terça-feira, março 31, 2009

Umbigologia.

Um modelo de uma moeda pode ser que é equilibrada e tem igual probabilidade de cair cara ou coroa. Ou pode ser que a moeda é controlada por um demónio invisível que determina com que face ela cai. A grande diferença é que a hipótese do primeiro modelo ser adequado a uma dada moeda pode ser provada. Não no sentido de uma demonstração matemática, como se prova um teorema, mas no sentido de provar um fato a ver se serve, ou a comida para ver se está bem de sal. No sentido de pôr à prova. Lança-se a moeda várias vezes e vemos se o resultado está de acordo com o esperado pelo modelo.

O segundo modelo não permite isto porque não diz que resultado esperar. Sem uma ideia concreta do que o demónio quer ou faz, por muito que lancemos a moeda nunca vamos saber se aquele modelo é adequado àquela moeda. Ou seja, se existe tal demónio a fazer o que o modelo diz. Por isso a hipótese deste modelo corresponder à realidade nem sequer consegue ser falsa. É irrelevante e indistinta de infinitas alternativas igualmente absurdas.

Num post ao qual recentemente chamou a minha atenção, o Miguel Panão propõe um modelo que sofre do mesmo problema. «Uma abordagem proposta por Bob Russel é a Acção Divina Objectiva Não-Intervencionista (ADONAI[1]) definindo-a como uma “abertura inerente nos próprios processos evolucionários onde Deus pode agir. Não é o argumento das ‘lacunas’ uma vez que Deus não está a intervir na evolução; antes, Deus está já imanente na natureza como Trindade, agindo dentro da abertura com a qual dotou o universo quando o criou”.»(1)

O problema é que «Deus está já imanente na natureza como Trindade», tal como “um demónio controla a moeda”, é falar acerca de uma coisa sem dizer nada acerca dela. Por não especificar o que se espera observar, o modelo é um contra-senso. Tenta representar algo sem representar nada.

Se nós assumimos que a moeda é equilibrada há duas possibilidades. Se a moeda se comporta como esperamos ganhamos confiança no modelo. Se se comporta de uma maneira inesperada então temos justificação para substituir o modelo ou introduzir-lhe novos elementos. É assim que a ciência progride. Partindo de modelos com previsões concretas e alterando-os quando se revelam inadequados.

A teologia, após falhanços como o geocentrismo e o criacionismo, parece ter desistido de criar modelos acerca da natureza. Agora só olha para si própria e propõe coisas que não ligam a lado nenhum.

1- Miguel Oliveira Panão, 1-3-09, Como pode Deus agir sem intervir?

segunda-feira, março 30, 2009

Uma boa explicação para a crise mais recente.

Se é verdade, não sei. Mas está bem explicadinho. Via Ciência ao Natural.


The Crisis of Credit Visualized from Jonathan Jarvis on Vimeo.

domingo, março 29, 2009

Evolução: compaixão e ética.

«Durante o inverno no Zoo de Arnhem, depois de limpar o recinto e antes de soltar os chimpanzés, os tratadores lavavam os pneus com a mangueira e penduravam-nos num tronco horizontal preso à estrutura onde os chimpanzés trepavam. Um dia, Krom interessou-se por um pneu que ainda tinha água. Infelizmente, era o último da fila, atrás de vários pneus pesados. Krom puxou e empurrou o pneu que queria mas não o conseguiu remover do tronco. Tentou em vão durante dez minutos, ignorada por todos excepto Jakie, um chimpanzé de sete anos de quem Krom tinha cuidado quando era pequeno. Logo que Krom desistiu e se afastou, Jakie aproximou-se e, sem hesitar, empurrou os pneus um por um para fora do tronco. Quando chegou ao último, tirou-o com cuidado, levou-o direito para não entornar a água e colocou-o em pé perto da tia. Quando Jakie se afastou Krom já estava a tirar água do pneu com a mão.»(1)

Segundo o Nuno Gaspar, «Tudo no animal é realizado em função da sobrevivência, pelo que tudo é previsível. Onde aparece escolha livre começa a humanidade.»(2) Concordo em estender o conceito de humanidade para incluir todos os animais que demonstrem características humanas. Consciência de si próprio, por exemplo. Mas o Nuno quer fazer o contrário, inventando um “facto” como diferença radical entre nós e os restantes membros da família. Isto nem tem muito que discutir. É trivialmente falso.

Mais interessante é a ideia do Nuno que a evolução obriga todos os animais a ficar «orientados para a sobrevivência da espécie»(2). É completamente falsa, mas de uma forma menos óbvia. Primeiro, a evolução não orienta para nada. Não tem objectivos a cumprir. Mas como as características de uma geração vieram quase todas da geração anterior, a população tende para aquelas que melhor se correlacionam com o sucesso reprodutivo.

E não é a sobrevivência que conta. Nem do organismo nem da espécie. A selecção leva muitas vezes a características contrárias à sobrevivência dos organismos, como os salmões que morrem ao desovar, as abelhas que morrem quando picam, ou os machos de algumas espécies de aranha e louva-a-deus que são comidos (literalmente) pelas parceiras. E a “sobrevivência da espécie” nem faz sentido. Uma espécie é um conjunto de populações. É mais conceito que coisa. Nos organismos que se reproduzem sexualmente este conjunto é delimitado pelos cruzamentos que não produzem descendentes férteis. Nos outros organismos, a maioria, é delimitado por o que for mais conveniente ao biólogo. E como as populações variam ao longo do tempo é completamente arbitrário dizer que a espécie sobreviveu ou não.

O que importa é a correlação entre características e reprodução. É isso que determina a distribuição de características nas populações. Por isso, se animais vivem em grupos compostos por parentes próximos, características que promovam a cooperação vão se propagar. Porque quando um animal, com essa característica, ajuda o seu vizinho está provavelmente a ajudar um animal com cópias dos genes que conferem essa característica. E quando os animais são suficientemente inteligentes para compreender o que os seus vizinhos querem ou precisam temos as condições necessárias para a evolução da compaixão, do amor, da gratidão e sentimentos afins. Não é para a sobrevivência do organismo nem para o bem da espécie. É apenas porque, nessas condições, essas características se propagam.

Assim, a evolução biológica deu-nos a disposição para nos preocuparmos com os outros e a preocupação necessária para nos importarmos com o que fazemos. Muito antes de sermos Homo sapiens. E ainda hoje são estas disposições que regem a maior parte dos comportamentos que consideramos morais. A caridade, a compaixão, o amor. Tudo o que fazemos porque sentimos algo pelos outros, e tudo o que sentimos que nos leva a fazer algo pelos outros. Só que isto ainda não é ética*.

Há um passo importante que só surgiu depois da linguagem e raciocínio simbólico, depois de muita evolução cultural, e que é recente. É o “deve ser” como regra abstracta, independente do ponto de vista ou daquilo que sentimos pelo outro. As ideias de Platão, o imperativo categórico de Kant ou o cálculo de utilidade de Bentham**, por exemplo. Algo muito mais sofisticado do que “amar o próximo”, que apenas apela à nossa nobre herança de primatas. E foi esta sofisticação que nos permitiu coisas como a declaração universal dos direitos do Homem, os direitos dos animais e a democracia. Mas, como tudo o que fazemos, esta capacidade de abstracção também deriva de mecanismos biológicos que evoluíram. Não para a sobrevivência de cada um, e muito menos para a “sobrevivência da espécie”. Apenas porque estas características se propagaram melhor que as suas concorrentes no tempo dos nossos antepassados.

*Não é consensual, mas um post não dá para tudo...
**Que ele baptizou com o termo ironicamente infeliz de “cálculo de felicidade”.
1- Adaptado do livro “Primates and Philosophers”, de Frans de Waal, que recomendo a quem estiver interessado neste assunto. Podem ler aquium capítulo do livro, de onde tirei este excerto.
2- Comentários em Justiça ou Caridade

sábado, março 28, 2009

300

Hoje, segundo o Sitemeter, este blog passou as trezentas mil visitas. Metade deve ter sido o Jónatas Machado a colar comentários criacionistas mas, mesmo assim, é um número porreiro. Obrigado a todos.

Treta da semana: pio, salpico e opúsculo.

No ano da graça de 2005, Duarte Pio de Bragança escreveu um opúsculo sobre a vida do nosso santo mais recente. Neste contou que «Quando passava de Tomar a caminho de Aljubarrota, a 13 de Agosto de 1385, D. Nuno foi atraído a Cova da Iria, onde, na companhia dos seus cavaleiros, viu os cavalos do exército ajoelhar, no mesmo local onde, 532 anos mais tarde, durante as conhecidas Aparições Marianas, Deus operou o Milagre do Sol». De rigor histórico duvidoso, este relato é ainda assim de um simbolismo intrigante.

A mensagem parece ser que os cavalos já sabiam onde se ia dar o milagre, cinco séculos antes da notícia chegar a uns jovens membros da espécie humana. Os cavaleiros, incluindo o Condestável, simplesmente pasmaram sem perceber o que se passava. Esta demonstração da superioridade teológica dos equídeos faz-me suspeitar que a senhora Guilhermina, sofrendo da maleita causada pelo salpico de óleo no olho, terá pegado numa figura do Condestável montado a cavalo e, inadvertidamente, amilagrado a vista com a parte inferior do boneco. Chamo por isso a atenção das autoridades eclesiásticas para a possibilidade de, no próximo dia 26, canonizarem o mamífero errado.

Deixado o aviso, passo ao que motivou este post. Na quarta-feira o Carlos Esperança escreveu sobre o opúsculo e Duarte de Bragança, concluindo com «Felizmente vivemos em República. Somos cidadãos e não súbditos. Quando nos cansamos dos titulares dos órgãos de soberania, votamos noutros. E ninguém, com juízo, votaria em quem acredita que Nuno Álvares curou o olho esquerdo de D. Guilhermina de Jesus, queimado com salpicos de óleo de fritar peixe.»(2)

A principio surpreendeu-me a resposta dos defensores da monarquia. «Que raio de nome para quem se diz Ateu, pois para ter esperança há que ter fé». «Ainda não entendi como é que esta corja republicana ainda tira o chapéu à república». «não nos provoquem com textos denegrindo a imagem de S.A.R., O Senhor Dom Duarte Pio.» e assim por diante. Em mais de 70 comentários nenhum respondia à critica do Carlos. Que Duarte de Bragança não é um bom candidato a qualquer órgão de soberania. Nem sequer se inventarem um para ele.

É comum as discussões sobre política serem inconclusivas. Mas também é comum que cada parte tente apresentar uma razão minimamente coerente para rejeitar a pretensão da outra. É nisso, afinal, que assenta a política. Daí a minha surpresa inicial*. Mas, neste caso, o defeito é compreensível. Porque monarquia não é, nem jamais foi, uma opção política. Nunca teve de se justificar racionalmente perante formas alternativas de governo.

Quando se juntam pessoas alguma acaba por ser o chefe. E se continuam juntas vai querer que um dos seus filhos herde o poder. Com tribos nómadas era difícil controlar muita gente e as dinastias tendiam a ser de pouca duração. Mas, com a agricultura, e o sedentarismo possibilitou que famílias se alapassem ao poder durante muitas gerações antes que outras lho conseguissem arrancar. Eis a monarquia. Mais tomada de poder que forma de governo, nunca foi debatida nem escolhida como opção política. Simplesmente coagulou nas sociedades antigas e foi ficando, como a gordura na canja fria. E em alguns países permanece. Onde não é ditadura é só tradição, atracção turística ou simples espectáculo. O que também explica a sua afinidade por isto de santos e milagres.

* Que, admito, não foi grande, considerando os exemplares que passam por aqui.

1- “D. Nuno de Santa Maria - O Santo”, ACD Editores, 2005, via O Santo Contestável, por Carlos Fiolhais no De Rerum Natura.
2- Carlos Esperança, 23-3-09, O Sr. Duarte Pio e o opúsculo.

sexta-feira, março 27, 2009

Justiça ou caridade.

Um acto justo não é caridoso. Cumprir um contrato, saldar uma dívida ou repartir o que também pertence ao outro é apenas respeitar obrigações. A caridade, para o ser, tem de ir além do que é legítimo exigir-se. E por isso é de louvar.

O problema é decidir se uma coisa é caridade ou justiça, porque isso afecta a forma como a encaramos. E esta decisão correlaciona-se com a orientação política e religiosa. Não individualmente, porque são aspectos complexos, diferentes em cada pessoa e determinados por muitos factores. Mas em média. Em média, as políticas de direita são mais favorecidas por pessoas religiosas e dão mais ênfase à caridade. E, em média, a esquerda afasta-se da religião e tende a ver os mesmos problemas como injustiças a corrigir. Isto pode ser por causa da crença num deus.

Se tudo é guiado por um ser benévolo e omnipotente, e se as injustiças que houver neste mundo são compensadas no próximo, a justiça não é connosco. Deus é justo. A nós cabe ser caridosos. Ir além do dever e dar-nos aos outros. Como fez a Madre Teresa. Venerada por muitos e criticada por alguns, todos concordam que se dedicou mais do que seria justo exigir-lhe. Mas o seu objectivo era amar os que sofriam e dar uma morte digna aos moribundos. Não investiu os donativos em campanhas de vacinação, em planeamento familiar ou em saneamento básico porque, para ela, aquele sofrimento não eram uma injustiça a corrigir. Era uma sina daquela gente, que merecia pena e amor dos seus semelhantes porque justiça teriam de outra fonte.

Mas sem deuses é diferente. As doenças são infecções, a miséria uma má distribuição de recursos e o sofrimento um mal a remediar. Com justiça, não com caridade. Jeremy Bentham, um dos pais do utilitarismo, no início do século XIX lutou por reformas no sistema legal britânico, defendeu o sufrágio universal, a abolição da escravatura e a liberdade de expressão. Foi um dos responsáveis pela ideia do estado assegurar serviços de saúde e educação e apoiar os mais necessitados da forma que hoje tomamos por garantida.

Bentham, Mill (pai e filho) e outros que os seguiram tiveram um impacto enorme na vida de muitos milhões de pessoas nos países de cultura ocidental. Não por lhes segurarem a mão enquanto morriam mas por corrigirem problemas fundamentais que eram fonte de tanta miséria. Foi por causa destas pessoas que a Madre Teresa foi “de Calcutá” e não “de Londres” ou “de Lisboa”. E nenhum fez mais que a sua obrigação, aquela responsabilidade básica de perceber e combater a injustiça.

Não quero dizer que a caridade é má. Apenas que não resolve os problemas. Há hospitais com voluntários, normalmente senhoras, que dão o seu tempo e trabalho para ajudar quem precisa. Isso é de louvar. Mas estávamos mal se os nossos hospitais dependessem desta caridade em vez do profissionalismo de quem lá trabalha. Com remunerações justas, justamente cobradas a todos nós para o bem de quem precisa. A caridade não é uma solução. Precisar dela é que é sintoma de um problema a resolver. Além disso engana. Com um pequeno gesto que, ali e então, nos põe além do nosso dever, facilmente disfarça o quanto ficámos aquém no resto.

Por isso precisamos de ser justos em vez de caridosos. Exigir uma melhor distribuição de riqueza, que não deixe pessoas ao relento ou a passar fome. Mesmo que nos custe mais num mês de impostos que num ano de esmolas. Questionar as políticas de imigração que tratam países como propriedade privada, negando a outros o direito de viver e trabalhar connosco só porque nasceram no sítio errado. Impedir que os nossos impostos arruinem economias mais frágeis subsidiando produtos aqui que depois são vendidos onde não há dinheiro para subsídios. Pôr de parte a ideia que o apoio do estado é um subsidio ao coitadismo e assumi-lo como uma forma justa de partilhar o que é de todos. Enfrentar as tradições bárbaras, e as crenças disparatadas, que atentam contra os direitos das pessoas. Isto, e muito mais.

A solução não é a caridade escrava de uns poucos, de olho na beatificação. Nem a caridade esporádica de muitos como descargo de consciência. É a atenção constante de todos ao que é justo. E não é mais que a nossa obrigação. Se o fizermos, não será preciso caridade, que é boa mas é tanto melhor quanto menos necessária. E enquanto não o fizermos a caridade é dar aspirina a quem amputámos as pernas.

quinta-feira, março 26, 2009

Financiar a criatividade, parte 1: pagar o que prezamos.

O Desidério escreveu recentemente sobre «o problema do financiamento da cultura, da ciência, das artes, da filosofia e da informação»(1). Deste primeiro texto, algo confuso, fica a ideia que não se pode financiar a criatividade com publicidade porque «introduz [...] a necessidade de publicar palermices», que o financiamento público é «tirar dinheiro às pessoas contra a sua vontade, através de impostos, para financiar o que elas na verdade se recusam a financiar voluntariamente» e que o «problema de fundo é uma injustiça fundamental da humanidade. Ao mesmo tempo que muitíssimas pessoas ganham, e muito, com avanços da ciência e com informação de qualidade, só uma pequeníssima minoria está realmente disposta a pagar essas coisas e a pagá-las caras.» A solução, propôs mais tarde, é mudarmos a mentalidade “aristocrática” de quem tem nojo de pagar e, «sempre que possível, financiar os criadores de informação, software, ciência, filosofia, poesia ou artes cujos trabalhos prezamos»(2).

Um problema de “financiar os criadores” é que queremos financiar a criação e não o criador. Ou seja, investir na altura da criação, e não depois do trabalho feito, para que quem tenha uma boa ideia a possa desenvolver. E este problema não é trivial. Por exemplo, em 1965, Ted Nelson criou o termo “hipertexto”. Em 1968, com Andries Van Dam, implementou um editor de hipertexto. No final desse ano, Douglas Engelbart demonstrou um sistema de colaboração com uma rede de computadores e hipertexto para organizar informação. Em 1980 Tim Berners-Lee começou a implementar um sistema de partilha de documentos no CERN usando hipertexto e, em 1991 publicou a primeira especificação do HTML como parte do projecto World Wide Web (W3). Eventualmente, para encurtar a história, deu isto que vocês estão a ver.

Quando o processo de criação é mais exigente, nem em retrospectiva se encontra “o” acto ou agente criador. E é impossível fazê-lo na altura em que se precisa investir. Por isso, se estes inovadores tivessem dependido de pessoas como o Desidério para lhes pagar os projectos que “prezassem” em vez do apoio financeiro de institutos de investigação ou universidades, hoje estávamos a discutir isto por carta. E mesmo quando podemos apontar o criador e o acto da criação temos também de atribuir um valor. Em 1905, Einstein publicou três artigos. Uma descrição matemática da luz como partículas; uma formulação do princípio que as leis da física devem ser independentes do referencial; e a análise estatística da trajectória de uma partícula microscópica sujeita a colisões aleatórias. Só depois de publicados é que alguns peritos reconheceram o seu valor. E nem esses imaginavam a importância destas ideias para a ciência e tecnologia do final do século XX.

O método que o Desidério propõe funciona para algumas coisas e já não é novo. Sempre funcionou com professores e explicadores, estilistas, artesãos, sapateiros, cozinheiros, electricistas, ilustradores, jornalistas e tantos outros que criam algo que o cliente sabe, antes do trabalho ser feito, que vale a pena comprar. E, com o colapso do copyright, já há músicos e escritores a fazer o mesmo. Vendem o seu trabalho a quem preza o que eles fazem. Mas isto só funciona se, antes do trabalho ser feito, o comprador perceber que o resultado vai ter valor.

Como ninguém quer comprar sem saber se vale a pena, e como não se pode financiar a criatividade com promessas vagas de “se gostarmos, logo te damos qualquer coisinha”, o método do Desidério serve para pouco. Não serve para financiar nada cujo valor só seja evidente depois de ter sido criado. Que é o caso, quase por definição, daquilo que é inovador. E não serve para nada que exija vários passos de criatividade até dar frutos, excluindo por isso a maior parte da tecnologia. Ou aquilo que só tem aplicação prática depois de virem outras inovações, que é a regra geral nas descobertas científicas. Em suma, o método do Desidério só serve onde já é usado. Para aquilo que as pessoas conhecem, sabem que gostam e querem comprar. E é estranho que o Desidério rejeite a publicidade como forma de financiamento «porque a verdade desagradável acerca da humanidade é que as palermices são muito mais populares do que tudo o resto»(1) mas proponha reduzir o financiamento a pagarmos aos «criadores [...] cujos trabalhos prezamos»

A criatividade no entretenimento ou em coisas que já sabemos com o que contar, como roupa e comida, pode ser financiada como o Desidério propõe. Ou pela publicidade, que vai dar ao mesmo. Claro que haverá muita “palermice”, mas ainda bem porque a “palermice” é tão subjectiva que só havendo muita, e diversa, é que chega para todos os gostos. O resto, o que for inovador, inesperado, trabalhoso, útil a todos ou que só compense a longo prazo, tem de ter financiamento público. Mas justificar isto fica para a próxima.

1- Desidério Murcho, 2-3-09, Comprar e vender ideias.
2- Desidério Murcho, 11-3-09, Mentalidade, cultura e dinheiro.
3- Wikipedia, Hypertext e HTML

quarta-feira, março 25, 2009

Ah, ele é isso?

Acerca do Papa e dos preservativos, o Bernardo Motta escreveu que o «Papa não estava a mentir, nem a dizer uma novidade por aí além. Estava a dizer a mais pura das verdades. Estava alinhado com os melhores estudos sobre o tema, com aqueles estudos feitos sem objectivos ideológicos, com aqueles estudos que não são financiados por fabricantes de preservativos.»(1) Vejamos isto por partes.

“Os melhores estudos sobre o tema” são os artigos de Edward C. Green, uma classificação questionável quando consideramos o artigo que o Bernardo recomenda especialmente. «At most Ugandan antenatal clinic sites, seroprevalence among 15–19-year-old pregnant women, somewhat of a rough proxy for HIV incidence, tended to decrease significantly from the early 1990s»(2). A incidência de HIV é estimada pela percentagem de mulheres grávidas seropositivas testadas durante os cuidados pré-natais. Não deve ser preciso um boneco para explicar que a correlação entre esta medida e o uso do preservativo pode ser pouco conclusiva. Além disso, os preservativos são raros em África. No artigo citado, Green compara dados até 2001, aproximadamente. Nessa altura a média de preservativos distribuídos na África sub-Sahariana era inferior a cinco por ano para cada homem sexualmente activo. Um preservativo a cada três meses não faz grande efeito. Mesmo hoje em dia, o Uganda recebe apenas quarto do que seria adequado (3).

Depois, são “estudos feitos sem objectivos ideológicos”. Edward Green é o director do AIDS Research Prevention Project (ARPP), que apoia abordagens para a prevenção da SIDA que sejam «comportamentais, não de natureza primariamente tecnológica ou biomédica» e que «reconheçam o papel dos valores da comunidade, incluindo crenças espirituais e religiosas»(4). Os objectivos do projecto são declaradamente opostos aos preservativos. E “não são financiados por fabricantes de preservativos”. É verdade. O ARPP é financiado pela Fundação Templeton, que apoia «a ciência por investir filantropicamente nas “grandes questões” – como a natureza do universo e a natureza do amor, do perdão e da criatividade»(5) e atribui o prémio Templeton pela «afirmação da dimensão espiritual da vida»(6), um dos mais famosos (e valiosos) prémios à contaminação da ciência com preconceitos religiosos.

Penso que o Bernardo se precipitou na defesa do seu Papa e não escreveu isto com consciência dos factos. Mas o episódio demonstra a futilidade, e o perigo, de casar ciência e religião. A fé priva-nos da imparcialidade que é indispensável à compreensão. E não é preciso ir longe para ver os extremos desta perspectiva.

O problema em África é complexo. Quando a epidemia de SIDA começou nos EUA a comunidade homossexual alterou o seu comportamento em poucos anos. Não por moralismos bacocos mas porque não queriam arriscar uma doença que mata em dez anos. Para um africano com uma esperança média de vida de quarenta anos o incentivo é muito menor. A economista Emily Oster estudou como estas decisões dependem de factores como a malária e a taxa de mortalidade no parto (7). As pessoas tentam evitar a SIDA reduzindo a sua actividade sexual apenas quando isso parece valer a pena. E, infelizmente, para muitos africanos o perigo de morrer de SIDA é eclipsado por outras preocupações.

Distribuir preservativos não impede que se eduque as pessoas e que alterem o seu comportamento sexual. Mas o mais importante é reduzir a taxa de transmissão do HIV. Por causa da frequência de outras doenças venéreas, que causam feridas nos órgãos sexuais, o contágio por relação desprotegida em África é três vezes mais provável que na Europa ou nos EUA. E este é o parâmetro mais importante da epidemia, que é muito sensível mesmo a pequenas variações na taxa de transmissão (8). E outro problema africano é a miséria. A pobreza, a falta de educação, a baixa produtividade, a instabilidade económica e política são muito difíceis de resolver se metade da população, na idade mais produtiva, está permanentemente grávida ou a amamentar.

Por isto incomoda-me a moralização abstrusa de quem, saudável, confortável e com longos anos pela frente, se pronuncia acerca da moralidade do preservativo em África. Não é a cura mágica para todos os males mas é importante para combater o HIV, as doenças venéreas que ajudam a espalhá-lo e a miséria onde este prolifera. Só mesmo de muito longe é que alguém pode subordinar estes problemas à sua visão poeto-tretológica de um amor ideal com 0% de látex.

Editado: poético-tretológica para poeto-tretológica. Obrigado ao Francisco Burnay pela dica.

1- Bernardo Motta, 23-3-09, Esquizofrenia anti-papal. Encontrei o post do Bernardo graças ao comentário do Pedro Silva n’A instrumentalização do futebol.
2- Edward C. Green, Daniel T. Halperin , Vinand Nantulya and Janice A. Hogle, Uganda's HIV Prevention Success: The Role of Sexual Behavior Change and the National Response, AIDS and Behavior, Volume 10, Number 4 / July, 2006
3- Avert.org
4- ARPP, Research
5- Templeton Foundation, FAQ.
6- Templeton Prize, About the Prize.
7- Emily Oster, Ted Talks
8- Emily Oster, Sexually Transmitted Infections, Sexual Behavior, and the HIV/AIDS Epidemic. The Quarterly Journal of Economics, May 2005. Pdf disponível aqui.

terça-feira, março 24, 2009

Cultura

é o que partilhamos com os outros, e que criamos com aquilo que partilham connosco.

Este vídeo do Kutiman é um remix de vídeos no YouTube. Cortou, colou e montou pedaços de outros vídeos para fazer este e mais outros em Thru-You.


Via Lessig Blog.

Este foi recentemente retirado do YouTube por queixa da Warner Bros (1). Há mais do mesmo autor no Funny Or Die. O género, literal video version, parece estar a tornar-se popular.


Take on Me: Literal Video Version

Exemplos como estes ilustram duas coisas. Separar o que um cria daquilo que outros criaram, em terrenos vedados de propriedade intelectual, é imbecil. E cobrar o acesso a estes terrenos imaginários alegando distribuir-se cultura é burla.

1- International Herald Tribune, 23-3-09,Videos vanish in clash between YouTube and Warner Music, via email. Obrigado pelo link.

segunda-feira, março 23, 2009

A propósito

da sexualidade e da "Lei Natural", aqui fica uma chamada de atenção a quem projecta na natureza o que julga que esta devia ser em vez de procurar nela o que é.


Via Pharyngula.

E a propósito de religião, um vídeo enviado por um comentador anónimo a quem agradeço.

A instrumentalização do futebol.

O grande problema da humanidade é divergir do caminho da sacralização, desumanizando o que é Humano e afastando-se do Sagrado. E nada exemplifica melhor isto que o uso de caneleiras no futebol. A Lei Natural e a Sagrada Providência dão ao jogador, enquanto Futebolista, formas de proteger a canela em plena concordância com o seu Ser nos modos da relação consigo e com o outro. A meia de algodão é perfeitamente adequada para proteger o jogador dos pitons do adversário, e quem joga sem caneleiras joga com mais prudência. Ao jogar conforme à Lei da natureza o jogador toma parte do jogo numa plena-participação-de-si que lhe é vedada pelo uso da caneleira.

É preciso lembrar que a caneleira não protege o jogador contra todas as lesões. De facto, num estudo feito aos jogadores de futebol lesionados em competições internacionais descobriu-se que a grande maioria usava caneleiras. Mas não quero aqui questionar o papel da caneleira ao nível meramente técnico. Quero sim apontar o erro de descurar a sua dimensão espiritual. Nisto, a teologia do futebol demonstra claramente uma diferença moral abissal entre a caneleira de plástico e a meia de algodão pela forma como a primeira instrumentaliza os membros da equipa adversária. Mesmo aqueles que também usam caneleiras.

Não posso aqui deixar de invocar Paul Ricoeur e a sua distinção magistral entre a “identidade” e a “ipsidade”. Aquilo que em mim me torna o mesmo que eu, no sentido espácio-temporal de ser idem-idêntico a mim mesmo, difere profundamente daquilo que me torna eu próprio no sentido de ser ipse-idêntico à minha pessoa humana. Da mesma maneira, podemos ver que apesar de meia e caneleira serem idem-idênticas na sua funcionalidade, se nos consignarmos a um plano meramente físico, o seu uso resulta de uma agência ipse-distinta tanto na sua intencionalidade como na relação do eu consigo, com o outro, e consigo enquanto outro. E esta tríade dinâmica de relações na pessoa Humana é fracturada pela caneleira, que impede assim o vou-ali-já-venho espiritual que está na base do nosso Ser.

Penso que, com esta exposição, qualquer leitor compreenderá a minha inteira concordância com o Santo Padre no que toca à condenação das caneleiras. O que importa é humanizar a vivência do futebol, enquanto seres materiais e espirituais que somos. É claro que não me compete falar em casos concretos, do futebol jogado por este ou por aquele jogador. Tenho todo o respeito pelo futebol de cada um e não seria cristão da minha parte querer impor aos outros o meu futebol. É por isso que falo do caso geral, não do futebol deste ou daquele mas do futebol de todos. É esse que se deve conformar aos sábios ensinamentos do Santo Padre que, apesar de não jogar futebol, é guiado pelo Espírito Santo e por São Pedro, ambos futebolistas exímios.

domingo, março 22, 2009

A ilusão da propriedade intelectual.

Há coisas que só podemos usar excluindo outros desse uso. Se alguém ficar com a minha máquina de calcular eu fico sem ela. Esse problema justifica leis de propriedade que regulem quem fica com o quê. Com objectos de uso pessoal, como carros e máquinas de calcular, é consensual a vantagem de atribuir cada coisa ao seu dono. No outro extremo, com rios ou monumentos históricos, o melhor é geri-los no interesse de todos. E pelo meio as opiniões dividem-se, se deve haver direitos de propriedade sobre estradas ou praias. Mesmo perante o problema de gerir o uso de bens como estes temos de ponderar os custos e benefícios de o permitir só a alguns.

E quando lidamos com algo imaterial o problema nem se põe. É absurdo aplicar às somas a mesma noção de propriedade que aplicamos à maquina de calcular. A máquina é minha; 2+2 não é de ninguém. Por isso o termo “propriedade intelectual” é enganador. Dá ideia que o intelecto tem dono, que ideias, conceitos, conhecimento ou imaginação são propriedade. Mas não é nada disso. A propriedade intelectual é um conjunto de concessões legais que resolvem outros problemas e só são propriedade no sentido de se poder vender ou comprar estas concessões.

A marca registada regula o uso da marca mas não a torna propriedade. Posso escrever “Coca-Cola” as vezes que quiser porque “Coca-Cola” não tem dono. Só não posso vender coisas com a marca Coca-Cola sem autorização porque senão nem o comprador podia confiar na marca nem o detentor da marca podia proteger a sua imagem no mercado. As patentes resolvem outro problema. Quem tem uma boa ideia tem um forte incentivo para ficar calado e explorá-la em segredo. Mas para fomentar a inovação é fundamental que as ideia estejam acessíveis. Para resolver esse problema a patente concede monopólios temporários de exploração em troca da divulgação da ideia. Em ambos os casos o produto do intelecto é de todos e não há razão para que ideias sejam propriedade.

O problema que motivou o copyright foi o risco de investir na impressão industrial de livros e pautas, que seria demasiado grande num mercado livre. Por isso concedeu-se monopólios sobre a distribuição de cada obra. Com o progresso tecnológico aumentaram os métodos de distribuição e foi-se expandindo o copyright. Apesar do problema original ter vindo a desaparecer, o copyright tem se tornado cada vez mais restritivo. E como não se exige registo da obra para conceder este monopólio e se agrupa o copyright com os direitos de autor, criou-se a ilusão que as restrições à distribuição seguem de um direito de propriedade inerente à criatividade intelectual. Mas isto é ilusão.

Em 1968 Dick Fosbury ganhou a medalha de ouro do salto em altura porque inventou uma nova forma de superar a fasquia. O Fosbury Flop (1) ainda é usado por muitos atletas nesta competição. Mas seria absurdo que Fosbury cobrasse “direitos de autor” sobre isto. Se imaginarmos aplicar direitos de propriedade às ideias vemos que o disparate é óbvio em quase todos os casos. No desporto, na matemática, na culinária, na moda, na física, na linguagem, na política, no ensino, etc. As excepções são aquelas para as quais há uma indústria de distribuição. Mas são excepções apenas porque o disparate é menos óbvio e não por deixar de ser disparate. A habituação às restrições impostas pelo copyright disfarça o absurdo da "propriedade intelectual".

Este problema conceptual é importante. A ilusão de direitos de propriedade sobre o intelecto dá uma defesa muito forte a esta indústria. Por muito que prejudique a sociedade, a arte e cada cidadão, se assumirmos que alguém pode ser dono de uma música temos de arcar com o custo de proteger essa propriedade. Mas se compreendermos que patentes, marcas registadas, direitos de distribuição e toda essa “propriedade intelectual” não passam de subsídios e mecanismos de regulação comercial vemos que é preciso adaptá-los às novas tecnologias considerando os seus custos e benefícios para todos nós. E, dessa perspectiva, coisas como patentes de software ou estender o copyright ao uso pessoal revelam-se como o mau negócio que são.

1- Wikipedia, Fosbury Flop

sábado, março 21, 2009

Instrumentalizar a sexualidade.

Segundo o Alfredo Dinis, o problema dos preservativos é instrumentalizar a sexualidade. Quando o Papa se pronunciou acerca dos preservativos estava a considerar um «esforço de transformação do estilo de vida das pessoas, de uma humanização da sexualidade e não de uma sua mera instrumentalização, como sucede cada vez mais.»(1)

Instrumento é tudo o que se usa para um fim. Nesse sentido, se coço a barriga instrumentalizo a mão, se quero um filho instrumentalizo o sexo e tudo o que faço instrumentaliza alguma coisa. Não deve ser isto que o Alfredo quer dizer. Como ele sugere que humanização e instrumentalização são mutuamente exclusivas, vou considerar que instrumentalizar é usar algo para um fim que não seja pessoal. Por exemplo, quando conto uma história aos meus filhos não instrumentalizo a minha voz porque isso faz parte da minha forma de ser pai. Mas quando dou aulas torno-me num instrumento de obrigações profissionais que não coincidem totalmente com a minha vida pessoal. Não sei se é esta distinção que o Alfredo quer fazer, entre os nossos fins pessoais e outros, mas com termos tão vagos foi o melhor que encontrei.

Se for assim, instrumentalizar o sexo é subordiná-lo a um fim alheio aos da pessoa. Como na pornografia, na prostituição, em muitos casamentos (por dinheiro, por arranjo dos pais ou outros interesses), nas telenovelas e na publicidade. O preservativo só pode instrumentalizar o sexo se o forçar a um fim que não seja o dos parceiros. Por exemplo, se um casal não usa o preservativo só porque o padre diz que é feio. Nesse caso o padre instrumentaliza o sexo do casal tal como o realizador instrumentaliza o acto sexual do actor. Mas o actor tem mais sorte. Quando chega ao fim de um dia de trabalho pode ter relações sexuais como entender. Só lhe instrumentalizam alguns actos sexuais, não a sua sexualidade.

É a religião que instrumentaliza a sexualidade. O Mats tem um post caricato sobre os benefícios da abstinência sexual onde enumera coisas como «Consciência tranquila perante Deus devido a ausência desse pecado»(2). Isto é um custo de ser religioso e não um benefício da abstinência, mas o ponto importante é que o Mats quer pôr as relações sexuais dos outros ao serviço dos seus preconceitos religiosos. Ou seja, quer instrumentalizar a sexualidade. A abstinência sexual dos padres é outro exemplo de instrumentalização da sexualidade. Não por se absterem do sexo, que é uma escolha pessoal legítima, mas porque o fazem de forma ostensiva tornando a sua abstinência uma marca pública de alegada autoridade moral. A sexualidade dos padres é um instrumento público, mais ainda que a sexualidade dos actores ou modelos publicitários. Estes instrumentalizam apenas alguns actos sexuais, não a sexualidade em si.

Em suma, usar preservativo instrumentaliza tanto como usar escova de dentes. Se serve os nossos fins pessoais então faz parte da nossa sexualidade; é um instrumento da sexualidade e não o contrário. O que instrumentaliza a sexualidade é pô-la ao serviço de fins alheios à nossa vivência pessoal. Os preceitos de uma religião, o ordenado, o estatuto do sacerdócio, a “pureza” e assim por diante. E se alguém instrumentalizar a sua sexualidade que o faça com preservativo. Tanto por decência como por prudência, que é pior a infecção que a instrumentalização.

1- Alfredo Dinis, 19-3-09, Novo tsunami sobre declarações do Papa. Também nos comentários ao post.
2- Mats, 5-12-08, Benefícios da Abstinência

sexta-feira, março 20, 2009

Treta da semana: a avaliação das escolas.

Recebi ontem um folheto do Ministério da Educação (ME) a anunciar a avaliação “externa” da escola dos meus filhos (1). Bem, recebi uma fotocopia do folheto. Não devia haver para todos. Na rubrica intitulada “Objectivos” não fica claro se vão avaliar o cumprimento dos objectivos ou se são os objectivos da avaliação. Mas, com os objectivos que apresentam, pouca diferença faz.

O primeiro é «Fomentar nas escolas uma interpelação sistemática sobre a qualidade das suas práticas e dos seus resultados». Admito que valha a pena interpelarem-se acerca disto. Mas a interpelação é um meio de atingir o objectivo: boas práticas e bons resultados. Não faz sentido que o meio seja o objectivo porque, assim, cumprem o objectivo ficando-se pelo interpelanço e sem contribuir nada para os bons resultados. E nem sequer a isso chegam. Pelo que descrevem, satisfaz-lhes o mero fomento à interpelação.

O segundo objectivo é «Articular os contributos da avaliação externa com a cultura e os dispositivos da auto-avaliação da escola.» Ou seja, querem que a avaliação sirva para alguma coisa. É um bom princípio mas preocupa-me que julguem necessário afirmá-lo explicitamente. E com tanto palavredo. Preocupa-me porque assim fico sem saber o que deduzir da ausência de objectivos como “não desperdiçar o dinheiro do contribuinte” ou “deixar-se de tretas e fazer alguma coisa de jeito”.

O terceiro objectivo é demasiado modesto. «Reforçar a capacidade das escolas para desenvolverem a sua autonomia». Percebo a autonomia como um objectivo. Não sei se é bom ou não, mas pelo menos é um objectivo que se sabe quando se atinge. Desenvolver a autonomia é um objectivo mais fraquito mas, pelo menos, sempre exige que a autonomia aumente. Por pouco que seja. Mas a capacidade para desenvolver autonomia não é um objectivo. É mais um subjectivo porque, quer se desenvolva quer fique na mesma, podem sempre dizer que a capacidade está lá. E o que se propõem fazer é apenas reforçar essa capacidade. Parece-me que basta não pegar fogo à escola para cumprir este “objectivo”.

Depois, «Concorrer para a regulação do funcionamento do sistema educativo». É genial. “Contribuir para” é útil, por ser vago, quando não se quer dizer nada de concreto. Mas vago é coisa de amadores. O perito em eduquês é mais exigente. Neste contexto, “concorrer para” consegue ser vago e ambíguo ao mesmo tempo. Além de o podemos interpretar de várias maneiras, nenhuma delas diz ao certo o que se propõem fazer. Querem competir com outros a ver se regulam o funcionamento? Partilham a regulação? Contribuem para que se regule? Mas que raio vão regular e como?

Finalmente, propõem «Contribuir para um melhor conhecimento das escolas e do serviço público de educação, fomentando a participação social na vida das escolas». Mais uma vez, o objectivo fica-se por contribuir e fomentar em vez de visar aquilo que querem fomentar ou para o qual vão contribuir. E ficamos sem saber se vão contribuir para um melhor conhecimento com o objectivo de fomentar a participação social se, pelo contrário, o objectivo é contribuir para o conhecimento e fomentar a participação é uma forma de o conseguir. Mas suspeito que a diferença seja pequena.

Penso que isto mostra bem o que se passa no ME. As ideias, em traços gerais, não são más. Avaliar as escolas é bom, mesmo que chamar-lhe “avaliação externa” quando é o ME a fazê-la não seja muito correcto*. Mas enrolam as coisas em tanta verborreia que nasce tudo mumificado. Isto era treta se fosse de borla. Com o dinheiro que gastam nestas coisas já merecia um termo mais forte.

* Errata, 22-3-09. Informou-me a Maria C. nos comentários que a avaliação é mesmo externa, feita por inspectores e avaliadores independentes do ME. Obrigado pela informação.

1- Avaliação Externa das Escolas 2008-2009, Ministério da Educação, IGE. Folheto em pdf

quinta-feira, março 19, 2009

Adenda ao post anterior.

O Alfredo Dinis disse algo parecido. «Não sei quantas pessoas se deram ao trabalho de ler a declaração do Papa. Ele não se referiu ao uso do preservativo de um ponto de vista ‘técnico’, nem sequer médico, mas sim de um ponto de vista ético e espiritual.»(1) Pena que o Papa não tenha sido tão claro como o Alfredo. Sabendo que nunca a religião e a ciência podem estar em conflito, o Papa devia ter esclarecido que se deve distribuir preservativos e encorajar as pessoas a usá-los do ponto de vista ‘técnico’ para que se controle a epidemia do ponto de vista médico. Mas como o preservativo é um problema do ponto de vista espiritual devem tirá-lo antes da missa.

Infelizmente, não foi isso que o Papa disse, e eu discordo do Papa e discordo da defesa do Alfredo. Mas, por si só, discordar não me incomoda, e reconheço-lhes tanto direito de dar a sua opinião como eu tenho de discordar dela. O que me perturba é não reconhecerem a diferença entre milhões de pessoas a morrer de SIDA e a opinião que eles têm acerca das práticas sexuais alheias. A primeira é uma tragédia inegável. Em contraste, a ideia que sexo com preservativo é espiritualmente pior do que sem preservativo, e que isso faz alguma diferença, não passa de uma crença pessoal. Dêem-lhe o crédito que quiserem mas não a ponham à frente da vida dos outros.

1- Alfredo Dinis, 19-3-09, Novo tsunami sobre declarações do Papa

quarta-feira, março 18, 2009

Deve estar a interpretar...

Segundo a ciência, reduzir a taxa de transmissão ajuda a controlar uma epidemia; o uso de preservativos reduz a taxa de transmissão do HIV; o uso de preservativos tem sido fundamental para controlar a epidemia de HIV; e apelar à abstinência para controlar doenças sexualmente transmitidas é tão eficaz como recomendar que não se espirre para controlar uma epidemia de gripe.

Segundo o Papa, os preservativos «não são a resposta na luta contra a sida. Na verdade, eles agravam o problema»(1). Muita gente já o criticou por esta afirmação porque se esquecem que a ciência e a religião não se contradizem. Operam em domínios independentes que nunca se intersectam. É que o homem tem mesmo razão. Não é por acaso que o chamam “o infalível”. Só que o problema que os preservativos agravam é de um domínio diferente deste de controlar epidemias e salvar vidas. É um problema do domínio da Fé.

Deus manda nisto tudo. O deus católico, claro, que os outros não contam. Por isso se alguém tem SIDA é castigo e é bem feita. Afinal, tem de haver um sentido nisto. Mas se o pessoal descobre que um pedacito de latex os safa do castigo divino com que cara fica o Senhor? Já para não falar da chatice que é se começam a comparar a eficácia do preservativo com a das avé-marias. E se bem que vinte milhões de pessoas a morrer de SIDA dê menos vinte milhões de potenciais católicos, em compensação sobram umas dezenas de milhões de órfãos que ficam assim, graças a Deus, dependentes da caridade. E quanto mais novos melhor. Pode parecer cruel, mas morrer todos morremos. Que seja em vinte, quarenta ou oitenta anos, pouca diferença faz. A Igreja é que fica. E uma coisa destas não dura dois mil anos se se preocupar mais com as pessoas do que com os seus dogmas.

Por isso é verdade que os preservativos agravam o problema. Se temos uma forma prática e fiável de evitar a infecção por um vírus podemos pensar que a SIDA não tem sentido nem propósito. E se a moda da contracepção pega lá se vai muita da miséria nesses países mais pobres. No domínio onde aplicamos a ciência, que é compreender o que se passa para melhorar as nossas condições de vida, isto parece uma solução. Mas no domínio da Fé é um problema porque pessoas menos miseráveis e mais seguras são mais independentes. Procuram os seus propósitos em vez de ficar a ouvir o padre a contar-lhes que a sua miséria faz parte de um “cunning plan” divino.

Quem critica o Papa confunde o domínio da Fé com o domínio da ciência. Mas a religião apenas interpreta o sentido do universo e, por isso, nunca pode contradizer a ciência. As palavras do Papa são de fé e de sentido. Segundo o sentido do universo não se pode usar preservativos nem para salvar milhões de vidas. Pode parecer estranho mas sabemos que é assim porque quem tem fé diz que sim. E ter fé é confiar. E podemos confiar no Papa porque sempre que ele diz uma coisa destas é no interesse de alguém.

1- Correio da Manhã, 18-3-09, Polémica: Visita do Papa aos Camarões e a Angola: “Preservativos agravam a sida”

terça-feira, março 17, 2009

Interpretando.

É uma ideia recorrente que a religião e a ciência lidam com domínios diferentes e, por isso, não interferem. Como comentou recentemente o Alfredo Dinis, «A religião não pretende descrever nem explicar a realidade mas sim interpretá-la. Por isso mesmo os critérios que aplicas em ciência não se aplicam todos nem do mesmo modo em religião.»(1) Mas esta ideia está errada.

“Interpretar” quer dizer «fornecer o significado de algo; explicar, elucidar [...] compreender de uma certa forma»(2). Explicar, elucidar e compreender são precisamente a função da ciência. O problema, se houver, estará apenas em “fornecer o significado de algo”. Mas isso a ciência também faz quando encontra coisas que tenham significado. Hieróglifos num túmulo, traços cuneiformes numa placa de argila ou a orientação de megalitos, por exemplo. E estes, historiadores, arqueólogos e linguistas interpretam-nos para nos fornecer os seus significados. Com critérios científicos. Não foi a fé que traduziu a Pedra de Roseta nem o espirito santo que decifrou a escrita Linear B de Micenas. Foi a ciência. O processo metódico e rigoroso de formular e testar hipóteses.

Mas em religião “significado” não quer dizer significado, como o das coisas que o sabemos ter: palavras, sinais, rituais e gestos. Refere-se a algo que, por ser mais vago, aparenta ser mais profundo. O sentido da vida. O significado do universo. O propósito e fim último de tudo. No fundo, astrologia.

Os astrólogos também vêem esse vago “significado” em todo o lado. Na posição dos planetas. Nas constelações. Antigamente, nas entranhas dos animais. Agora, mais higiénico, nas cartas que baralham e voltam a dar. Mas é absurdo dizer que a astrologia e a ciência são domínios complementares que não se contradizem. A ciência explica o que são as estrelas e os planetas, mostra que as constelações e as alegadas influências planetárias são projecções da nossa imaginação e, com isso, revela que os “significados” que os astrólogos “encontram” são mera fantasia.

Vão-me acusar de confundir astrologia com religião, mas não pretendo aqui destrinçar superstições. Quero apenas apontar o erro neste argumento dos domínios disjuntos. A ciência também interpreta o que tem significado. Sejam artefactos de civilizações antigas sejam canções de baleia ou gritos de macaco. E se um dia recebermos uma mensagem de extraterrestres inteligentes será a ciência, e não as igrejas, que vai encontrar o seu significado.

É a ciência que nos diz quando uma coisa significa algo ou quando é só o que é sem significar mais nada, e é este o paralelo entre religião e astrologia. Em ambos os casos é legítimo da ciência dizer que é disparate procurar sentido naquilo que não o tem. Seja a posição relativa de estrelas e planetas, seja um desastre natural, a origem do universo ou a evolução do Homo sapiens. E procurar o significado de algo não justifica rejeitar os critérios da ciência, porque são esses critérios que nos protegem do auto-engano. É esse o erro dos astrólogos que, por não testarem devidamente as suas hipóteses, acabam por ver o que querem ver em vez de verem o que lá está.

E é esse o erro dos religiosos que consideram que a (sua) religião serve para interpretar o universo. Não é o universo que interpretam mas sim uma imagem distorcida deles próprios.

1- Comentário em Porque sim e porque não.
2- Wikcionário, interpretar.

segunda-feira, março 16, 2009

Evolução: conceitos, modelos, hipóteses e factos.

A evolução é a variação, ao longo do tempo, da distribuição de características herdadas numa população. Os criacionistas dizem que isto não é falsificável e não pode ser testado. Claro que não. Também não se pode testar a densidade nem o conjunto dos números naturais. Porque são conceitos. Não são proposições.

Baseando-se neste conceito, Darwin propôs um modelo de um mecanismo para a evolução. Numa população de organismos que se reproduzem e competem pelo acesso a recursos limitados, como comida, espaço e parceiros sexuais, enquanto houver diversidade de características aquelas que forem mais favoráveis à reprodução irão tornar-se mais frequentes com o passar das gerações. Os criacionistas dizem que isto também não é falsificável. Em rigor, não é. Um modelo teórico como este é apenas uma construção conceptual abstracta. Como a equação que modela a queda de um corpo no vácuo. Por si só, isto não é verdadeiro nem falso. É só um modelo.

O que pode ser verdadeiro ou falso, e que deve ser possível testar, é a hipótese de um certo modelo corresponder a um certo aspecto da realidade. É verdadeira a hipótese que a equação da queda no vácuo é um bom modelo de uma pedra a cair na Lua. Mas é falsa a hipótese que esta equação modela bem a queda de um pára-quedista aqui na Terra. Com o modelo de Darwin, da evolução por selecção natural, a hipótese de adequação à realidade é verdadeira no caso da origem das baleias mas é falsa se aplicarmos esse modelo aos ferros de engomar.

Uma teoria científica é um conjunto consistente de conceitos, modelos e das suas respectivas hipóteses testáveis. Numa teoria científica estabelecida, como a mecânica quântica, a tectónica de placas ou a teoria da evolução, muitas hipóteses são consideradas factos. Ou seja, são hipóteses tão solidamente fundamentadas que não se considera proveitoso questioná-las a menos que algo surja que as ponha em causa. São factos que o electrão é onda e partícula, que os continentes se movem e que a selecção natural tem influência na evolução nos seres vivos. Já não vale a pena financiar mais testes para ver se estes modelos correspondem bem a estes aspectos da realidade.

O criacionismo moderno só tem parte disto. Tem conceitos, como o pecado e o plano divino, e tem modelos, como o relato da criação no Génesis. Mas as hipóteses que deviam ligar cada modelo a algum aspecto da realidade estão tão diluídas em milagres e desculpas que não servem para nada. Resta ao criacionista baralhar tudo para tentar disfarçar essa falha. O Mats dá um exemplo:

«Qual das teorias da evolução tu estás a falar? Naquela que ainda acredita na desacreditada árvore da vida de Darwin, ou noutras? Ou será na que acredita na hipótese cursorial? ou será na arboreal?»(1)

A teoria da evolução é o conjunto destes modelos e das hipóteses testáveis, muitas delas bem testadas, acerca de como estes modelos correspondem à realidade. A árvore da vida de Darwin, representando a origem das espécies pela divergência de populações, é um bom modelo para espécies animais. Com bactérias funciona mal porque, entre estas, há muita troca horizontal de genes. Mas isto não é problema porque as hipóteses que especificam a que parte da realidade corresponde cada modelo também fazem parte da teoria. E não é problema que muitas hipóteses estejam a ser activamente investigadas porque são hipóteses testáveis. Ou seja, mais cedo ou mais tarde teremos uma boa ideia de quais são verdadeiras e quais são falsas.

1- Comentário em Miscelânea criacionista: Dissonância cognitiva.

domingo, março 15, 2009

Legal, 5.

Em Janeiro escrevi sobre o projecto-lei para limitar o sal no pão (1). Pareceu-me boa ideia, e ainda julgo sensato regular o comércio do pão. Muitos assumem que o pão é um alimento saudável, por isso o rótulo não basta. É preciso garantir que não se vende como pão algo que faça mal. Infelizmente, sobrestimei a sensatez dos legisladores. Julguei que iam regular a venda de produtos rotulados como pão, exigindo que algo com demasiado sal fosse vendido como outra coisa. Salgados, tapa-veias, o que lhe quisessem chamar, desde que não se confundisse com um alimento que a maioria supõe inofensivo. Mas afinal não é isso.

A legislação proposta definirá “pão” como «alimento elaborado com farinha, geralmente de trigo ou outros cereais, água e sal, formando uma massa com uma consistência elástica que permite dar-lhe várias formas.» Isto cobre desde os aperitivos à massa das pizzas. E depois diz simplesmente que «O teor máximo permitido para o conteúdo de sal no pão, após confeccionado, é de 1,35 gramas por 100 gramas de pão»(2). Em vez de dizer para não vender como pão algo que seja demasiado salgado, diz, essencialmente, que é proibido cozer farinha misturada com mais que 1,35% de sal, seja para o que for. Espero que isto ainda leve uma volta antes de ser decreto-lei, porque assim está ridículo.

Ridícula é também a figura da censura chinesa por causa do cavalo da erva da lama. O nome deste animal fictício é inofensivo por escrito mas pronuncia-se como “vai f***** a tua mãe”. É um dos Dez Animais Lendários de Baidu (3). Agora há por toda a Internet chinesa documentários, músicas e textos sobre a vida deste animal e a sua luta contra os caranguejos de rio, cujo nome soa a “harmonia”. É pela harmonia social que o presidente chinês Hu Jintao justifica a censura, e “harmonizar” passou a ser sinónimo de censurar (4).

Como as ideias podem ser transmitidas de infinitas maneiras até um cavalo imaginário serve para gozar com o governo. O mesmo se passa com a informação digital. Uma música ou filme podem ser descritos de infinitas maneiras, e se podermos trocar quantidades ilimitadas de informação podemos enviar qualquer mensagem codificada de qualquer maneira. Não há forma de filtrar uns tipos de significado, seja a fazer troça do governo seja a descrever um som. Por isso temos de escolher se queremos Internet ou se queremos censura e copyright.

E para ilustrar como o copyright está cada vez mais próximo da censura temos o Fair Copyright in Research Works Act (5), recentemente proposto nos EUA. Tem sido prática nos contratos de financiamento com os National Institutes of Health (NIH) reservar o direito não exclusivo de publicar os resultados da investigação financiada pelo estado. Desta forma aquilo que o contribuinte paga fica acessível gratuitamente. Isto não priva o investigador dos seus direitos mas chateia as editoras porque já não podem exigir direitos exclusivos de publicação. Ou seja, não podem impedir que as pessoas obtenham esses artigos de graça. Como os NIH são o financiador principal da investigação em bioquímica e medicina nos EUA, as editoras querem acabar com isto. Daí o Fair Copyright in Research Works Act, para proibir este tipo de contractos. Se for aprovado, o contribuinte pagará a investigação e depois terá de pagar ao editor para ver o resultado. Um pouco como as normas técnicas*.

Era bom que a Fundação para a Ciência e Tecnologia fizesse o mesmo por cá. O propósito do copyright devia ser financiar a criatividade e não enriquecer editoras. Não é justo que se escreva uma dissertação de doutoramento ou artigos de investigação às custas do contribuinte e depois se invoque direitos exclusivos para obrigar quem já pagou pelo trabalho a pagar novamente para o ler.

* Têm valor de documento legal, são elaboradas por voluntários ou a custas do estado mas o copyright fica do IPQ que proíbe a sua reprodução. E custam caro como o caraças. Acho que dá um post para quando tiver tempo...

Editado: Tinha escrito ISQ em vez de IPQ. Obrigado ao Bruce por topar a gralha.

1- A liberdade aos saltos.
2- Assembleia da República, DAR II série A Nº.46/X/4 2008.12.19, pag 15
3- Hoax dictionary entries about legendary obscene beasts
4- International Herald Tribune, 12-3-09, The grass-mud horse: A dirty pun tweaks China's online censors. Obrigado a quem me enviou o email.
5- Open Access News, 4-2-09, The Conyers bill is back. Ver também o artigo do Larry Lessig

sábado, março 14, 2009

Treta da Semana: Filtrar a Internet.

O abuso sexual de crianças é visceralmente repugnante. Por isso não admira que tenha a atenção da imprensa e televisão sempre que algum caso é descoberto. Nada vende mais anúncios do que avisar “imagens eventualmente chocantes”. Mas é um problema tramado. Por um lado porque é parte de um vasto padrão de maus tratos a crianças. Anualmente morrem mil e quinhentas crianças nos EUA*, e há quase um milhão de condenações, por este tipo de crime (1). O abuso sexual perfaz menos de 9% do total (2), uma percentagem significativa mas longe de ser o único problema. Por outro lado porque é um crime privado, no seio da família. Em 90% dos casos de abuso sexual o agressor é um familiar próximo da vítima. Em 80% dos casos é um dos progenitores.

No fundo, para proteger crianças dos maus tratos é preciso protegê-las dos pais. O que é politicamente difícil quer pela dificuldade de intervir na família quer por ser preciso prevenir os maus tratos. A prevenção não serve aos políticos, que não conseguem ganhar pontos com o mal que se evita. Por isso preferem combater vistosamente um mal mais à mão, mesmo que seja contraproducente.

Daí a preocupação pública com a pornografia infantil. Dos anos 70 para cá passou a ser crime enviar, ter ou até querer ver qualquer imagem que pareça uma criança nua. Concordo com o princípio moral de não publicar fotos de crianças nuas. O problema é traduzir o princípio moral em lei. No Reino Unido é crime ter “pseudo-fotografias” indecentes de crianças, definidas como qualquer coisa que pareça uma fotografia. Por exemplo, é crime de abuso sexual de menores, e registado como tal, ter uma imagem do rosto de um menor colada à foto de um adulto nu (3). Nos EUA este crime abrange qualquer representação visual de menores envolvidos em relações sexuais, incluindo «desenho, caricatura, escultura ou pintura»(4).

Isto não protege as crianças e até tem o efeito contrário por dirigir a polícia para alvos mais fáceis mas pouco relevantes. A correlação entre procurar pornografia infantil e molestar crianças é muito debatida, mas cerca de 40% dos condenados por possuir pornografia infantil são também acusados de outros abusos (5). O quer dizer que a maioria dos pedófilos que a polícia prende, os outros 60%, apenas saca fotos da net. É insensato desperdiçar com estas pessoas recursos policiais necessários para combater os maus tratos que tantas crianças sofrem. Além de causar maus tratos às crianças das famílias vitimadas por investigações feitas com mais zelo do que rigor (6).

Agora quer-se aumentar o investimento neste sucedâneo de combate aos maus tratos filtrando a Internet para “proteger as crianças”. Como se eliminar certos ficheiros .jpg fizesse desaparecer os monstros que violam os próprios filhos. Na WikiLeaks há um relato de um “profissional” da pornografia infantil. É perturbador em alguns detalhes mas dá uma ideia do que se passa e da futilidade de investir tanto no combate a este negócio (7).

Segundo o relato, a maior parte da pornografia infantil vem de revistas antigas ou de fotografias de nus tiradas com o consentimento dos pais e das crianças. Não é decente mas fica muito aquém da violação de menores. As imagens de violações e violência são fornecidas por tarados que fazem isto aos próprios filhos e distribuem o material de graça. O verdadeiro crime de maltratar crianças é insensível à censura ou ao desmantelamento do negócio. Além disso, os servidores de onde distribuem este material são pagos com cartões de crédito roubados, todo o material é encriptado e os endereços só são usados por proxies que nem registam as ligações que medeiam entre os servidores e quem os usa. E tudo isto espalhado por vários países. É praticamente impossível impedir este negócio.

A pornografia infantil, transferida já por uma rede obscura, não se consegue filtrar. A ideia de filtrar a Internet por causa da pornografia infantil só é apelativa porque filtrar a Internet serve outros interesses políticos e comerciais. Na Austrália, por exemplo, um plano que começou por ser para “proteger as crianças” passou a ser para filtrar “material ofensivo e ilegal”(8). Leia-se músicas e dizer mal dos políticos.

Mas o que mais me preocupa nisto nem é o absurdo das leis que proíbem desenhos, o perigo de prender e registar como pedófilos pessoas inocentes ou os abusos inevitáveis de qualquer sistema de “filtragem”. O pior é que este fogo de vista político rouba recursos preciosos que devíamos usar com eficácia para proteger as crianças.

* É muito mais fácil encontrar estatísticas para os EUA...
1- Child Help, National Child Abuse Statistics
2- Jim Hopper, Child Abuse, Official Statistics: United States. Segundo o relatório de 2008, referente a 2006.
3- Cyber-rights and Cyber-liberties, United Kingdom Section of Regulation of Child Pornography on the Internet.
4- Cornell, US Code Collection, § 1466A. Obscene visual representations of the sexual abuse of children.
5- Sex Crime Defense Attorneys of Santa Ana
6- Ver, por exemplo, a Operation Ore, e vários casos na referência 3.
7- Wikileaks, My life in child porn. Via Schneier on Security
8- Zeropaid, Government to "examine how technology can assist in filtering internationally-hosted content."

sexta-feira, março 13, 2009

Miscelânea criacionista: Dissonância cognitiva.

Em Junho de 2007 escrevi sobre a evolução das beta-lactamases, enzimas que evoluíram recentemente em bactérias tornando-as resistentes à penicilina. Fazem algo de novo nessas bactérias, que é degradar a penicilina e depois libertar os fragmentos para continuar o processo, protegendo-as deste antibiótico. Com isto quis refutar duas alegações criacionistas. «É falso que as mutações só façam perder capacidades. É falso que as mutações não possam criar novos genes.»(1)

Há uns dias o Jónatas Machado descreveu assim as minhas afirmações: «o Ludwig Krippahl defendeu que a síntese de betalactamase, uma enzima que ataca a penicilina destruindo o anel de beta-lactam, é uma evidência da evolução de partículas para pessoas.»(2) Muitas pessoas consideram que esta táctica criacionista de torcer a verdade é sintoma de teimosia, imaturidade ou mesmo desonestidade. Mas o problema é mais profundo.

Normalmente tentamos resolver divergências colaborando com quem discordamos. Não só por ser socialmente mais aceitável mas também porque, por experiência, conhecemos os benefícios da compreensão mútua. Se defendemos uma posição é porque a assumimos correcta mas o bom senso recomenda deixar alguma margem para dúvida. Por este interesse mútuo em corrigir erros e melhorar opiniões, o diálogo racional, mesmo quando há discórdia, segue preceitos de respeito e civismo. Não mentir descaradamente, não insistir em argumentos já refutados, justificar as premissa que a outra parte questiona e assim por diante.

Mas o criacionista não partilha este objectivo. Há dois mil e quinhentos anos, segundo julga, anciões de uma tribo descreveram a criação de tudo. E pronto. Vinte e cinco séculos de progresso não contam para nada. O criacionista não quer saber a resposta porque julga que já a sabe. E não é só uma certeza. Acima de tudo, é uma questão de valores. O criacionista está pessoalmente comprometido àquela caricatura da história natural e considera que esse compromisso é a sua maior virtude. E para defender tal virtude vale tudo. Vale mentir, chatear, inventar, torcer o sentido às palavras, impor as suas crenças e importunar quem apanhe a jeito.

É pena que não dêem melhor uso a tamanho esforço. Porque deve ser um grande esforço. A ignorância ajuda mas não faz tudo, e hoje em dia é difícil discutir estas coisas e manter-se ignorante de tanto que contradiz o criacionismo. Só a muito custo é que alguém continua a massacrar o nariz contra a parede se tem a porta escancarada mesmo ao lado.

1- Penicilina
2- Comentário em Porque sim e porque não.

quinta-feira, março 12, 2009

O problema é a partilha de ficheiros.

A SIC vendeu à Fantasy Day/Lemon a sua editora discográfica, a iPlay. Por um euro mais um acordo de quatro anos para o licenciamento exclusivo do material da SIC. Assim se vende os direitos exclusivos sobre os trabalhos de artistas como «Carlos Paião, Alfredo Marceneiro, Carlos Paredes, e outros mais recentes, como Boss AC, Mafalda Veiga, João Pedro Pais, Wraygunn ou Mind da Gap»(1).

Mas ficam em boas mãos. A Lemon surgiu da fusão de empresas portuguesas com muita experiência no ramo e com certeza dignificará a “industria cultural” do nosso país. «Eventos como Noddy, Bob o Construtor, Ruca e Winx ao Vivo têm sido trabalhados por esta agência.»(1) Se não fossem os malditos dos piratas isto era um paraíso cultural.

1- DN, 11-3-09, SIC vende editora i Play por apenas um euro, via Remixtures.

quarta-feira, março 11, 2009

Porque sim e porque não.

Às 15:00h do dia 14 de Março, na Faculdade de Filosofia em Braga, vai haver um debate sobre «Acreditar em Deus. Porque sim? Porque não?». Do lado do não estarão o Hélder Sanches e o Ricardo Silvestre, do Portal Ateu (1). Do lado do sim o Alfredo Dinis (2) e o Bernardo Motta (3). Gostava de ir. Deve ser interessante e finalmente conhecia o Bernardo. Mas Braga é longe e estou horrivelmente atrasado com um artigo que prometi ao Alfredo. Enquanto não me redimir dessa falta até tenho vergonha de aparecer em Braga. Mas isto não me impede de implicar com o título, que me parece exemplo de dois problemas no diálogo com religiosos. A ambiguidade de “acreditar” e a falsa simetria na pergunta.

No sentido mais modesto, “acreditar” é simplesmente a atitude de aceitar uma proposição. Como atitude pessoal não exige grande justificação. Posso acreditar em algo porque julgo que é verdade, porque mo contou alguém em quem confio ou simplesmente porque me apetece. Não devo explicações a ninguém. Mas “acreditar” tem também o sentido mais exigente de afirmar algo como verdadeiro. Esse exige uma justificação que se possa partilhar. Enquanto a minha atitude pessoal só me diz respeito a mim, a verdade, se o for, é verdade para todos. Por isso o “acreditar” como afirmação de verdade só se pode justificar com razões igualmente válidas para todos.

Muitos religiosos aproveitam esta ambiguidade para afirmar que o seu deus existe justificando-o apenas com razões pessoais. A sua fé, a sua relação com a ideia desse deus, a forma como interpretam um certo livro ou a sua tradição. Mas quando os ateus defendem o contrário os religiosos exigem provas objectivas que o seu deus não exista. E os outros livros religiosos, a fé das outras pessoas, as outras tradições, nada disso conta.

E o “porque sim ou porque não” dá uma ideia falsa de duas alternativas equivalentes, como se a questão fosse simétrica. Mas não é. No “porque sim” está, neste caso, o catolicismo. Uma religião entre milhares, com dogmas específicos acerca daquele deus, de quem o representa, dos rituais que se deve fazer, quando e onde. Até se pronunciam sobre o hímen de uma senhora que morreu há dois mil anos. As evidências que têm são insuficiente para justificar tanto detalhe.

Em contraste, o ateísmo defende apenas que este universo não é um teatro de marionetas. Os detalhes não vêm do ateísmo por si. Vêm da ciência. Que também nos dá a evidência mais forte que não há deuses. Aprendemos mais acerca do universo nestes poucos séculos em que procurámos explicações sem deuses do que em todos os milénios anteriores quando se via deuses por todo o lado.

Desejo a todos um bom debate. Era bom se gravassem as apresentações para quem não pode ir. E compreendo a necessidade destes títulos. Não era fácil organizar um debate com católicos se o título fosse “Por que se há de acreditar no que os católicos dizem se é só mais uma de milhares de religiões incompatíveis e nenhuma tem evidências que a suportem?”. Além de ser preciso três ou quatro cartazes só para o título não se arranjava ninguém com quem debater.

1- Hélder Sanches, Acreditar em Deus - Porque sim, porque não.
2- Alfredo Dinis, Debate na FacFil.
3- Blog do Bernardo: Espectadores.

terça-feira, março 10, 2009

Bom e barato, VIII

Soube do FeedBooks há dias, por email. Lá pode-se descarregar livros livres de copyright e DRM, como no Project Gutenberg, mas o FeedBooks está pensado para leitores portáteis e os ficheiros estão nos formatos indicados para os leitores mais populares. Tem também um serviço gratuito de publicação. Qualquer um pode soltar o seu talento de escritor (tenha muito ou pouco) e enviar o texto para o FeedBooks para quem quiser ler. Vai ser um bom sítio para visitar quando comprar um destes.

A Crítica é uma revista portuguesa de filosofia, online. Até ao passado dia 7 só parte do conteúdo estava acessível de graça. A tradução do Guia de Falácias do Stephen Downes, por exemplo, tem sido um bom recurso para a disciplina de Pensamento Crítico. Mas desde dia 7 que está tudo disponível gratuitamente. Segundo o post a noticiá-lo, «Esta situação é temporária, mas poderá tornar-se permanente se for economicamente viável financiar a revista unicamente com as receitas provenientes das pessoas que clicam na publicidade, e com subscrições ou donativos voluntários.» Não sei o qual é o critério para a viabilidade económica, mas prevejo que este modelo não será menos viável que o modelo anterior de cobrar pelo acesso aos artigos. O problema não deve ser o modelo mas a pouca viabilidade económica de vender artigos de filosofia.

A Direcção-Geral de Arquivos tem um projecto, TT Online, para digitalizar e disponibilizar os documentos da Torre do Tombo. Alguns já estão online, como a bula que oficializou a fundação de Portugal e outros «Tesouros da Torre do Tombo». Há umas semanas estive a falar com um colega que está a participar na implementação da infra-estrutura informática para a digitalização dos processos da Inquisição portuguesa. Prevê-se que o esteja concluido no final deste ano e deve dar leituras interessantes. Fica a sugestão aos presidentes das várias associações de cobrança de direitos de autor. Visitem o site da Torre do Tombo. Sempre ficam com uma ideia melhor do significado do termo “cultura”.

E agora um só para geeks informáticos. Descobri-o há umas semanas e foi amor à primeira vista. O Lazarus é um ambiente integrado de desenvolvimento multi-plataforma. Usa o Free Pascal e é muito parecido com o Delphi. Também é quase totalmente compatível com o código para Delphi, pelo menos até ao Delphi 7. Já passei alguns dos meus programas para o Lazarus, incluindo o que uso para gerir as avaliações dos alunos, e foi só preciso uns ajustes pequenos. E, ao contrário do Delphi, o Lazarus é gratuito e open-source.

segunda-feira, março 09, 2009

“Indústria cultural”.

Uma notícia da passada sexta-feira na Exame Informática tinha o título «Indústria cultural portuguesa quer cortar Net a piratas»(1). A treta é a do costume. Mais uma associação de cobradores que quer proibir a Internet a quem não lhes paga bilhete. Mas hoje o desabafo é sobre o termo.

O termo “indústria cultural” foi cunhado em 1947 por Theodor Adorno e Max Horkheimer. No século XX, parte da cultura antes só ao alcance dos mais privilegiados tornou-se acessível a muita gente com os jornais, rádio e cinema. Mas esta distribuição estava subordinada aos interesses de quem a controlava. Em 1947 já estava demonstrado que esta tecnologia podia disseminar, disfarçado de cultura, um placebo pobre e pouco original para manipular a população. Por isso Adorno e Horkheimer criaram um termo depreciativo, que designava uma “cultura” fabricada em massa e vendida ao pacote. Hoje usa-se o mesmo termo para a mesma coisa mas com uma conotação diferente. Os distribuidores apresentam o trabalho de copiar e distribuir gravações como um esforço industrioso de criar cultura, ameaçado pela facilidade de comunicar.

Mas nesta acepção do termo, de produção e promoção de cultura, a indústria cultural está muito bem de saúde. Universidades, museus, espectáculos, escolas de arte, bibliotecas e muitos outros meios de gerar cultura florescem com a nova tecnologia, com o melhor acesso ao conhecimento que enriquece ideias, hábitos e expectativas. Os distribuidores afligem-se porque o seu trabalho não é produzir cultura. É cobrar pelo acesso. E para isso precisam de o restringir.

A cultura é um produto da imaginação que é partilhado e que se pode transformar em mais cultura. A cultura cultiva-se, propaga-se e cresce. A poesia de Camões, a mecânica quântica e o HTML são cultura, criações partilhadas por todos e que podem ser usadas em novas criações. O que a “industria cultural” vende em CD e DVD não é cultura. São bens comerciais que ficam fora da cultura durante décadas, sequestrados pelo copyright que proíbe o acesso livre e a transformação destas obras.

No último século, sem a tecnologia industrial muita gente não teria acesso a estas obras. Eram as obras que mais convinham a governos e empresas e era preciso pagar ao distribuidor cedendo direitos exclusivos, mas valia o preço. Agora já não. O custo aumentou e o benefício desapareceu. Hoje cedemos direitos aos distribuidores como paga por um trabalho que podemos fazer nós, melhor e mais barato. Mas nestes cinquenta anos habituámo-nos a pagar à peça por cultura produzida em fábrica. A “indústria cultural” agora parece uma coisa boa e nem parece haver outra forma de financiar a criatividade.

O Desidério escreveu um texto onde dá muitos exemplos desta falha, mas fico-me, por enquanto, só por este: «Um conceito lunático curioso é que um escritor pode chegar à Internet, oferecer os seus livros de graça e depois pedir por favor, por graça do Espírito Santo, dêem-me qualquer coisita para comer.»(2) Se há gente a querer que ele escreva não lhe deve ser difícil cobrar pelo seu trabalho sem se preocupar com a cópia e o acesso. É o que eu faço, o que faz o Desidério e o que faz a maioria dos profissionais. Em vez de cobrarmos pelo acesso ao que fizemos cobramos pelo trabalho que fazemos. Qualquer pessoa que preste um serviço desejável pode fazê-lo.

Neste século que passou, copiar e distribuir foi sempre mais dispendioso que criar obras e, como copiar se paga à cópia, isto criou a ilusão que só se pode pagar cultura pagando ao distribuidor. Além disso, muita gente investiu neste modelo de distribuição, e enquanto não se reformarem vão tentar impor restrições aos outros para ganhar o seu. Mas, gradualmente, as coisas estão a mudar.

Quem tem talento já está a descobrir que é melhor exigir remuneração pelo seu trabalho criativo sem se preocupar com quem copia o quê. É claro que isto só serve para quem tem talento. O medíocre não ganha dinheiro se o excelente está a um click de distância. Mas isto está bem porque é o excelente que queremos financiar. Os outros fazem cultura porque gostam. São muitos a fazê-lo. E, juntos, fazem coisas excepcionais. Como a Wikipedia, o Linux, o Pirate Bay, o Source Forge e os programas de partilha que arruinam discográficas. Acima de tudo, muita gente já está a perceber que a cultura só o é se for de todos. Para promover a cultura devemos financiá-la pagando o trabalho de a criar mas sem ceder direitos de propriedade sobre o que é criado. Propriedade e cultura são mutuamente exclusivas.

1-Exame Informática, 6-3-09, via o Twitter do Miguel Caetano
2- Desidério Murcho, 2-3-09, Critica na rede.

sábado, março 07, 2009

Treta da Semana: O ADN telepata.

ADN
Dupla hélice de ADN. As duas moléculas de ADN estão representadas com cores diferentes. Fonte: Wikimedia Commons.

O Jónatas Machado relatou, com típica contenção e ponderação, «ÚLTIMA HORA! PROPRIEDADES “TELEPÁTICAS” DESCOBERTAS NO DNA!» (1). Segundo o Jónatas, «As últimas descobertas científicas mostram que o DNA tem capacidades “telepáticas” consideradas cientificamente impossíveis e inexplicáveis. [...] Esta descoberta acerca das capacidades de leitura à distância do DNA foi recentemente publicada no ACS’ Journal of Physical Chemistry B. Os autores do estudo foram os cientistas Geoff S. Baldwin, Sergey Leikin, John M. Seddon, Alexei A. Kornyshev ».

Este artigo foi publicado em Janeiro de 2008 (2). Num contexto bíblico pode ser “recentemente” mas, em ciência, é mais “só agora é que repararam?” E isso do cientificamente impossível e inexplicável nem sequer é exagero. É treta.

Cada molécula de ADN tem uma cadeia de açucares fosfatados à qual se ligam bases que interagem com as bases da outra molécula de ADN na dupla hélice (ver figura). A elucidação desta estrutura, por Watson e Crick, revelou como uma molécula de ADN pode reconhecer a sua parceira em função das sequências de bases. Também se sabe que uma molécula de ADN sozinha pode encaixar no sulco que se forma onde as bases da hélice dupla emparelham. Como as bases de uma molécula podem interagir com as bases do par já formado, percebe-se que esta interacção também depende da sequência de bases. A novidade no artigo de Baldwin et al foi comprovar experimentalmente que a interacção de dois pares de moléculas de ADN também tem alguma especificidade. Esta situação é diferente porque entre duas hélices duplas as bases não podem interagir.

Em solução, as cadeias duplas de ADN encostam-se formando esferas de cristal liquido, estruturas organizadas mas fluidas. Os autores prepararam uma mistura de cadeias duplas de ADN com duas sequências diferentes, cada uma marcada com um corante fluorescente diferente. Quando se agregavam, as cadeias duplas do mesmo tipo segregavam-se espontaneamente na estrutura do cristal líquido. Em vez de uma mistura das duas cores viram os corantes separados em regiões diferentes (3). Ou seja, mesmo emparelhadas numa hélice dupla, as moléculas de ADN interagem preferencialmente com outros pares da mesma sequência.

Mas esta descoberta não foi “cientificamente impossível e inexplicável”. Como os autores explicam na introdução, esta selectividade já tinha sido sugerida por estudos teóricos «prevendo que a dependência entre a estrutura da cadeia principal do ADN e a sua sequência pode afectar as interacções ADN-ADN e até resultar em reconhecimento de sequências homólogas sem abrir a hélice dupla»(3). Já desde 1998 (4) que se sabe que a sequência de bases afecta a estrutura da cadeia de açucares fosfatados. A experiência que o Jónatas mencionou como mostrando um mistério inexplicável foi a confirmação de uma hipótese com mais de uma década.

Tanto cientistas como criacionistas gostam de resultados intrigantes, mas a semelhança acaba aí. Para os cientistas, um dado inesperado é uma oportunidade para melhorar explicações e encontrar novas pistas acerca do funcionamento do universo. Para os criacionistas, um mistério é um buraco escuro onde podem guardar o seu deus. Rezam para que se mantenha misterioso e maldizem quem acender a luz.

«The most exciting phrase to hear in science, the one that heralds new discoveries, is not ‘Eureka!’ but ‘That’s funny …» Isaac Asimov.

1- Comentário em Darwin na FCT.
2- ACS News Service Weekly PressPac, January 23, 2008.
3- Geoff S. Baldwin, Nicholas J. Brooks, Rebecca E. Robson, Aaron Wynveen, Arach Goldar, Sergey Leikin, John M. Seddon, and Alexei A. Kornyshev, DNA Double Helices Recognize Mutual Sequence Homology in a Protein Free Environment, J. Phys. Chem. B, 2008, 112 (4), pp 1060–1064.
4- Olson WK, Gorin AA, Lu XJ, Hock LM, Zhurkin VB, DNA sequence-dependent deformability deduced from protein-DNA crystal complexes. Proc Natl Acad Sci U S A. 1998 Sep 15;95(19):11163-8.

sexta-feira, março 06, 2009

Roubaram o carro do Tózé Brito (ou como que, segundo ele).

A propósito de uma série de palestras sobre a «Industria da Música em Portugal»*, o Tózé Brito afirmou que «Quando as pessoas ou as empresas compreenderem que o fornecedor de Internet lhes veda o uso, por causa de `downloads` ilegais, o fenómeno desaparecerá»(1). Nesta curta notícia o Tózé demonstra grande mestria na arte de cavar minhocas.

É comum alegarem que os downloads são ilegais, mas os processos em tribunal têm visado só o upload. É distribuir o conteúdo que viola a lei. Obter uma cópia para uso pessoal, por si só, parece ser insuficiente para levar alguém a tribunal. E como a discografia completa do Tózé Brito cabe num cantinho de um cartão de memória, com as fotografias das férias e meia dúzia de filmes, mesmo que essa medida funcionasse apenas mudaria a forma como se copia ficheiros de música. O que dá chatices ao Tózé Brito não é a Internet. É a tecnologia que permite descrever músicas em sequências de zeros e uns e depois transmitir essas descrições ou andar com um milhão delas no bolso**.

E a Internet é cada vez mais importante na nossa vida. Todos gostamos de ouvir música de vez em quando, mas a Internet é correio, telefone, jornais, televisão, enciclopédia e ferramenta de trabalho para cada vez mais gente. Subordinar isto tudo à venda de CDs é de uma miopia que seria cómica se não fosse a tragédia de o levarem a sério. Como a Patrícia mencionou, propostas absurdas como a que o Tózé Brito papagueia estão a ser consideradas em vários países, o que «deve preocupar mesmo aqueles que não se interessam muito por estas coisas porque afecta a privacidade e a liberdade de toda uma sociedade»(2).

Na cavadela seguinte,«através do número de identificação do computador, as operadoras de telecomunicações sabem quem faz "downloads" ilegais, podendo, por isso, cortar-lhe o acesso à Internet, e avisar as autoridades para que o computador seja apreendido». Não há número de identificação do computador. Em alguns casos, como nas ligações por cabo, há um número do modem. Mas em muitos tipos de ligação nem isso há. O número que o Tózé refere é o endereço IP, e esse é atribuído pelo ISP à ligação, não ao computador nem à pessoa. Um endereço IP pode depois ser usado por vários computadores numa rede interna, que é o que acontece com quem tem wireless em casa. Além de não poder associar um endereço IP a uma pessoa ou a um computador, quando as empresas discográficas encontram um endereço IP suspeito nem sequer têm garantias de estar a ser usado para algo ilegal (3). Não se contentando com sacrificar a Internet pelo seu negócio, os Tózés também querem deitar fora a justiça e mandar a polícia entrar em casa das pessoas sempre que suspeitarem que alguém ouve música sem lhes pagar.

Finalmente, o costumeiro «roubar uma música é igual a roubar um carro». Teria razão se investisse trabalho e dinheiro a gravar uma música e alguém lhe roubasse todas as gravações e cópias de segurança, obrigando-o a fazer tudo de novo. Isso seria como roubar um carro no sentido de o privar de algo que ele já tinha e que lhe custa repor. Mas partilhar ficheiros mp3 é copiar descrições numéricas das músicas. Se a música está publicada é como copiar do catálogo informação pública acerca do carro. Grave seria se a informação copiada fosse pessoal ou privada; a capacidade de violar a esfera pessoal é uma consequência preocupante desta tecnologia. Mas o Tózé não parece ser contra isso. Pelo contrário, se for para ganhar mais uns euros é até a favor de bisbilhotar o que as pessoas fazem e mandar lá a polícia se for coisa que ele não gosta.

Como compositor e autor o Tózé Brito talvez continue a ter sucesso. Mas se apostar na venda de CDs está tramado. Há coisas mais bonitas, mais em conta, e melhores que os CDs para evitar que os copos manchem a mesa.

* Começa hoje na FCSH. Infelizmente, é às 11:00, e estou a dar aula. Mais detalhes no Misurato.
** Não é hipérbole. Um disco de 2 terabyte tem o tamanho de um livro de bolso, custa uns 200€ e cabe lá cerca de um milhão de ficheiros mp3.

1- RTP (Lusa), 5-3-09, Produtor musical Tózé Brito defende corte de acesso à Internet a quem descarregue músicas ilegalmente. Obrigado ao Francisco Burnay pelo link.
2- Comentário em O julgamento dos piratas.
3- Mais detalhes sobre estas trapalhadas no post Um, dó, li, tá. Inclui a história da impressora que recebeu uma notificação para não partilhar filmes...

quinta-feira, março 05, 2009

Metáfora... mas de quê?

Deito o meu cajado ao chão e digo vede, que se transforma numa cobra. Não, dizem vocês, é só um pau. Ah, digo eu, queria dizer que se transforma em cobra metaforicamente. Hã? dizem vocês.

Uma metáfora transporta atributos de uma coisa para outra. Se dissermos de alguém que é burro estamos a associar a essa pessoa um atributo do animal. Sendo falso que a pessoa seja literalmente um burro, metaforicamente a afirmação pode ser verdadeira se o visado tiver o atributo que se entende ser-lhe associado. Esta associação é comum e muitas expressões em qualquer língua são metáforas mortas, como “nascer do Sol”, “lua cheia” e “vinho verde”, que atribuem a umas coisas propriedades de outras sem que sejam literalmente verdadeiras e sem sequer notarmos que são metáforas.

Para que uma metáfora faça sentido é preciso perceber que atributos se está a associar ao alvo. Daí ser absurdo dizer que o cajado se transforma em cobra metaforicamente. Literalmente, a afirmação é falsa. Mas como metáfora não se percebe o que possa querer dizer.

Este é um problema recorrente quando se discute religião. Acerca das minhas críticas a alegados poderes como o da infalibilidade papal ou o da transubstanciação da hóstia, o Nuno Gaspar escreveu que eu confundo «sentido metafórico com sentido literal»(1). Mas não explica como é que o Papa pode ser metaforicamente infalível ou a hóstia metaforicamente transubstanciada no corpo de Jesus.

Pode-se interpretar como metáfora as palavras do padre que mostra a hóstia e o vinho e diz “isto é o meu corpo” e “este é o cálice do meu sangue”. Isso não é problema. Mas o dogma da transubstanciação, que as substâncias do vinho e da hóstia se tornam nas substâncias do corpo e sangue de Jesus, não faz sentido como metáfora. Ou é verdade ou é treta. A infalibilidade papal também. Dizer que alguém é infalível é provavelmente falso. Mas dizer que alguém é metaforicamente infalível é um disparate. Não faz sentido.

A metáfora, quando é clara e compreensível, é um bom veículo para transmitir ideias. Usamo-la constantemente, como fiz na frase anterior ao chamar-lhe veículo. Mas nem tudo pode ser metáfora e é um disparate chamar metáfora a uma afirmação falsa só para não admitir que é treta.

1- Comentário em Mais Mamadus.

quarta-feira, março 04, 2009

O julgamento dos piratas.

Terminou ontem o julgamento dos gestores do site The Pirate Bay (TPB), o mais famoso fórum sobre ficheiros em partilha. O veredicto virá no dia 17 de Abril, mas o julgamento em si foi uma grande vitória para os gestores do site. Das acusações iniciais tiveram de ser retiradas tanto as de violação de copyright, porque o site não tinha material protegido, como as de “cumplicidade na violação de copyright”, porque a acusação não estabeleceu qualquer contacto entre os gestores do TPB e as pessoas que tinham partilhado os ficheiros apresentados como prova. O TPB é um fórum aberto, e nem o que os utilizadores lá escrevem nem o que partilham entre si exige a cumplicidade dos gestores.

Restaram apenas as acusações de “cumplicidade em disponibilizar material protegido”, que a defesa apontou serem pouco razoáveis. Porque a acusação nem deu evidências de ter havido algum crime – não se sabe de onde foram disponibilizados os ficheiros e nem todos os países o criminalizam – nem estabeleceu qualquer ligação entre os acusados e as pessoas que partilharam esses ficheiros. Mas, seja qual for o veredicto, certamente que quem perder irá recorrer. Legalmente, o caso vai demorar a resolver-se. No entanto já serviu para mostrar duas coisas importantes.

Por um lado, que a industria de distribuição está a combater a troca de informação e não propriamente a partilha de ficheiros. Milhões de pessoas trocam ficheiros de música e vídeo todos os dias. Isso não conseguem impedir nem que desliguem a Internet, porque com um disco rígido leva-se facilmente mil filmes num bolso. Por isso querem impedir que esses milhões de pessoas digam uns aos outros “tenho este ficheiro”. Esta parte dos direitos de autor, o copyright, já tinha pouco a ver com o autor. Agora fica também longe de qualquer coisa que se reconheça como direitos.

E, por outro lado, a justificação para estas medidas é uma treta. O que a acusação propôs é que cada vez se consome mais músicas e filmes mas cada vez as pessoas pagam menos pelo que consomem. Isso, alegam, está a destruir a indústria. Mas consumir um recurso é torná-lo mais escasso, e a partilha de ficheiros faz precisamente o contrário. É por tornar os ficheiros sobreabundantes que desvaloriza a distribuição. Além disso, as pessoas pagam cada vez mais por concertos e bilhetes de cinema. E até por músicas compradas online. O que tem afectado a indústria discográfica é um conjunto de factores. Os videojogos e telemóveis, que competem na mesma faixa de mercado; a possibilidade de comprar faixas individuais, eliminando o negócio de vender 19 músicas de treta agarradas à única que o consumidor quer comprar; a obsolescência do CD, que hoje em dia só serve para copiar as músicas para o leitor de mp3. E outros factores como a globalização do mercado e novos métodos de produção (1).

O propósito do copyright não é proteger a indústria. É promover a criação e distribuição de obras de arte. Até há poucas décadas isto coincidiu com os interesses dos distribuidores porque a distribuição era o factor limitante. Fabricar e transportar discos de vinil era mais caro que pagar a uma banda para gravar músicas, por isso era essa parte do processo que a legislação tinha de proteger. Mas agora já não. Distribuir músicas é gratuito e o copyright devia ser repensado para não inibir a inovação nem dificultar a distribuição.

O objectivo das leis de copyright era enriquecer a cultura incentivando a criação e distribuição de novas obras, duas coisas que a partilha de informação facilita. Mas a indústria tomou de assalto este mecanismo legal e está a usá-lo para obter lucros por coacção. Isso é muito mais parecido com pirataria do que partilhar coisas gratuitamente.

1- Jens Roland, TorrentFreak, 27-2-09 How To Kill The Music Industry

Há um resumo no TorrentFreak, The Pirate Bay - Innocent or Guilty?, que tem também detalhes sobre os vários dias do julgamento. E, é claro, na Wikipedia.