecendo que qualquer hipótese que se proponha acerca dos deuses é como qualquer outra hipótese acerca da realidade, e deve ser encarada com tanto cepticismo quanto for excepcional.

Editado a 31-3 para corrigir umas gralhas apontadas pelo ricardodabo (no D.A.). Obrigado pela atenção.

1- O elefante

segunda-feira, março 29, 2010

Espertos...

Na cidade de Samara, na Rússia, um coro de veteranos russos da segunda guerra mundial deu um concerto gratuito em Setembro do ano passado. Cantaram canções do tempo da guerra, com quase setenta anos, as mesmas que cantavam quando lutaram pelo seu país.

Agora a Sociedade Russa de Autores (SRA) processou a organização do concerto e exige que paguem o licenciamento dessas músicas, protegidas ainda por copyright. Os veteranos ficaram indignados, e algo confusos, com esta ideia de terem de pagar para poder mostrar aos jovens um pouco da sua cultura. O líder do Partido Comunista Russo exclamou que esta insanidade já chegou à completa estupidez e, no parlamento, deputados já pediram uma reunião da comissão sobre as artes para resolver esta situação.

O pessoal da distribuição e colecta de licenças não percebe que a proibição de cópia, usufruto, distribuição o que mais lhes possa dificultar o negócio não é um direito moral. É um privilégio que a sociedade lhes concedeu quando não custava conceder esses monopólios e quando era necessário fazê-lo para garantir a distribuição das obras. Foi um subsídio às fábricas e lojas onde se produzia e distribuía cópias.

E a única razão para ter durado, e crescido desmesuradamente, foi ter passado despercebido. Toda a gente tirava fotocopias, copiava cassetes e vídeos alugados do clube e ninguém se importava se era legal ou não. Mas agora querem restringir tudo com licenças, processos a torto e a direito e coisas ridículas. Como exigir que os cabeleireiros paguem 12€ por mês para poderem ter o rádio a tocar (1), argumentar que um toque de telemóvel é uma actuação pública e por isso exige um pagamento adicional (2) e agora até processar veteranos de guerra por cantar de borla (3).

A única esperança desta gente deve ser impor-nos leis com tratados secretos como o ACTA (4). Porque entre a miudagem que descarrega ficheiros e começa a votar daqui a uns anos e estas figuras tristes que fazem perante o resto dos eleitores, ou dão cabo da democracia ou acaba-se a mama.

1- Notici@scadadía, La SGAE pide a un peluquero 12€ por poner la radio
2- The Register, Lawyers claim ringtones are public performance
3- TorrentFreak, World War II Veterans Must Pay To Sing War Songs
4- Wikipedia, Anti-Counterfeiting Trade Agreement

domingo, março 28, 2010

Equívocos, parte 5.

Pela quinta vez o Alfredo Dinis imagina equívocos no ateísmo equivocando-se ele próprio acerca daquilo que o ateísmo é. «O maior drama do ateísmo», repete o Alfredo, é «estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião.» (1) Não sei se é da tradição religiosa de repetir o falso na esperança que se torne verdadeiro ou se é para mostrar que a religião resiste à crítica não lhe fazendo caso mas, seja pelo que for, lá tenho eu de esclarecer, também pela quinta vez, que o meu ateísmo não quer proibir a religião a ninguém. O objectivo é permitir a todos que tenham as religiões que quiserem, que não tenham nenhuma se nenhuma lhes interessar, e que possam discutir livremente os méritos de cada alternativa.

Se esta ambição parece modesta é pela sorte de vivermos em época e lugar onde se aceita estas discussões quase sem problemas. Noutro século, ou noutro país deste século ainda, a hierarquia religiosa não precisaria de procurar equívocos nem contrapor argumentos. Mandava prender o chato do ateu e pronto. E este estado afortunado do qual gozamos aqui e agora não é um trabalho acabado que dê royalties enquanto descansamos. É um filho, uma criança que precisa de carinho e encorajamento. E protecção atenta contra os que se aproveitam do poder para se impor aos mais frágeis. É sobre isto que trata o quinto equívoco do Alfredo:

«Os não crentes têm um particular gosto em apontar episódios negativos da história da Igreja Católica […]. O equívoco está em pretenderem transformar episódios lamentáveis em argumentos contra a existência de Deus.»

Admito parecer-me estranho que um deus omnipotente, justo e que ama toda a gente não se rale com a barbaridade que por aí fazem, fizeram, e certamente farão em seu nome. Se existisse devia deixar bem claro o que é a mando dele e o que é de improviso. Mas vou concordar com o Alfredo. A discussão sobre a existência de deuses não tem que ver com os problemas da religião. Por um lado porque tanto faz. As Cruzadas, matar judeus e hereges, a Inquisição, a sharia, as castas, o encobrimento de crimes e coisas que tais são hediondas haja ou não haja deuses. E, por outro lado, porque a existência de deuses é uma questão meramente académica sem aplicação prática. É como discutir se há zereminhos.

Como nunca ninguém viu, ouviu ou cheirou nem um zereminho* nem um deus, somos livres de lhes inventar os atributos. Alguns podem parecer impossíveis, como alimentar-se de coelhos marcianos ou nascer filho de si próprio e de uma virgem. Mas pode-se sempre inventar algo para que a hipótese deixe de ser testável. Uns comem coelhos marcianos noutro nível da realidade, fora do espaço e do tempo, e o outro nasceu filho de si e da virgem por milagre. E pronto. Com um pouco de imaginação inventa-se algo que ninguém pode provar que seja falso, e com uns rituais e vestes elaboradas muitos nem notarão que é ridículo.

Quando aponto “episódios negativos” das religiões – que infelizmente nem são poucos nem só históricos – não estou a apresentar argumentos contra a existência de qualquer deus. Estou a apontar os perigos da religião. Sem uma oposição constante e atenta é inevitável que a fé hierarquizada, dogmatizada e servida em pacote a cada fiel dê mau resultado. Sempre que a sociedade o permite, a hierarquia religiosa dominante usa o poder do “crê e cala” para se impor, para se elevar acima da lei e para privar a maioria dos seus direitos mais básicos. Isto não aconteceu uma ou duas vezes. Aconteceu sempre e em qualquer sítio onde deixassem a religião mandar na vida das pessoas.

A religião dá às pessoas certezas acerca daquilo que não sabem. Ou afirmando proposições desligadas de quaisquer dados, como a transmutação da hóstia e os milagres, ou forçando ignorância sobre evidências contrárias, com virgens que dão à luz, homens que morrem e ressuscitam e a Terra ter dez mil anos de idade, por exemplo. E isto é mau.

Não é mau pela fé; cada pessoa ter confiança nas suas ideias não tem mal nenhum, desde que saibam dialogar e aceitem que outros discordem. O que é mau é a religião, essa alavanca que uns espetam na mente dos outros para ter uma autoridade falsa e um poder indecente de ditar o que se há de pensar e acreditar.

Ao contrário do que o Alfredo sugere eu não aponto os podres das religiões para refutar a existência de deuses. Essa questão morre na falta de evidências que suportem qualquer especulação sobre qual deus é suposto existir, como é e o que quer. Os “episódios negativos” são preocupantes porque manifestam um problema muito mais grave que a existência de deuses. O perigo de confiar a alguns homens a escolha dos disparates em que os outros vão acreditar. Não é algo que se possa erradicar e sou contra sequer que se tente. Há quem goste que lhe digam em que acreditar, e há quem goste de o dizer. Temos de respeitar esse direito.

Mas temos também de lutar para proteger o nosso direito de apontar o ridículo e criticar os abusos. Porque quando não conseguem convencer alguém a enfiar essa alavanca na cabeça tentam enfiá-la à força. E enfiam onde calhar...

* Confirmei mesmo agora no Google...

1- Companhia dos Filósofos, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

sexta-feira, março 26, 2010

Treta da semana: A saúde pública da cama dos outros.

O João Silveira, discípulo amado segundo o próprio, escreveu que «Gostava de ver o Ludwig escrever uma treta» sobre «o problema de alguém ter comportamentos homossexuais», alegando que «no mínimo é um problema de saúde pública»(1). Referiu, em apoio da tese, estatísticas recentes do CDC sobre a incidência de sífilis e HIV entre homossexuais. O pedido surgiu no debate acerca da estratégia da Igreja Católica para combater os abusos sexuais de menores, estratégia essa que consiste em gritar “olhem ali!” enquanto apontam para outra coisa qualquer. Como na declaração da Santa Sé ao Conselho para os Direitos Humanos, na ONU:

«Enquanto muitos falam de abuso de crianças, i.e. pedofilia […] 80 a 90% [dos casos foram] com rapazes adolescentes entre os 11 e os 17 anos [… E]ntre 1.5% e 5% do clero católico esteve envolvido em casos de abuso sexual [mas] a maioria das igrejas Americanas atingidas por alegações de abuso sexual de crianças é Protestante. […] Cerca de 85% dos abusadores de crianças são membros da família, vizinhos ou conhecidos [… e ...] o abuso físico de alunos em escolas é provavelmente 100 maior que o abuso por padres»(2).

Não destoando, o João Silveira defende que o problema é a homossexualidade. Propõe até que «quem defende a homossexualidade como natural, muito dificilmente lhe faz confusão a pedofilia». É um disparate. É como dizer que a um heterossexual dificilmente fará confusão o que aquela dúzia de imbecis fez à miúda de 12 anos nos Açores (3). A revolta que sentimos não tem nada que ver com a orientação sexual. O que está em causa aqui não é se gostam deste sexo, do outro ou sequer se ficam excitados com os desenhos animados japoneses. O problema é violarem crianças. Espero que esta confusão que tentam fazer entre violação e homossexualidade seja mera desonestidade. Porque se for sincera é ainda mais preocupante.

Mas adiante. O João Silveira queria que eu abordasse o perigo da homossexualidade na saúde pública. Nos EUA, a incidência de infecções por HIV em homens que têm sexo com homens é quarenta vezes maior que nos heterossexuais(4). Com a sífilis a diferença ainda é mais acentuada. Porque são doenças raras; a incidência estimada nestes homossexuais é de 0.5% para o HIV e 0.1% para a sífilis, estatísticas que teriam sido úteis para os enviados da Santa Sé à ONU. Podiam ter acrescentado que a percentagem de abusadores de crianças entre os padres católicos é poucas dezenas de vezes maior que a taxa de sífilis entre os homossexuais*.

Mas mesmo com uma incidência baixa partilho a preocupação do João, porque qualquer caso de HIV e sífilis é um caso a mais. É um problema de saúde. E, como tal, tem causas e soluções complexas. O alcoolismo, os acidentes rodoviários, o cancro do pulmão, o contágio por seringas e a asma também são problemas de saúde pública. E não se resolvem proibindo o álcool, acabando com os automóveis, criminalizando o tabaco, tirando as seringas aos médicos e aos diabéticos e matando tudo o que produza pólen. Nestes casos procuramos isolar os aspectos problemáticos e resolver o problema sem eliminar o que as pessoas desejam. Conduzir com segurança, fumar onde não afecte os outros, usar seringas esterilizadas, inaladores anti-histamínicos e assim por diante. Não despejamos o bebé com a água do banho.

Nas relações sexuais este cuidado é ainda mais importante porque, se consensuais e entre adultos, são do foro privado. São algo íntimo que não compete à sociedade julgar nem regular. Por isso devemos atacar os aspectos públicos do problema. E nisto nota-se a inconsistência de quem prega empoleirado no caixote da religião.

O sexo anal aumenta o risco de infecção pelo HIV. Por isso é pecado e não se pode fazer. Mas o sexo oral tem um risco reduzido, mesmo em relação à penetração vaginal. Se este fosse o factor relevante – se da taxa de contágio se inferisse o desígnio divino – então os religiosos deviam defender a homossexualidade feminina, a masturbação e o sexo oral como formas eficazes de promover a saúde pública. Não o fazem, obviamente, porque o risco de infecção é apenas uma desculpa escolhida por se alinhar com os seus preconceitos. O resto não lhes interessa.

Esta atitude contribui para agravar o problema, que não está na orientação sexual nem no que fazem na cama mas sim nos comportamentos sociais de risco, como a promiscuidade e o sexo sem protecção. E em vez de encorajar o uso de preservativos e as relações duradouras, os discípulos amados condenam o látex, opõem-se à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e perpetuam, pelo seu preconceito bacoco, a marginalização que encoraja os comportamentos de risco.

Aceitar que pessoas se amem seja qual for o seu sexo não eliminava o problema mas ajudava a reduzir os comportamentos de risco. E não exigiria sacrifícios a ninguém. Seria um passo gratuito na direcção certa. Um passo que só não damos porque muita gente se convenceu que há um homofóbico invisível no céu que nos obriga a estigmatizar os homossexuais e a empurrá-los para os becos e as casas de banho dos bares.

Esse disparate é que me parece um problema grave de saúde pública.

* OK, prometo que foi a última acerca disto dos padres. Por hoje...

Adenda, 29-3-2010: Por sugestão do João Silveira, quero aqui salientar que a taxa de incidência citada é para novos casos (ver o artigo referido) e que a minha recomendação aos enviados da Santa Sé à ONU é que mencionem apenas a sífilis e não o HIV. Dependendo das estimativas do número de homossexuais nos EUA, a taxa de infecção do HIV neste grupo, desde o início da epidemia, pode até ultrapassar a percentagem de padres católicos suspeitos de crimes de abuso de menores nesse país. Além disso, não convém à Igreja Católica chamar mais atenção para o seu papel no combate pela SIDA nos países em desenvolvimento. Obrigado ao João Silveira pelos cálculos nos comentários.


1- Comentário em Consentimento
2- IHEU, HOLY SEE, RIGHT OF REPLY – CHILD ABUSE
3- Açores: 10 homens condenados por violarem menina
4- CDC, CDC Analysis Provides New Look at Disproportionate Impact of HIV and Syphilis Among U.S. Gay and Bisexual Men

quinta-feira, março 25, 2010

Lagarto, lagarto, lagarto.

Em três espécies de lagarto do Novo México, Sceloporus undulatos, Apsidoscelis inornata e Holbrookia maculata, os indivíduos das populações que vivem em White Sands têm cor branca, enquanto os seus conspecíficos nas regiões circundantes são mais escuros. White Sands é um deserto de areia branca onde qualquer bicho pequeno e castanho se candidata a refeição de outro maior. Por isso não é de admirar que populações destas três espécies se tenham adaptado perdendo a cor. Mas é um bom exemplo de evolução convergente.

Estas populações perderam a cor devido a alterações na mesma proteína, um receptor no mecanismo de expressão de pigmentos, mas em cada espécie a mutação foi diferente (1). E no caso dos lagartos Holbrookia maculata nem é claro como essa mutação tenha afectado a pigmentação, sugerindo que houve mais alterações genéticas a contribuir para o efeito. Isto mostra que a natureza tem várias formas de obter o mesmo resultado. Os criacionistas gostam de fazer contas à extrema improbabilidade de uma certa proteína ser exactamente assim, ou de certo organismo ser exactamente daquela forma. Mas esses cálculos assumem que o resultado final só pode ser um. Não é preciso. Há muitas maneiras diferentes de ser lagarto, há muitas maneiras diferentes de um lagarto castanho ter descendentes pálidos e, se bem que a vida na Terra como é neste momento seja extremamente improvável, podia ser de qualquer uma de incontáveis formas alternativas que seria vida na Terra à mesma.

Este exemplo também ilustra o processo de especiação. As espécies não surgem num salto mas pelo acumular de diferenças pequenas que, com o tempo, separam irreversivelmente duas linhagens. É o que está a acontecer com estas populações de lagartos.

Dentro de cada uma destas três espécies não há qualquer impedimento genético ao cruzamento de lagartos brancos com lagartos escuros. A diferença genética é irrisória. No entanto, um lagarto branco onde o terreno é escuro corre tanto perigo como um lagarto escuro na areia branca. Por isso, na fronteira entre estas zonas há uma forte pressão selectiva contra o cruzamento de lagartos de cor diferente. Assim, apesar dos lagartos de White Sands serem geneticamente semelhantes aos seus conspecíficos nas redondezas, nas três espécies as populações de lagartos brancos estão a ficar geneticamente isoladas. E sem cruzamentos entre as populações a acumulação de mutações vai inevitavelmente levar à sua separação em espécies diferentes. Para surgir uma espécie nova não é preciso uma lagosta parir um abutre. Basta que uma pequena mutação lance duas populações e caminho do isolamento genético e o tempo trata do resto.

Devo salientar que as mutações que tornaram os lagartos mais claros não surgiram por causa da areia branca. As mutações são aleatórias e desligadas desses factores ambientais que as seleccionam. Nem surgem por desígnio ou inteligência. O que aconteceu foi que os lagartos albinos que, de vez em quando, nasceram fora de White Sands não tiverem o sucesso reprodutivo necessário para fazer vingar essa característica onde o solo era escuro. Mas em White Sands o mesmo acidente genético conferiu uma vantagem reprodutiva e espalhou-se nessa população.

Estes lagartos dão também um exemplo – três, na verdade – de como é ridícula a ideia que as mutações “só degeneram” o DNA. Primeiro porque se uma mutação faz com que um lagarto nasça branco, a mutação inversa pode fazer o seu filho ter novamente a cor do avô. As mutações são aleatórias e não têm uma direcção fixa*. Mas, principalmente, porque o ambiente determina se uma mutação é prejudicial ou benéfica. Não faz sentido considerar que uma mutação que torna os lagartos mais aptos a viver na areia branca tenha “degenerado” a linhagem. Modificou-a aleatoriamente e, porque o ambiente é dinâmico, complexo e muito diverso, algumas modificações aleatórias têm consequências benéficas.

Esta complexidade é outra coisa que escapa aos criacionistas. Para cada gene e para cada genoma, o ambiente não é apenas factores abióticos como a areia e a temperatura do ar. O ambiente é tudo o que interage com esse gene e esse genoma, incluindo todos os outros genes e todos os outros genomas. É esta interacção que, alimentada por mutações aleatórias, impele e guia as linhagens em mudança constante e gera a enorme diversidade de seres vivos que vemos. A cor destes lagartos não foi seleccionada apenas pela cor da areia. Foi seleccionada também pelos genes do sistema visual dos predadores, pelas preferências reprodutivas dos lagartos da mesma espécie, por outros efeitos dos genes envolvidos e assim por diante, numa enorme rede de interacções entre genes, organismos e o terreno onde vivem.

A maior tristeza do criacionismo nem é a incapacidade de explicar esta complexidade. O pior de tudo é a incapacidade de sequer se aperceber dela, imaginando em vez disso um universo de desenhos animados no qual cada bicharoco tem o seu boneco e não passa daquilo.

* Excepto se forem delecções. Se uma parte do DNA se perde, normalmente isso será irreversível. Mas esse é apenas um de vários tipos de mutação, e não é o caso aqui.

1- Rosenblum EB, Rompler H, Schoneberg T, Hoekstra H (2010) The molecular and functional basis of phenotypic convergence. Proc Natl Acad Sci USA 107 2113–2117. Via Discovery News.

Editado às 23:03 para corrigir o Sceloporus undulatos. Obrigado ao sxzoeyjbrhg por ter apontado o erro.

segunda-feira, março 22, 2010

Consentimento.

Num comentário ao post anterior o Nelson Cruz forneceu ligações para listas das idades legais de consentimento sexual em vários países. Na Europa, em países mais seculares como a Holanda e a Noruega o limite mínimo é de 16 anos. Em países mais católicos como a Espanha, a Itália e Portugal o mínimo é de, respectivamente, 13, 14 e 14 anos.

No Estado do Vaticano o limite mínimo é de 12 anos.

E esta, hein?

Wikipedia, Age of consent in Europe.

Da lama e afins.

Os posts acerca dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica suscitaram algumas respostas mais emotivas (1). O António Parente disse que era nojento apresentar aquelas estatísticas, o Nuno Gaspar chamou-me charlatão pelas contas e acusaram-me de lançar lama e manchar a reputação do sacerdócio católico. Não concordo que as estatísticas devam ser escondidas. Muito menos disfarçadas como acontece nos jornais. Dizer que 10 padres indiciados é “uma minoria” esconde o facto importante de que 10 em 4000, para um crime destes, não é de desprezar.

E as estatísticas são atributos de amostras de onde se infere médias da população. Não atiram lama a nenhum individuo. Se fosse só por 4% dos padres católicos nos EUA terem abusado de crianças não ficaria manchada a reputação dos restantes. O problema é outro. É por esse outro que os cavalheiros protestam demais.

Em 2001 o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), enviou uma carta confidencial a todos os bispos da Igreja Católica estipulando os delitos reservados à CDF e que deviam ser mantidos em segredo dentro da Igreja (2). Quase todos são pertinentes apenas para os católicos, como deitar fora a hóstia ou celebrar a missa com sacerdotes de outras religiões. Mas há uma excepção importante: «Um delito contra a moral, nomeadamente: o delito cometido por um sacerdote contra o Sexto Mandamento do Decálogo com um menor de 18 anos»*.

É isto que lança lama na reputação da Igreja Católica. É isto que é nojento. Não só a carta de Ratzinger, que seguia a prática comum na Igreja. Mas também a reacção de todos os bispos a quem foi dirigida e de todos os sacerdotes que dela tomaram conhecimento.

Se isto fosse numa empresa ou universidade tinha morrido à nascença. Imaginem vir da direcção uma carta ordenando que qualquer caso de abuso sexual de menores fosse mantido secreto e remetido à direcção para ser resolvido internamente. A maioria das pessoas certamente se oporia a tal ordem e a denunciaria às autoridades. Mas os cardeais mandaram, os bispos acataram e os padres calaram. Na Igreja Católica ninguém se opôs e todos compactuaram para esconder estes crimes.

É isto que me incomoda mais nas religiões. Não me incomodo por não gostar de rituais, avés e salvés. Tolero bem que os gostos dos outros sejam diferentes dos meus. E nem é tanto por achar que as religiões se baseiam em mentiras. Se as pessoas estiverem informadas e mesmo assim quiserem acreditar, paciência. O pior, e mais preocupante, é o mal que faz às pessoas pertencer a estas organizações religiosas, que são fechadas, doutrinárias e hierarquizadas

Ao contrário do que apregoam, uma religião não torna uma pessoa melhor. As estatísticas neste caso refutam cabalmente a hipótese. E uma religião tem o poder insidioso de obrigar uma pessoa decente a agir de forma condenável. É muito improvável que todos os cardeais, todos os bispos católicos e todos os padres que participaram nestes processos sejam pessoas más. O mais certo é serem pessoas normais, decentes como quaisquer outras. Pessoas que se trabalhassem numa organização diferente e lhes dessem uma ordem destas a teriam denunciado sem hesitação. Uma pessoa normal não aceita que se esconda abusos sexuais de crianças.

Os pedófilos nas igrejas são um problema grave mas não são pessoas normais. Encontrando uma oportunidade, abusariam de crianças tendo ou não tendo batina. Se bem que tenha sido a sua religião que lhes deu a oportunidade, não se pode concluir que foi por causa da religião que se tornaram pedófilos. Mas o mesmo não se pode dizer dos outros todos. Dos outros que esconderam, disfarçaram, mandaram guardar segredo e obedeceram a essas ordens. Esses não o fizeram por serem monstros ou doentes. Esses ajudaram os violadores, sabendo bem o que faziam, unicamente por causa da sua religião.

Se querem saber porque é que os ateus perdem tanto tempo a falar de religião têm aqui um bom exemplo daquilo que nos preocupa.

* Este é o do adultério, não o do homicídio... a numeração varia um pouco conforme as fontes.

1- Fazendo as contas e Adenda ao post anterior.
2- Bishop Accountability, Ad exsequendam ecclesiasticam legem. Via As responsabilidades e a fuga, do Ricardo Alves.

sábado, março 20, 2010

Treta da semana: a dualidade onda e partícula.

Ocorreu-me escrever isto porque o Miguel Panão referiu a suposta dualidade de onda e partícula como um exemplo de ideias contraditórias que são verdadeiras ao mesmo tempo (1). Como não quero implicar com o Miguel muitas vezes de seguida, saliento que esta confusão é recorrente em toda a tretologia e não se restringe aos que estudam os deuses. Astrólogos e cartomantes têm vários métodos divinatórios incompatíveis, as terapias alternativas contradizem-se umas às outras e cada religião diz a sua coisa. Podiam testar as suas afirmações a ver qual tem razão, se alguma a tiver. Mas isso é inconveniente. Daí a opção de baralhar a mecânica quântica. Do fotão ser onda e partícula ao mesmo tempo concluem que até a realidade se contradiz a si própria e que, por isso, todos têm razão. Cada um diz ter um pouco mais razão que os outros, mas assim não é preciso resolver as contradições nem expor os disparates. Há níveis de realidade que chegue para tudo.

Mas isto é errado. A realidade não se contradiz, não tem níveis como os jogos de computador e não pode ser descrita correctamente com hipóteses inconsistentes. A ideia da onda que é partícula, e vice-versa, não implica qualquer contradição. Mas para esclarecer isto vou começar um século antes da mecânica quântica.

Em 1821 Fresnel demonstrou que só se pode explicar a polarização da luz assumindo que a luz é uma onda, confirmando o que muitos já suspeitavam e refutando de vez a teoria corpuscular popularizada por Newton. E em 1821 sabiam bem o que era uma onda. Pelo menos, julgavam saber. É uma perturbação que se propaga através de um material, como as ondas sonoras, as ondas do mar, as ondas sísmicas e as ondas nas cordas do violino. E se a luz é uma onda, pensaram, então tem de haver um material onde se propague. Postularam então o éter luminífero.

Isto criou um problema. Este éter teria de estar em todo o lado por onde a luz se propaga. Na atmosfera, debaixo de água, nos diamantes e por todo o espaço. Tinha de ser perfeitamente fluido e sem viscosidade, pois temos de o atravessar constantemente e tem de atravessar tudo. Mas para propagar ondas à velocidade da luz teria de ser milhões de vezes mais rígido que o aço, e um fluido perfeito mais rígido que o aço fazia pouco sentido.

Para os tretólogos estava bem, um belíssimo mistério da contradição que abria as portas ao vale-tudo. Não era preciso investigar mais nada. Mas nestas coisas os cientistas são uns chatos e não desistiram de tentar resolver o problema. Em 1864 Maxwell propôs que a luz se propagava como oscilações no campo electromagnético. Não era preciso o éter luminífero. Esse grande mistério da natureza era afinal um mero preconceito, uma generalização precipitada pela qual tinham assumido, incorrectamente, que as ondas precisavam de um meio material para se propagar.

O problema da partícula-onda é idêntico. Até ao fim do século XIX havia dois conceitos claros e distintos. A onda era algo sem posição definida, a cada instante com uma amplitude que variava de sítio para sítio. E essa amplitude podia ser aumentada ou reduzida arbitrariamente. De uma décima, centésima, milésima, o que se quisesse. A partícula era o contrário. Tinha uma posição única – só estava num sítio de cada vez – e não se podia cortar às fatias. Não se pode acrescentar meio átomo de hidrogénio a uma molécula.

Por isso foi com grande espanto que viram fotões, que eram ondas, a portar-se como partículas e electrões, que eram partículas, a difractar e a formar padrões de interferência. Novamente os tretólogos festejaram. Contradição, níveis de realidade, vale tudo, etc. E, mais uma vez, não era bem assim.

Uma análise mais cuidada mostrou que, afinal, não se pode alterar a amplitude de uma onda a gosto. Parece que sim à escala macroscópica mas, em detalhe, o fotão vem em pacotes indivisíveis, os tais quanta que dão o nome à teoria. Por outro lado, a posição de uma partícula também não é definida como se julgava inicialmente. O electrão não está nem neste nem naquele ponto. O melhor que se pode dizer é que, algures por aqui, há uma probabilidade de o encontrar e essa probabilidade varia de sítio para sítio. E quando se percebe que a onda é quantizada e que a partícula não tem uma posição precisa percebe-se que, afinal, onda e partícula são a mesma coisa. Tal como no éter, a diferença e aparente contradição eram fruto apenas de um mal-entendido. O que se contradizia eram apenas as premissas incorrectas da descrição.

É isto que se passa em geral. A insistência nestes grandes mistérios, nestas dualidades e contradições, não revela nada acerca da natureza do cosmos. Revela apenas uma preferência tipicamente humana: mais vale baralhar as coisas que admitir um erro.

1- Comentários em O elefante.

sexta-feira, março 19, 2010

Adenda ao post anterior.

No post anterior propus que a incidência de indiciados por crimes de abusos de menores entre padres católicos pode ser maior que a média para todos os homens por os pedófilos preferirem uma profissão que lhes dá autoridade, a confiança da comunidade e uma justificação para não constituir família. Mas várias pessoas comentaram que é apenas uma hipótese e, depois de ler os comentários, concordo que nem seja a mais provável.

Uma alternativa é que os padres simplesmente têm mais oportunidades para estar em privado com crianças. Assim, a diferença estatística seria consequência de uma manifestação mais frequente deste comportamento e não de uma maior percentagem de pedófilos nesta profissão. Outra explicação seria a forma como as autoridade eclesiásticas responderam a estes casos nas últimas décadas, preocupando-se mais com a discrição que com a prevenção. Abafando as queixas, escondendo os crimes e transferindo os criminosos criaram um ambiente propício à proliferação destes comportamentos.

Saber qual das hipóteses é a mais correcta é difícil porque, na prática, há uma correlação grande entre ambas. As instituições nas quais este problema é mais grave são aquelas em que homens têm oportunidades de ter contacto íntimo com crianças sob a sua autoridade, como igrejas, colégios internos e orfanatos. Que são precisamente as instituições onde é mais fácil esconder estes casos e coagir as crianças ao silêncio. No entanto, seja qual for o factor mais relevante, a conclusão é a mesma. É preciso evitar estas circunstâncias.

Na maioria dos casos de abuso sexual ou físico de crianças o agressor é um membro da família e não há forma viável de proteger todas as crianças dos seus familiares. Felizmente, e ao contrário do que alguns comentários sugerem, o facto da maioria das crianças agredidas serem vítimas de um familiar não significa que a maioria das pessoas agrida as crianças da sua família. A maior parte das crianças está em segurança com os familiares. A maior proporção de familiares entre os agressores, pouco mais de metade para abusos sexuais (1), deve-se simplesmente à esmagadora maioria das crianças viver com a sua família. Portugal tem quase dois milhões de crianças (2), com quinze mil em centros e famílias de acolhimento (3). Ou seja, enquanto mais de 99% das crianças vive com familiares, mais de um terço dos abusos físicos e sexuais são cometidos por pessoas de fora da família. O que sugere – e não é de estranhar – que é longe da família que a criança corre mais risco (cerca de 30 vezes mais, contas por alto).

Casos como o da Casa Pia e da Igreja Católica mostram que devemos ter atenção a instituições fechadas, sem a devida supervisão externa. Não são sítios seguros para as crianças. Independentemente do que possa levar alguém a maltratar crianças, a tentação para preservar a "honra" e as aparências nestas organizações – sejam orfanatos, colégios internos ou instituições religiosas – é demasiado grande para que sejam eficazes a dissuadir estes crimes. E isto é especialmente importante quando o aparato religioso suscita uma confiança injustificada nas pessoas e na organização.

1- Child Welfare Information Gateway, Child Abuse and Neglect Statistics, Child Maltreatment 2007, pp 74 e 75.
2- Wikipedia, Demografia de Portugal.
3- Paróquias de Portugal, orfanatos adopções crianças institucionalizadas

quinta-feira, março 18, 2010

Fazendo as contas.

Entre 2003 e 2007 o Ministério Público indiciou dez padres por abuso sexual de crianças. Nesse período, houve um total de 5128 casos desses em Portugal(1). Há cerca de quatro mil padres (2) e cinco milhões de homens em Portugal. Assumindo que esses 5128 casos correspondem a 5128 homens indiciados, dá cerca de 1 homem em cada 1000 indiciado por pedofilia contra 1 padre em cada 400. Contas por alto, o dobro da incidência nos padres.

No entanto, a pedofilia é um dos crimes com maior reincidência, estimada em 80-90% (3). Além disso, apesar de relativamente raro, há também mulheres que cometem estes crimes. Por isso uma estimativa mais razoável, à falta de dados em concreto, é que aqueles 5128 casos corresponderão a dois ou três mil homens. Nesse caso a proporção de pedófilos entre os padres será cerca do quádruplo da proporção de pedófilos entre todos os homens.

Uma complicação é que dez indiciados em quatro mil é um número muito pequeno para uma conclusão estatisticamente significativa*. Mais elucidativos são os números acerca dos EUA. Houve mais de dez mil alegações de abusos sexuais por parte de padres católicos entre 1950 e 2002. Dessas, foram substanciadas por investigações posteriores 6,700 acusações a 4,392 padres**, o que equivale a 4% dos padres em exercício no período considerado(4). Uma incidência dez vezes maior que a reportada para os padres portugueses*** e quarenta vezes maior que nos homens em Portugal.

A menos que os padres católicos nos EUA sejam dez vezes mais pedófilos que os seus congéneres por cá, os números que conhecemos em Portugal devem subestimar a gravidade do problema. O que não seria de estranhar pela comprovada capacidade da Igreja Católica para abafar estes casos. Por isso, mesmo que os números sejam incertos, justifica-se concluir que há uma correlação entre a pedofilia e o sacerdócio na Igreja Católica.

É claro que correlação não implica causalidade, e nada indica que seja o sacerdócio – ou alguma característica como o celibato – que torna esses homens pedófilos. Até porque há uma explicação mais simples. Se um homem é pedófilo, o sacerdócio é uma opção de carreira especialmente atraente. Para alguns pode ser uma forma de reprimir os impulsos sexuais que reconhecem ser errados, infelizmente com pouco sucesso. E para outros é uma ocupação ideal. Muitas oportunidades de estar sozinhos com uma criança, o que é raro permitir-se a homens solteiros, a confiança implícita dos pais e da comunidade, autoridade sobre a criança e os seus familiares e uma forma respeitável de evitar constituir família e partilhar uma vida íntima com quem pudesse facilmente descobrir essas tendências. É uma combinação perfeita para qualquer pedófilo.

A conclusão não será que os padres têm propensão para a pedofilia mas que os pedófilos têm uma atracção pelo sacerdócio. E, ao que parece, um número significativo acaba por conseguir entrar.

As contas são por alto, os números incertos e o próprio crime de abuso sexual de crianças é difícil de investigar. Até é difícil de definir, variando de país para país conforme a legislação. Mas uma coisa parece certa. Há uma premissa implícita que o sacerdote, por ser homem de fé e de um deus, merece mais confiança que os outros homens. Mesmo sem o conhecerem bem e sem saberem o que faz na sua vida privada, as pessoas confiam-lhe os seus filhos. Esta premissa está errada.

Os padres são, na melhor das hipóteses, homens como os outros. A maioria é decente, alguns são excepcionalmente bons e outros são o contrário. Devemos desfazer a ideia mítica que um homem merece mais confiança só por professar uma fé, saber muitos rituais e alegar conhecer um deus. Dizem que a religião torna as pessoas melhores mas os números não o confirmam. E, seja como for, não dá para ver com quais funcionou só de olhar para a batina. À cautela, o melhor é não confiar crianças a homens estranhos, por muito celibatários que digam ser.

* Para quem quiser saber, é uma binomial com p=0.0025, n=4000, e um desvio padrão de quase 4. A dois desvios padrão do valor medido, para 90% de confiança, há valores que não suportam a conclusão da frequência de pedófilos ser maior nos padres
** É de notar que 3000 não foram sequer investigadas por o padre acusado ter falecido antes da alegação vir a público. A vasta maioria das alegações investigadas foi substanciada pela investigação.
*** 4% é dezasseis vezes mais que 0.25%, mas isto são contas por alto.

1- i, Padres indiciados por abusos: só os bispos sabem quem eles são
2- Arca Universal, Número de padres em Portugal cai 8,4%
3- Expresso, Taxa de reincidência dos pedófilos chega aos 80%
4- Wikipedia, Catholic sex abuse cases.

quarta-feira, março 17, 2010

O niilismo e caixas de cartão.

Há uns anos, tinham os meus filhos uns três ou quatro de idade, comprámos uma árvore de Natal grande que vinha desmontada numa caixa de cartão. Foi uma alegria. Por causa da caixa.

Tinha cerca de meio metro de largura e de altura e um metro e pouco de comprimento. Era uma caixa de cartão sem nada de especial. Não valia nada por si. Mas nos meses seguintes, até se desfazer toda, foi barco, casa, castelo, avião, esconderijo, hospital para os peluches e mais uma data de coisas. Teve muito mais rodagem que todos os brinquedos que receberam nesse Natal. Porque enquanto cada brinquedo era só o que o fabricante tinha decidido, a caixa era tudo o que eles quisessem.

Qualquer pai gosta de pensar que os seus filhos são excepcionais, e é a custo que admito que isto deve ter sido apenas por serem crianças e ainda terem a lata de dar às coisas o valor que eles querem. Daqui a uns anos, adolescentes, provavelmente vão julgar que o valor é um atributo objectivo que vem na marca ou no preço e que uma caixa de cartão não vale nada. Mas quando chegar essa altura cá estará o velho para lhes lembrar daquela caixa. E da placa de esferovite que comprámos no AKI. E das torneiras de plástico para mangueiras, os tubos de espuma isolante e uma data de tralha que era basicamente lixo mas da qual fizemos – fizeram – os brinquedos mais divertidos. E espero que lhes fique esta ideia. As coisas valem pelo valor que lhes dermos.

Mas nem todos concordam. Para muitos o valor ou está nas coisas ou não existe. Não pode estar em nós. A moral tem de ter valores nos seus objectos em vez de os ter nos seus sujeitos. O propósito da vida tem de já vir no pacote, fornecido pelo fabricante. E a vida tem de ser eterna senão não vale nada. E estes concluem, como o Miguel Panão, que o ateísmo «confronta-se com o niilismo para o qual não tem resposta.»(1)

“Niilismo” é um termo usado para acusar pessoas de muitas coisas, mas no sentido mais comum designa duas ideias diferentes. Uma é que não há um sentido para isto tudo. Para nós, para o universo, para a vida e a morte. As coisas são assim sem que ninguém as tenha criado desta forma para um propósito maior. A outra é que é suposto ficarmos terrivelmente deprimidos por isso e morrermos loucos e miseráveis. Felizmente, uma não implica a outra.

Calhou-nos uma caixa de cartão. Não se vê que esta existência traga consigo um grande e nobre propósito nem que sejamos apadrinhados pelo omnipotente criador do universo e arredores. E sabemos que esta caixa, que é só cartão, se vai desfazer. Estas coisas duram pouco, à escala cósmica, e depois acaba-se a brincadeira. Isto é o que vemos claramente. Nos que cá estão, nos que já não estão e em nós próprios.

Há duas maneiras de lidar com isto.

Uma é dizer que não pode ser, só uma miserável caixa de cartão. Tem de haver um Propósito para isto. Depois perguntamos aos padres como devemos brincar com a caixa para podermos merecer o maravilhoso brinquedo que nos prometem quando a caixa se estragar. Porque só assim vale a pena. Só pelo que vem depois. Vamos fazer o que nos dizem agora para quando este corpo morrer passarmos a eternidade a louvar o responsável pela anedota. E se não houver essa eternidade estamos perdidos. Não há nada. Nada vale a pena.

A alternativa é dizer porreiro, uma caixa de cartão. Vamos ver o que se faz com isto. E fazer o melhor que se pode com o pouco que se tem. Não é para sempre. Vai acabar por se estragar. Mas paciência. Até lá ainda dá para muitas coisas boas.

O que mais me espanta nisto é acharem que o niilista sou eu...

1- Comentários em O elefante

terça-feira, março 16, 2010

O elefante.

O Miguel Panão desabafou que «de pensamento ateu, nada consigo aprender contigo!!»(1) porque, ao que parece, o meu “pensamento ateu” não é profundo. E lamentou também que eu escrevo muito mais sobre religiões que sobre ateísmo. Este último não devia causar admiração, não só pelo título do blog mas também pelo número de religiões que há. Mas a ver se consigo colmatar parcialmente o primeiro problema. Não posso prometer ser “profundo”, porque se começo a falar do carácter ontológico do ateísmo como uma relação de si no dom total de si próprio à liberdade e ao Amor, ou um trava-línguas desses, desmancho-me a rir e não acabo o post. Mas tentarei ser claro. Espero que baste.

“Ateu” foi um termo pejorativo criado por crentes para designar quem não adorava os deuses certos (i.e. os desses crentes). Hoje é menos pejorativo, e tenho todo o gosto em me classificar ateu, mas continua a ter o mesmo significado simples. Ateu é quem não tem deuses, em contraste com o crente que adora uma ou mais divindades e o agnóstico que ou não sabe para onde pende ou não diz para não ter chatices.

Onde há mais para saber é em cada pessoa. O termo é simples mas, tal como “dentista” ou “músico”, não define a pessoa por completo nem esclarece porque seguiu esse caminho. No meu caso, sou ateu em parte porque não tenho vontade de adorar deuses. Independentemente de existirem ou não. Se está tudo prostrado diante do vulcão a louvá-lo e adorá-lo, eu posso ver que existe, posso reconhecer que é muito mais poderoso que eu mas não me dá para rezas ou rituais. Não grito com estrelas de rock, não beijo estátuas, não como a hóstia e não bajulo o criador do universo. Nunca me deu para isso.

E sou ateu porque, além não me ocorrer nada que mereça esse tipo de adoração, acho que a maioria dos deuses que se adora por aí são ficções incríveis. É um exagero. É tudo infinitamente omni isto e aquilo, super duper xpto, que fez e aconteceu. Mas vai-se a ver e nada. É só dizer que se ouviu dizer. E cada um diz a sua sem nada de concreto que justifique confiar mais na especulação dele que na do vizinho.

E este é o grande problema que os religiosos fingem não ver. Para deixar de ser ateu não me basta crer ou ter uma religião. Tenho de crer num deus em particular e ter uma religião específica. Não se pode ser crente sem escolher um deus nem ser religioso sem escolher uma religião. Mas escolher como?

Uns dizem que são daquela porque lhes impressiona uma tradição rica e exemplos louváveis. Mas se diz um dizem todos, e por isso dá para escolher qualquer religião. Ou até o ateísmo. Não é uma boa razão, e mesmo que só houvesse uma tradição era uma justificação fraquita. Mas, com tradições para todos os gostos, para qualquer religioso ou ateu, isto não serve de nada.

Outros é porque sentem no seu íntimo que têm a religião certa. Têm fé. Confiam. E esta também serve igualmente para tudo, para qualquer religião e até para o ateísmo. Se me desse para isso podia bem ser ateu por ter fé na inexistência de deuses. Não é por aí que vou, porque acho ser um mau caminho, mas se serve para o cristão também serve para o hindu, para o muçulmano e para o ateu.

Depois há as variantes mais eruditas que debitam resmas sobre o assunto, cheias de palavras compridas de ortografia difícil mas sempre impecável. Sem nada de concreto acerca do qual falar, esmiúçam e retorcem o sentido de cada palavra para depois concluir que o deus certo é o que age sem intervir, está para além do tempo e não se pode detectar de forma alguma. O que na prática se resume assim: “não existe”.

Não vejo evidências de deuses em lado nenhum. Não encontro qualquer utilidade para essas hipóteses. E quem argumenta pela sua religião fá-lo sempre fingindo não ver o monte de argumentos idênticos que há para um monte religiões diferentes. Com isso não me convencem. E por isso me chamam ateu.

Talvez o melhor nisto não seja ser muito profundo. Talvez seja melhor olhar em volta.

1- Mais equívocos

segunda-feira, março 15, 2010

Downloads ilegais? Afinal...

A Sociedad General de Autores y Editores (SGAE), a SPA espanhola, processou Jesus Guerra por ter um site de links para a rede de partilha eDonkey2k*. Ao fim de dez meses o juiz decidiu que Jesus Guerra não violou a lei de direitos de autor. Nisto a decisão esteve de acordo com vários antecedentes em Espanha, pois estes sites disponibilizam apenas identificadores dos ficheiros e não armazenam conteúdos protegidos. Escreveu o juiz:

«O sistema de ligações descrito, desenvolvido pelo acusado neste caso, não supõe nem distribuição, nem reprodução nem comunicação pública. […] A actividade do acusado serviu para criar um índice que auxilia e orienta os utilizadores para aceder a redes de troca de ficheiros P2P […]. Mas, no sistema de protecção regulado pela Lei de Propriedade Intelectual, adaptado à norma comunitária, não há provisão alguma que proíba favorecer, permitir ou orientar os utilizadores de redes Internet […] que procurem obras que posteriormente venham a ser objecto de troca através de redes P2P»

Adiantou também que o sistema de ligações é a «base da própria Internet»**, e que aquele tipo de ligação que Jesus Guerra disponibilizava podia-se encontrar pelo Google também. Mas esta decisão foi mais longe. O juiz pronunciou-se também acerca das redes P2P.

Apontou que as redes de P2P em si, «como meras redes de transmissão de dados entre utilizadores particulares da Internet, não violam qualquer direito protegido pela Lei de Propriedade Intelectual.» Além disso, contém muitos ficheiros que não estão protegidos ou cuja protecção não está mandatada à SGAE, e que para determinar se há algum ilícito era preciso que a SGAE apontasse casos concretos de violação dos direitos a seu cargo, coisa que não fez.

Mais importante que isto, o juiz apontou que a partilha de ficheiros não constitui uma utilização lucrativa nem colectiva da obra, pois o acto da transmissão ocorre entre os computadores de cidadãos privados sem retribuição financeira, e que qualquer eventual violação de direitos autorais terá de ocorrer posteriormente, pelo uso que os intervenientes derem aos ficheiros que descarregaram. O acesso à obra também é por vias legais, pois a rede em si não é ilegal, e os ficheiros são gravados em discos, DVDs ou CDs que, precisamente por poderem ser usados para gravar obras protegidas, são vendidos sujeitos a uma taxa que reverte para as sociedades como a SGAE. Ou seja, quando compraram o disco ou DVD onde gravam o que copiam da rede, os utilizadores já compensaram os detentores de direitos de acordo com o exigido pela lei. Na verdade, é uma pretensão pouco razoável a das editoras, esta de termos de pagar uma taxa pela possibilidade de gravarmos material protegido mas, ao mesmo tempo, a lei proibir-nos de o fazer.

Finalmente, o juiz salientou que numa rede de partilha de ficheiros a troca pode ser entre duas pessoas, só de partes de ficheiros, de uma parte entre várias pessoas ou até uma pessoa apagar o ficheiro assim que o descarrega e não o enviar a ninguém. Em alguns casos isto pode violar a lei de propriedade intelectual mas não se pode assumir à partida que uma pessoa que tenha descarregado um ficheiro por meio de uma rede P2P seja culpada de violar direitos de autor. E rematou impondo as custas do processo à SGAE.

Em Espanha a SGAE tem tentado isto já várias vezes, com pouco sucesso. Mas desta vez apanharam um juiz que percebe razoavelmente bem como funciona uma rede P2P e tramaram-se bem.

Mais informação:
O cantinho do Jesus, com o texto integral da sentença.
Peopleware, Espanha – Juiz decreta p2p é legal. Obrigado ao sxzoeyjbrhg pelo link.
TorrentFreak: File-Sharing and Link Sites Declared Legal in Spain, e El Mundo: Un juez de Barcelona confirma la legalidad del P2P en España. Obrigado pelo email com os links.

* Ao escrever isto reparei que tenho saudades do eMule. O Rapidshare é muito mais rápido, mas não tem o mesmo charme...
** Não é... é a base da Web, não da Internet. Mas pronto, não se vai exigir que o juiz saiba isso, até porque de resto revelou perceber bem o que se passava.

E, já agora, a minha série de posts sobre a legalidade dos downloads por cá:
Ilegais? Porquê?
Ilegais? Porquê? – actualização
Ilegais? Porquê? – (in)conclusão.
Ilegais? Porquê? – Desta é que foi. Mais ou menos...

O fbolcludport

e as dificuldades em jantar foram alguns dos temas abordados por Rui Pedro Soares numa comissão parlamentar sobre as negociatas entre a PT e a Media Capital.



Infelizmente, parece que sobrou pouco tempo para esclarecer o que quer que seja. A batata quente continua a saltar de mão em mão, a ver se arrefece.

Mais em no DN: Carlos Barbosa desmente Rui Pedro Soares.

Via Esquerda Republicana.

domingo, março 14, 2010

Mais equívocos.

Ou mais do mesmo. O Alfredo Dinis continua a insistir que «O maior drama do ateísmo [é] estar estruturalmente impedido de [...] erradicar a religião» e que as críticas do ateísmo «não beliscam a religião»(1). Se o maior drama é isso estou bem, que o meu ateísmo serve-me para eu viver sem religião. Se há quem acredite em astrologia, Allah ou aparições em Fátima tenho pena. Gostaria que conseguissem livrar-se desses disparates. Mas antes eles que eu. Quando leio esta afirmação do Alfredo sinto como se me dissesse que o maior drama de não fumar é não conseguir que todos os outros deixem de fumar. O objectivo não é bem esse...

E não beliscar “a religião” não tira valor ao ateísmo. Nenhuma religião se belisca com as críticas das outras. São muito resistentes ao diálogo. Além disso a religião, no singular, não existe. Existem religiões. Muitas. Milhentas crendices, rituais, dogmas, hierarquias e superstições da mais variada espécie, cada uma das quais defendida como “A Religião®” pelos seus praticantes. Quando dou exemplos dessa diversidade, o Alfredo diz que critico caricaturas. Como o padre Gabrielle Amorth, exorcista-mor do Vaticano, segundo o qual o filme “O Exorcista” é «substancialmente exacto»(2), os exorcisados cospem pregos e vidros, e Hitler e Estaline estavam possuídos pelo diabo*. Julga este padre que a maior tragédia do século XX podia ter sido evitada com um par de exorcismos. Talvez o Alfredo não chegue a chamar caricatura a isto. Mas se fosse outra religião suspeito que não hesitaria.

E é por isto que o ateísmo não belisca nenhuma religião. Porque cada religioso acha, à partida e sem discussão, que a sua religião é que é a verdadeira e tudo o resto são imitações inferiores. Chamam-lhe fé. Dizem que a fé é a confiança que têm em deuses mas, em rigor, estão enganados. É apenas a confiança exagerada que têm nas suas próprias crenças. O que me traz ao “quarto equívoco” que o Alfredo aponta. Alegadamente, o ateu pensa que «Só os ateus têm a possibilidade de pensar livremente sem constrangimentos de espécie alguma».

Eu não. Pelo contrário. Julgo que os meus interlocutores nestas conversas são capazes de um pensamento tão livre quanto quiserem. Senão nem discutia isto, que não me interessa tentar o impossível. Também não ensino solfejo a caracóis nem dou aulas de biologia ao Jónatas Machado. E concordo com o Alfredo que o nosso pensamento está sempre sob pressões culturais. É precisamente por isso que devemos avaliá-lo tentando sair dessa perspectiva.

Eu confio no meu ateísmo porque assenta em premissas que eu consideraria igualmente válidas se tivesse nascido numa família muçulmana em Kabul, entre hindus em Varanasi ou budistas em Lhasa. Sou ateu porque não me quero submeter a deuses e porque não encontro evidência objectiva de haver algum. E isto vale aqui e vale do outro lado do mundo. Em contraste, o Alfredo várias vezes justificou a sua fé pela tradição cristã, prendendo-se precisamente àquelas restrições culturais que nos limitam o pensamento se não tentarmos ver mais além. Não por ser incapaz de o fazer. Ao contrário do que o Alfredo sugere, eu tenho confiança que, se ele quisesse, poderia pensar no problema do ateísmo e das religiões de uma forma menos constrangida pela sua cultura e formação. Mas talvez seja por isso que tem relutância em fazê-lo, reconhecendo que se tivéssemos nascido noutra parte do mundo o meu ateísmo seria o mesmo mas a religião dele seria muito diferente.

Tentando contrariar a ideia da fé como uma prisão intelectual, o Alfredo faz notar que a sua religião tem mudado ao longo do tempo. «A compreensão da doutrina e dos dogmas do cristianismo tem sido reformulada de acordo com a evolução da língua e da cultura, bem como dos conhecimentos que se vão adquirindo através da ciência.» Mas isto apenas demonstra o problema que o Alfredo apontou, que a maneira de pensar é pressionada pela cultura e educação. Como diz Dennett, as religiões adaptam-se porque precisam convencer as congregações (3). É por isso que se modificam «de acordo com a evolução da língua e da cultura» e de acordo com a percepção popular da ciência. Não mudam quando descobrem coisas novas. Mudam quando os bancos começam a ficar vazios. Mudam, ou desaparecem.

A ciência faz previsões concretas que, quando falham, a obrigam a mudar. Por isso a teorias da relatividade, da evolução e da mecânica quântica, a astronomia, a bioquímica e a cosmologia, não foram mudando ao sabor de “língua e cultura”. Pelo contrário. Mudaram perante os factos e isso fez mudar muito a nossa cultura, a nossa visão do mundo e até a nossa língua. É este o processo que o ateísmo segue. Olhar para os dados em vez de seguir crenças e tradições.

E como os dados exigem modelos para os interpretar, há que considerar vários. Quanto mais melhor. Considerar a possibilidade do universo ter sido criado por Shiva, por Cronos, pelo Homem-Aranha, por Jeová ou por processos físicos. Depois comparar o desempenho desses modelos e escolher o que melhor explica o que se observa. Esse processo, com os dados que temos, dá em ateísmo. Para se chegar a qualquer alternativa religiosa é preciso escolher essa logo à partida e ignorar o processo por completo. E, nesse caso, a escolha é provavelmente determinada pela cultura na qual se nasceu.

*É curioso que não tenha mencionado Mussolini...
1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Times online, 11-3-2010 Chief exorcist Father Gabriele Amorth says Devil is in the Vatican
3- Neste debate, por exemplo: Debate - Hitchens, Harris, Dennett vs Boteach, D'Souza, Wright, Cuidad de las ideas

sexta-feira, março 12, 2010

Treta da semana: equiparação.

Segundo alerta a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), os autores portugueses estão a passar sérias dificuldades. Por causa de dívidas ao fisco, cerca de mil associados da SPA têm os seus rendimentos penhorados até que saldem as contas com o Estado. Segundo José Jorge Letria, presidente da SPA, «Não queremos que as dívidas dos autores sejam perdoadas nem que tenham qualquer regime de excepção; pedimos apenas que os autores que vivem exclusivamente dos rendimentos autorais possam ser equiparados a trabalhadores por conta de outrem de modo a não verem a totalidade dos seus rendimentos penhorados» (1). Em vez disso, querem saldar as dívidas ao fisco mais suavemente pagando apenas um sexto dos seus rendimentos, como é habitual no caso de trabalhadores por conta de outrem.

Julgo que José Jorge Letria se serve de uma certa liberdade literária quando afirma não quererem «qualquer regime de excepção». Isto porque o Estatuto de Benefícios Fiscais estipula que «Os rendimentos provenientes da propriedade literária, artística e científica [...] são considerados no englobamento, para efeitos de IRS, apenas por 50% do seu valor». Presumo que queira equiparar os autores a trabalhadores por conta de outrem mas sem abdicar desta redução de 50% no IRS. Não será tanto uma equiparação mas uma equiparacinha.

Seria pouco razoável. Um trabalhador por conta de outrem dificilmente foge ao fisco e, se o fizer, será com a cumplicidade do patrão. Eu já recebo o meu ordenado sem o terço que cabe ao Estado. E a julgar pelo que me devolvem todos os anos a fatia que tiram cada mês é maior que a devida. Além disso, quem trabalha por conta de outrem não pode dispensar o ordenado todo. Há um limite para quanto se pode exigir que alguém trabalhe num dia.

A um autor que recebe rendimentos pelo trabalho que outrora fez – até setenta anos de outrora – e, apesar de só pagar metade do IRS, ainda assim foge das suas obrigações fiscais, talvez não seja demais pedir que arranje um emprego até saldar as suas dívidas e poder voltar a viver dos rendimentos. Porque os rendimentos que estão aqui em causa ele recebe-os até se ficar a dormir o dia todo.

Não quero menosprezar a situação dramática em que alguns destes autores provavelmente se encontram. Mas há muita gente a sofrer com a crise e não se justifica que os associados da SPA tenham mais benefícios que outro trabalhador por conta própria, apenas porque são “autores” e em prejuízo de todos os que pagam os seus impostos.

Até porque todos somos autores de alguma coisa. A expressão artística faz parte da nossa cultura, é rara a profissão em que nunca se usa sequer um pingo de criatividade, e é muito rara a pessoa que nunca escreveu uma carta, nunca contou uma história aos filhos e nunca dançou ou desenhou. Mas uma florista, um barbeiro ou uma professora não são “autores”, para a SPA, porque aquilo que criam não dá dinheiro aos distribuidores. Por isso pagam o IRS pelo que ganham, se trabalham por conta de outrem não podem fugir ao fisco e se trabalham por conta própria a SPA não quer saber deles.

E, ao que parece, a preocupação do José Jorge Letria com os seus associados não chega para pagar os trinta (ou quarenta) milhões de euros que a SPA já cobrou e lhes ficou a dever (3). Pode parecer estranho que uma sociedade de cobrança fique sem dinheiro para pagar o que cobra. Mas só até se ver um pouco do que se passa lá dentro. Os quase dois milhões de euros de indemnização por despedimento ilícito que têm de pagar a Catarina Rebello, filha do ex-presidente da SPA, dão uma ideia que as coisas por lá não são tão simples como cobrar e pagar (4). Mas, quando há muito dinheiro a mexer, as coisas nunca são simples.

Os “autores” são prestadores de serviços como quaisquer outros. Como médicos, electricistas, decoradores, cientistas e cabeleireiros, o seu trabalho tem valor porque fazem coisas que nem todos conseguem. E, como tal, deviam receber pelo trabalho que fazem, quando o fazem e conforme o fazem. Infelizmente para a maioria, nos últimos séculos esse serviço que prestam pôde ser vendido com lucro em livros e rodelas de plástico. Isto fez criar leis que permitem aos distribuidores comprar direitos exclusivos sobre o trabalho dos autores e, em vez de lhes pagar pelo trabalho, ir-lhes pagando só em função do lucro que têm. Com as SPAs pelo meio a fazer sabe-se lá o quê ao dinheiro.

Hoje esse modelo não faz sentido. Com a tecnologia moderna vender música ao pacote é como vender matemática, anedotas ou ciência. A distribuição de informação é gratuita e o mercado que houver para isso será residual. O mais valioso voltará a ser o serviço de criar e não o de distribuir. E é isso que a lei deve reflectir. Se não fosse esta lei conferir monopólios aos distribuidores a SPA não teria de pedinchar para equipararem os autores a trabalhadores por conta de outrem. Porque se os tratassem como qualquer profissional qualificado poderiam receber um ordenado pelo seu trabalho sem terem de vender os seus direitos.

1- Agência Financeira, 10-3-10, Fisco: mais de mil autores têm rendimentos penhorados. Obrigado pelo email com o link.
2- Portal Gestão, EBI, Artigo 58º
3- Público, 1-4-09, Declaração de voto alerta que SPA já não tem dinheiro para pagar aos autores
4- Expresso, 20-12-08, SPA paga 2 milhões a antiga funcionária

quinta-feira, março 11, 2010

Experiência religiosa.

Esta conversa com o Alfredo Dinis começou um pouco escondida nos comentários do Companhia dos Filósofos mas penso que merece mais atenção (1). Resumindo o mais importante, o Alfredo propôs que «A sensação de que Deus existe e me permite ter uma relação pessoal muito profunda com ele» indica que essa relação é real e que esse deus existe de facto. Além disso, esta sua «experiência religiosa [...] tem sido uma fonte de contínua serenidade, amadurecimento humano, felicidade pessoal na abertura constante aos outros.» O Alfredo admite que isto «não é de facto uma prova objectiva de que Deus existe» mas, subjectivamente, parece justificar a enorme confiança na existência desse ser mesmo sem qualquer prova objectiva.

Um problema nisto é assumir implicitamente que os ateus não sentem algo análogo. É como se o ateu fosse cego e simplesmente não se apercebesse que esse deus existe. Mas esta premissa é falsa. Se vemos alguém convencido que fala com os mortos ou que vê o futuro nos búzios, mesmo que nos pareça ser uma crença honesta e genuína não ficamos com a sensação de sermos nós os cegos. Pelo contrário. A sensação – forte – é que estamos a ver nitidamente que aquilo é um disparate*. Tal como a sensação de um deus motivou o Alfredo ao sacerdócio, também eu fui motivado a dedicar-me ao ensino, à investigação e a discussões como estas pela forte sensação de que muitas pessoas se perdem na ignorância, ou se gastam em crenças sem sentido, e que tudo é mais claro se não toldarmos a realidade com fantasias.

Concordo com o Alfredo que estas sensações não são evidência objectiva para qualquer das nossas posições, nem a dele nem a minha. E, mais que isso, não indicam qualquer diferença fundamental entre nós. A minha experiência pessoal não é a mera ausência daquilo que o Alfredo sente. Eu sinto mesmo que não existem deuses, uma sensação tão forte e tão clara como a sensação de que não há elefantes na minha dispensa. Não há razão para assumir que a minha sensação vale menos ou é mais fraca que a do Alfredo. Por isso proponho que nisto estamos empatados, com sensações fortes em sentidos opostos.

Mas a sensação do Alfredo fica muito aquém de suportar, mesmo subjectivamente, aquilo que o Alfredo defende. Chamar-lhe “experiência religiosa” é um exagero. Que é uma experiência de algo que o Alfredo julga divino não duvido. Nem duvido que seja uma parte importante da sua vida, nem que lhe dê uma confiança genuína que um deus existe. Mas uma religião é muito mais que isso. Não é credível que todos os detalhes do dogma e ritual católico tenham chegado ao Alfredo numa sensação. Certamente não acordou um dia a sentir que Pedro guia Ratzinger em matérias de dogma, que a água só fica benta e a hóstia se transubstancia com aqueles rituais e mais nenhuns, que as mulheres não podem ser sacerdotes e assim por diante. A sensação de que um deus existe, por muito profunda que seja, não dá sequer para determinar que deus é. Tanto pode ser Jeová, Júpiter, Allah ou Ahura Mazda. A experiência pessoal do Alfredo pode justificar subjectivamente a sua fé mas nem subjectivamente consegue justificar a sua religião. Precisava de muitos detalhes que algo desta natureza não pode dar.

Em contraste, a minha sensação de não haver deuses chega bem para justificar subjectivamente o meu ateísmo. É um passo trivial. Se não há deuses não rezo, não vou à missa, não acredito em nascimentos virgens ou hóstias transubstanciadas e não vejo razão para impedir mulheres de celebrar a eucaristia se elas quiserem perder tempo com isso.

Além disso, tenho uma boa razão objectiva a meu favor. A minha hipótese – não há deuses – é simples, clara, e dá imediatamente uma previsão testável. Se eu tiver razão nunca vamos encontrar deuses. Não preciso inventar desculpas, assumir hipóteses auxiliares acerca de deuses que se pode sentir pela fé mas que não se pode ver ou sequer cheirar sem esta, ou deuses que fazem milagres, abençoam e concedem graças mas nunca de forma que se possa concluir que existem mesmo. Eu tenho uma hipótese simples e totalmente de acordo com os dados de que dispomos. O Alfredo tem um emaranhado de hipóteses, interpretações, premissas ad hoc e conjecturas sem suporte que, depois de muitas voltas, acabam por trazê-lo exactamente à mesma constatação que suporta a minha:

«Como já disse noutras ocasiões, não creio que haja uma prova objectiva de que Deus existe.»

De acordo. Mas não será esta precisamente a justificação objectiva do ateísmo?

* Quem acreditar que fala com os mortos ou que se pode ver o futuro nos búzios escolha outra coisa. Uma vantagem de haver tantas tretas é ser muito difícil acreditar em todas.**
** Se for uma dessas pessoas que consegue acreditar em todas as tretas, para perceber o argumento imagine alguém convicto que os astronautas foram à Lua ou que as Torres Gémeas caíram por causa de um ataque terrorista...

1- no post Falta de tempo para rezar?.

quarta-feira, março 10, 2010

Adenda ao post anterior.

Por um artigo recomendado pelo Luís R., e ao fim de umas voltas, fui dar a um artigo de 2008 escrito por Russell Carroll, director de marketing de uma empresa que vende jogos online. Descarrega-se uma versão de demonstração no site da empresa e, para se ter acesso ao jogo completo, depois tem de se comprar uma licença. Como esses jogos também permitem ligar aos servidores da empresa para ir buscar mais níveis, naves diferentes, armas e essa tralha, eles reuniram bastantes dados acerca da pirataria dos seus jogos (1).

Um dado interessante é que 92% das pessoas que acediam ao site da empresa com a versão completa do jogo tinham uma versão pirateada. Ou porque usaram geradores de chaves, um crack ou alguma defesa no DRM, conseguiam jogar com a versão completa sem ter pago. Este número é significativo. Para cada pessoa que compra o jogo há mais de dez a jogar com uma cópia não autorizada.

Mediram também o impacto que tiveram várias medidas de melhoramento do DRM do jogo, para impedir a pirataria. Os resultados foram algo erráticos mas, em média, descobriram que ganhavam uma venda por cada mil cópias pirata que prevenissem. Um para mil. É ainda mais significativo.

A conclusão é bastante clara. A maior parte das pessoas que joga fá-lo à borla, sem pagar. Mais de 90%. Mas dessas, a esmagadora maioria – 999 em cada mil – não compraria o jogo mesmo que não o pudesse jogar de graça. São muito poucos os clientes que se perde por causa da pirataria.

Mas é muito provável que percam bastantes clientes por causa do DRM, como ilustra o artigo que o Luís referiu. A Ubisoft implementou um sistema de DRM que contacta constantemente os servidores da empresa para validar as cópias dos clientes enquanto estes jogam. No dia 8 os servidores estiveram inacessíveis e uma data de gente ficou sem poder jogar (2). Os que pagaram o jogo, claro. Porque os que tinham o jogo pirateado não foram afectados...

1- Game Set Watch, Opinion: 'Casual Games and Piracy: The Truth
2- Rock, Paper, Shotgun Ubisoft’s DRM Servers Broken All Day

DRM

DRM é a sigla inglesa de digital rights management ou, em português, defeitos, restrições e merdices. Faz parte de um paradigma revolucionário da industria de distribuição. Tradicionalmente, vendia-se coisas agradando aos clientes e aliciando-os a comprar. Mas as editoras discográficas e as distribuidoras de filmes romperam com esta tradição ultrapassada. Agora a estratégia é incomodar e ameaçar os clientes. Se compramos um DVD levamos um sermão sobre o roubo de carros e afins. Se vamos ao cinema ameaçam prender-nos se tivermos uma máquina de filmar. Se a moda pega, nos restaurantes vai passar a haver cartazes com as penas de prisão por furto da máquina registadora ou homicídio do cozinheiro a ver se isso abre o apetite à clientela.

O DRM leva o assédio mais longe, pois permite ao vendedor controlar o uso que damos, em nossa casa, à coisa que lhe comprámos. Por exemplo, o CD de música que instala no nosso computador um programa para nos impedir de copiar faixas para o leitor de MP3. Não que seja ilegal copiá-las. Por lei temos esse direito, de mudar o formato, ouvir noutro aparelho ou criar cópias para uso pessoal. E não é por vontade dos autores, que poucos querem “proteger” a sua música impedindo que a oiçam. É só porque o distribuidor acha que lhe dá jeito e pode fazê-lo (1). É como comprar uma torradeira com controlo remoto e, a cada pequeno almoço, telefonar ao vendedor a pedir para nos deixar fazer uma torradinha.

O sucesso desta abordagem não tem sido total. Outro dia encontrei na Amazon o Sacred 2 à venda por menos de seis libras (2). Fantástico, pensei eu. Um jogo enorme, mesmo como eu e os miúdos gostamos, barato e enviado a casa com um click. Mas com DRM. Para instalar tenho de ligar aos servidores deles e pedir autorização para jogar o jogo que comprei. Dizem-me que esses servidores «vão estar disponíveis nos próximos anos. Se não for o caso haverá uma actualização para retirar o DRM»(3). Ou seja, daqui a uns tempos o jogo deixa de funcionar e é preciso confiar que possa encontrar arranjo para isso. Como já me tramei uma vez com estas tretas das validações online em jogos que não quero jogar online (4) não me atrai a proposta. Poupo seis libras e eles vendem menos um jogo.

E isto só chateia os clientes. A Ubisoft implementou um novo sistema de DRM que obriga o cliente a estar sempre ligado aos servidores da Ubisoft enquanto joga, mesmo que não esteja a jogar online. Foi a “super-protecção” escolhida para o Silent Hunter 5, o primeiro jogo desta fornada à prova de piratas. Supostamente. Poucas horas depois do jogo sair já havia na 'net programas para tirar essas restrições (5). Quem compra o jogo tem de ficar ligado à Ubisoft para jogar. Quem o saca da 'net joga à vontade sem chatices.

Também se pode comprar o jogo e depois sacar só o crack para corrigir os defeitos do original. Mas isso é ilegal porque contorna o mecanismo de “protecção”. Curiosamente, sacar uma cópia do jogo que já venha sem estas tretas – alterada por miúdos ucranianos que se entretêm a gozar com os cotas das editoras – pode nem ser ilícito (6). Por um lado porque o mecanismo de protecção já vem desactivado e, por outro, porque tendo decidido não comprar o original defeituoso não se causa prejuízos indevidos ao descarregar a cópia. Não é certo que o juiz concorde; dependerá da sua disposição nesse dia. Mas a lei só diz ser ilícito tirar o DRM de um produto legitimamente comprado. Copiar algo que não se compra é permitido se for para uso pessoal e não causar prejuízo. Pelos vistos o problema é o cliente.

A situação ainda se torna mais ridícula quando compramos um ficheiro, como uma música ou livro em formato electrónico. Nesse caso o DRM consiste num sistema que nos permite copiar e aceder a um conjunto de bytes sem permitir copiar ou aceder a esse conjunto de bytes, o que é obviamente difícil de pôr a funcionar bem. Felizmente, há sempre alternativas. Vejam, por exemplo:

The Brads – Why DRM Doesn’t Work. Via o FriendFeed da Paula Simões.

1- The Big Picture, DRM Crippled CD: A bizarre tale in 4 parts
2- Amazon, UK, Sacred 2, Fallen Angel
3- RPG watch, Sacred 2 - Copy Protection Revealed [Update]
4- Treta da Semana: o cliente é sempre ladrão.
5- Torrentfreak, Ubisoft’s Uber DRM Cracked Within a Day
6- Se descarregar de um servidor como o rapidshare (como este exemplo), porque se usasse uma rede p2p cometeria o ilícito de distribuir sem autorização.

segunda-feira, março 08, 2010

Deus e a pedra.

Dizem que Deus é omnipotente. Não explicam como o descobriram nem sequer como se testa se alguém é omnipotente e não apenas muito poderoso. Dizem que é, e pronto. E a omnipotência é problemática, como ilustra o clássico exemplo de Deus criar uma pedra tão pesada que nem ele possa levantar. Se Deus é omnipotente então consegue criar um objecto inamovível. E se é omnipotente consegue movê-lo. Mas se consegue movê-lo é porque não o conseguiu criar inamovível. Ou seja, mesmo quem é omnipotente não pode fazer tudo, ao contrário do que o termo sugere.

Os defensores da omnipotência dizem que este problema se resolve restringindo a omnipotência apenas ao que é logicamente possível e definindo em seguida o âmbito dessa possibilidade. O que foge ao problema, que era precisamente ser preciso encolher a omnipotência para ser menos que "pode fazer tudo". Mas adiante. Explicam então que se Deus é omnipotente é capaz de mover qualquer objecto. Assim, é logicamente impossível existir um objecto inamovível e, por isso, a incapacidade de Deus criar tal objecto não contradiz a sua omnipotência. Sendo esse objecto logicamente incompatível com um deus omnipotente, conclui-se que um deus omnipotente não consegue criar um objecto que não possa mover.

Como é regra nestas "explicações", a hipótese parece razoável só até considerarmos alternativas. Por exemplo, se um objecto é inamovível é logicamente impossível movê-lo. E se um Deus é omnipotente pode criar qualquer objecto, mesmo inamovível. E como é logicamente impossível mover um objecto inamovível, a incapacidade de Deus mover tal objecto não contradiz a sua omnipotência. Demonstra-se assim exactamente o contrário do parágrafo anterior: Deus pode criar um objecto inamovível – afinal, é omnipotente – mas não o pode mover porque isso seria logicamente impossível – o objecto é inamovível, por definição – e Deus só pode fazer o que é logicamente possível.

A hipótese de haver um ser que pode fazer tudo cria inconsistências como esta entre poder criar um objecto inamovível e poder mover esse objecto. Para eliminar tais inconsistências basta eliminar uma das hipóteses. Ou consegue criar qualquer objecto mas não consegue mover os inamovíveis, ou consegue mover qualquer objecto e não consegue criar um que seja inamovível. Mas isto não resolve o problema original que é não ser possível ter poder para para tudo. É sempre preciso substituir a noção de omnipotência, que em vez "pode fazer tudo" passa a ser "só pode fazer aquilo que não torne a ideia absurda".

Ainda assim, ficamos com duas formas diferentes mas perfeitamente equivalentes de eliminar a contradição. E ficamos sem saber se a omnipotência de Deus lhe permite mover qualquer objecto ou se lhe permite criar objectos inamovíveis. Sabemos que ambas não pode ser, mas qual das alternativas é a correcta permanece um mistério. Como tudo o resto, nestas coisas.

O problema principal é que todas estas hipóteses são gratuitas e inúteis. Não há qualquer observação que nos indique se a omnipotência de Deus permite, ou não permite, criar um objecto inamovível. Não há nada que se explique com estas hipóteses. E o mesmo se passa com a própria hipótese da omnipotência.

Há muitas hipóteses que não podemos descartar sem ficar com dados a nu, com coisas por explicar. Se descartarmos a gravitação não percebemos o movimento dos corpos. Sem o electromagnetismo não compreendemos a luz e a electricidade. Sem a evolução não se percebe a diversidade dos seres vivos, e assim por diante. Mas se descartarmos a hipótese de existir um deus omnipotente toda a nossa compreensão daquilo que observamos fica na mesma. Não perdemos nada ao rejeitar essa hipótese.

Além disso, descartar a hipótese que Deus existe resolve uma data de problemas destes. Problemas inconsequentes mas que, como os símbolos do Reiki, infelizmente muita gente leva a sério. O problema de Deus já saber tudo o que eu vou fazer ao longo da minha vida, tornando a minha liberdade numa mera ilusão. O problema de permitir que crianças sofram com doenças e acidentes. O problema de ser extremamente exigente quanto a rituais e comportamento mas não esclarecer qual dos livros sagrados, doutrinas e líderes religiosos é o certo. Todos esses problemas desaparecem, sem qualquer desvantagem, se fizermos à hipótese de Deus o que fazemos com a do Pai Natal.

É uma razão forte para ser ateu. É análoga ao que me leva a fazer contas sem me pôr a somar zero e a multiplicar por um a cada passo. Mesmo que seja logicamente consistente e mesmo que não altere o resultado é tempo perdido e não adianta de nada.

domingo, março 07, 2010

Iguaizinhos.

Jung chamou-lhe sincronicidade. Caracteriza a relação de acontecimentos que, mesmo sem ligação causal, partilham um sentido semelhante de uma forma que não se explica por mera coincidência. É uma coincidência com significado.

Eu pensava que isto era treta até me acontecer a mim. É uma experiência profunda que não resisto partilhar. Convido-vos por isso a ouvir durante alguns minutos a Fernanda de Sousa, entrevistada pela Heloisa Miranda, a falar sobre os símbolos do Reiki tradicional:

Zen, Reiki tradicional – 3

Depois, dêem uma olhada neste e digam lá se não é tal e qual.

sábado, março 06, 2010

Treta da semana: a mediocridade do colunismo.

O Henrique Raposo, colunista do Expresso, escreveu esta semana sobre o Christopher Hitchens (1). Ou talvez tenha sido sobre o ateísmo. Ou sobre a «família de esquerdistas que deixou de pensar quando o fascismo e o nacionalismo acabaram na Europa.» Ou, se calhar, foi sobre outra coisa qualquer. Apesar de curto, mérito que lhe reconheço, o texto do Henrique anda por muitos lados sem chegar a parte nenhuma.

O título diz ser sobre a mediocridade do ateísmo mas o texto alega que Hitchens só ataca a religião porque é de esquerda, explica que Hitchens é zangado e preguiçoso e remata dizendo que Hitchens deve tudo a Deus. Não percebo como isso tornaria o ateísmo medíocre mesmo que fosse verdade. Não sei o que o Henrique julga que é o ateísmo, mas o meu não se torna medíocre por causa do Hitchens. Isto para mim não é pertencer a um clube de futebol ou a uma seita religiosa. O meu ateísmo é uma opinião minha, pelas minhas razões e se for medíocre a culpa é minha e não do Hitchens.

É irónico que o Henrique chame preguiçoso ao Hitchens quando «compara, de forma leviana, a religião ao fascismo» sem lembrar o «papel essencial da religião na luta contra os totalitarismos do século XX». É o típico exagero do protagonismo "da religião" (como se só houvesse uma). O que derrotou os totalitarismos do século XX foi a industria dos EUA e URSS nos anos 40 e a economia do ocidente nas décadas seguintes. Esses foram os factores mais importantes. Não foram os segredos de Fátima que derrubaram o muro de Berlim nem as forças armadas do Vaticano que tiraram Hitler do poder. E na entrevista que o Henrique refere, Hitchens apenas afirmou que «Nos anos 30 e 40 do século XX, diria que a mais perigosa era o catolicismo romano porque estava relacionado com o fascismo»(2). O apoio do Vaticano a Mussolini é um dado histórico bem estabelecido.

A acusação de preguiça é irónica porque basta um pouco de atenção para ver que várias seitas religiosas fundamentalistas, cristãs, muçulmanas e outras, adoptam elementos do fascismo. O nacionalismo, as formas de liderança, a revitalização pela violência e outros. E o próprio fascismo começou pela mistura de política e religião. Segundo Mussolini, o fascismo é «uma concepção religiosa na qual o homem é visto na sua relação imanente com uma lei superior e com uma Vontade objectiva que transcende o indivíduo e o eleva à participação consciente numa sociedade espiritual»(3). Isto e as milícias armadas dos fundamentalistas cristãos nos EUA, ou organizações como al Qaeda, mostram que a relação de certas religiões com o fascismo não é um capricho preguiçoso nem leviano do Hitchens. É uma tendência preocupante.

No fim, o Henrique Raposo remata com «nunca digo que sou ateu. Sou agnóstico. E, como agnóstico, digo que é mais fácil falar com um crente do que com um ateu. Aliás, é impossível dialogar com um ateu.» E pronto. Não explica o quê, nem porquê, nem como ser impossível dialogar com um ateu faz com que o Henrique já não saiba se existe ou não existe Deus.

O texto do Henrique é uma baralhada incoerente de alegações. Não se percebe se é por estar zangado ou por ser de esquerda que o Hitchens deixa de ter razão. Não explica o que os problemas do Hitchens possam ter que ver com a mediocridade do ateísmo. E ainda menos como é que o Henrique ficou agnóstico por causa disso. Reforça também a ideia que se deve ser agnóstico para não incomodar os crentes. Deus não existe, mas vamos todos dizer ah, não sei, a ver se ninguém se aborrece. E quanto a ser impossível dialogar com ateus, talvez fosse boa ideia experimentar primeiro. Isso, e pensar no que quer dizer antes de escrever e carregar em "publish".

1- Expresso, A mediocridade do ateísmo. Obrigado a todos que me enviaram isto por email. O Raul Pereira também comentou isto neste post.
2- I, "A religião envenena tudo e não acaba porque somos egocêntricos"
3- Wikipedia, Neo-fascism and religion

sexta-feira, março 05, 2010

É mais o contrário...

No Reino Unido, como em qualquer país civilizado, não é aceitável discriminar pessoas pela sua orientação sexual. Em Fevereiro de 2007 o Joint Committee On Human Rights (JCHR) pronunciou-se acerca da proibição deste tipo de discriminação, proposta pelo governo. Entre outras coisas, o governo propunha que tal regulação fosse também aplicada às escolas privadas de forma que «quando seleccionando alunos para admissão não possam tratar alunos prospectivos diferentemente por causa da sua orientação sexual (ou da dos seus pais ou outras pessoas associadas com eles), negar privilégios ou oportunidades […] por causa da sua orientação sexual, nem aplicar medidas disciplinares diferentes a alunos homossexuais ou a comportamentos homossexuais.»(1) Mas o governo deixava ainda aberta a questão do que fazer acerca dos currículos das escolas religiosas.

A recomendação do JCHR foi que o Regulamento que proíbe a discriminação pela orientação sexual deve claramente aplicar-se ao currículo, para que alunos homossexuais não sejam sujeitos ao ensinamento, como parte da educação religiosa ou outro currículo, que a sua orientação sexual é pecaminosa ou moralmente incorrecta. Aplicar o Regulamento ao currículo não impede que se ensine aos alunos como parte da sua educação religiosa o facto de certas religiões verem a homossexualidade como pecaminosa. Na nossa perspectiva há uma diferença importante entre esta informação factual ser dada de forma descritiva como parte de um programa abrangente acerca de diferentes religiões, e um currículo que ensine as crenças doutrinais de uma religião em particular como se fossem objectivamente verdade. Esta última levará provavelmente a uma discriminação injustificável contra alunos homossexuais.»

Isto é razoável. Se numa escola religiosa acreditam que deus castiga os homossexuais, ou que ser homossexual é um pecado terrível, podem ensinar que é isso que pensam. Mas tal como ensinar que os gregos aprovavam o abandono de bebés com defeitos físicos é diferente de ensinar que se deve matar essas crianças, também afirmarem que acreditam nessas coisas é diferente de ensinar que são mesmo verdade. E uma sociedade decente não condena ninguém pela sua orientação sexual.

Como é uma proposta razoável não me admirei que o Bernardo Motta a condenasse, uma «viragem legislativa de sabor totalitário e anticristão»(2). Muitos parecem ter medo que vá tudo virar gay se deixarmos de reprimir a homossexualidade, uma insegurança da qual não quero extrapolar mas que me parece estranha. Tal como a atitude de ser contra a homossexualidade. Não é que compreenda como se pode sentir atracção sexual por um homem. Admito, isso não percebo. Mas o mistério não tem nada que ver com a homossexualidade. Até percebo melhor as preferências sexuais de uma lésbica que as da minha mulher, que não compreendo como prefere um coiso como eu, desajeitado e peludo, a alguém como ela, muito mais atraente, elegante e bonita. Mas estranho a atitude de condenar os gostos alheios, mesmo os que não compreendo, e o aparente receio que esse gostos se contagiem. Estranho porque não faz sentido. Mas, de tanto disparate que tenho visto defendido acerca da homossexualidade, já só estranho e não me admiro.

O que me espantou no post do Bernardo foi acusar esta proposta de relativismo. «Ou seja, pode-se dizer à miudagem que os cristãos acham a homossexualidade imoral e pecaminosa, mas não se pode dizer, no contexto de uma escola cristã, que essa avaliação cristã é verdadeira. Espantoso! É a "nova escola" no seu melhor, relativista até ao âmago.» Que alguns cristãos acham a homossexualidade imoral é verdade. Pode-se dizer. Tal como é verdade que alguns muçulmanos acham imoral as mulheres andarem sozinhas na rua, alguns judeus acham imoral trabalhar ao Sábado, alguns hindus acham imoral comer carne de vaca e assim por diante. Não é relativismo. São factos. Há mesmo muita gente com ideias estranhas.

Relativismo é o que o Bernardo quer. É ensinar às crianças que estas coisas são imorais "no contexto" da religião que os seus avós impingiram aos seus pais. É fazer da moral rebuçados, cada cor seu sabor. Isso não só é uma fantochada como é um perigo para a sociedade. Para que convivam em paz todos os que condenam coisas como o trabalho ao Sábado, andar sem lenço na cabeça, comer carne de porco ou usar preservativo, e todos os que fazem regularmente aquilo que esses condenam, é preciso que cada um tenha direito à sua opinião mas que não a confunda com a verdade absoluta.

Se há uma lição importante a dar às crianças é mesmo esta. Para evitar o relativismo, e a intolerância que este traz, é preciso ensinar que cada um pode ter a sua opinião mas não a sua verdade. Quem gosta de homens tem o direito de gostar de homens, quem gosta de mulheres tem o direito de gostar de mulheres, e têm esses direitos quer tenham ovários quer tenham testículos. E quem gosta de apontar os gostos dos outros como pecado também tem o direito de o fazer. Mas não deve ensinar isso às crianças como se fosse mais que mera mania sua.

1- Parliament, UK, Joint Committee On Human Rights Sixth Report, 5 Education
2- Bernardo Motta, O totalitarismo anticristão já começou no Reino Unido...