quinta-feira, dezembro 31, 2009

Feliz 2010

Este ano avisei logo que não queria sair. É a pior altura do ano para andar de carro por aí, não gosto de ir jantar fora nem de confusão, os antibióticos põem-me mal disposto e prefiro um serão calmo. Infelizmente, a tradição da passagem de ano é celebrar o novo ano de uma forma agradável para quem tem os gostos contrários aos meus. Quem gosta de sossego, lixa-se.

Por isso daqui a pouco lá vou eu cumprir mais uma pena por causa da decisão arbitrária de mudar o número do ano na data. Mas não queria por isso deixar de vos desejar a todos um bom 2010. Uma vantagem destas passagens de ano – fraco consolo – é que a seguir as coisas melhoram de certeza...

Gavetismos.

O Miguel Panão propôs que o espiritual é a componente mental da energia livre de Gibbs, proposta que critiquei por não haver componente mental na energia livre de Gibbs. Agora o Miguel contrapõe que não devo insistir no «erro científico, em vez de reconhecer que o argumento não era de [índole] científica», e que o problema é o meu «naturalismo científico»(1). Proponho que o problema é outro.

A realidade – o que quer que isso seja – interpela-nos constantemente pelos sentidos com que nascemos e pelos instrumentos que inventamos. Tentamos pôr ordem nessa chuva de dados criando modelos mentais que os expliquem. Os pontos luminosos na noite são bolas de plasma a flutuar no vazio, a matéria é feita de átomos e assim por diante. Mas a informação é tanta, e tão diversa, que temos de a partir em blocos mais pequenos. A química, a física, a biologia na ciência, o conjunto de problemas que temos ideia de como se resolvem. A filosofia da mente, da linguagem e a ética na filosofia, problemas que ainda não sabemos como resolver. A matemática e a lógica na linguagem com que descrevemos outros problemas em rigor. E assim por diante.

O ponto comum é que dividimos a informação pelo que queremos explicar e não pelas explicações que inventamos. Isto tem duas consequências importantes. Primeiro, em cada área há liberdade total para criar modelos que expliquem os dados. Não é preciso ter uma química dos quatro elementos e outra dos átomos. Temos uma química, e se consideramos quatro elementos ou 118 depende dos modelos que vamos inventando. É trabalho em curso. E são categorias permeáveis, dinâmicas e interligadas. A filosofia da mente não vai assentar em hipóteses que a fisiologia demonstre serem falsas, da matemática escolhemos as descrições de geometrias do espaço-tempo consistentes com a física e a astronomia tem de encaixar com a química. Podemos descobrir que duas categorias funcionam melhor como uma só, como a química orgânica e a inorgânica, ou separar uma categoria em duas, como a genética molecular e de populações. Seja como for, é tudo acerca da mesma realidade. Tem de encaixar.

Neste contexto, o meu naturalismo científico é apenas mais uma hipótese de trabalho. Não me leva a rejeitar dados nem a preferir explicações inadequadas só para não o rejeitar. Se um dia as melhores explicações incluirem fantasmas, magia, milagres e afins, então troco sem problema. Desde que encaixem. E este é o ponto fundamental que o Miguel descura ao fazer a partição ao contrário, assente num modelo em vez de nos fenómenos a estudar.

Aproveito para reanimar uma conversa interessante com o Leandro Ribeiro, já enterrada nos comentários (2). O Leandro propôs que muitos ateus são como os crentes. Desconhecedores das questões filosóficas e dos argumentos mais sofisticados, limitam-se a acreditar que não há deuses em vez de acreditar que há. Mas há uma diferença importante. Quando os astrónomos rejeitaram a hipótese de caírem pedras do céu fizeram-no não por fé mas por falta de informação. Não havia dados que a justificassem. Por isso o erro foi facilmente corrigido depois de obter os dados necessários. O mesmo se passa com o ateísmo. A conclusão, provisória, que não há deuses deriva da ausência de dados que indiquem que tais coisas existam. Não é um princípio fundamental do qual não se possa abdicar e, se estiver errado, é fácil corrigi-lo.

Coisas como a astrologia, a teologia, o criacionismo, o tarot e a anatomia energética funcionam ao contrário. A teologia, por exemplo, define-se pelo modelo segundo o qual um deus eterno passou infinito tempo sem fazer nada antes de criar este universo, treze mil milhões de anos depois engravidou uma fêmea de uma espécie de mamífero num canto de uma galáxia de segunda e agora vive preocupado com as preferências sexuais desses bichos. Esta inversão, baseando uma disciplina num modelo em vez de naquilo que se quer explicar, tem como consequência impedir a substituição do modelo por outro melhor que surja e isolar essa disciplina de tudo o resto.

Eu posso inventar uma queijologia, o estudo dos queijos que compõem a Lua, assente na premissa que a Lua é feita de queijo. E dentro dessa gaveta afirmar que a Lua tem uma componente de parmesão e outra de camembert. Mas a Lua não é feita de queijo e esta afirmação é um disparate quer seja de índole científica quer seja de índole queijológica. A grande diferença entre mim e o Miguel, e entre ateus e crentes em média, é o sentido oposto da ligação entre dados e modelos. Quem considera os dados como o mais fundamental exige que os modelos encaixem e dificilmente vai concluir que o deus do Miguel existe. E quem assume o modelo do Miguel como fundamento tem de isolar partes do que considera conhecimento para proteger esse modelo.

Ao contrário do que o Miguel diz, eu não rejeito a ideia dele por assumir um naturalismo ou materialismo. Eu rejeito-a porque é incorrecto afirmar que a energia livre de Gibbs tem uma componente mental e não há gambosinologia que disfarce isso. A própria fronteira entre ciência e a teologia, e a dificuldade em a transpor, é sintoma do apego excessivo a um modelo. É esse apego que obriga a fingir que há várias realidades independentes, a teologia por um lado e a ciência do outro, e que leva à afirmação absurda que o disparate numa é verdade na outra.

1- Miguel Panão, a-demonstrabilidade do naturalismo científico ...
2- No post Treta da semana: é só não acreditar neste.

quarta-feira, dezembro 30, 2009

Anatomia energética, continuação.

O Carlos Sousa teve a amabilidade de tirar algum tempo à sua prática terapêutica e «intervenção criadora na resolução de problemas, transmutação de quadros mentais e curas»(1) para fazer um diagnóstico gratuito dos meus problemas emocionais, de «Realização / Concretização» e a minha dificuldade em enfrentar a «verdade / realidade». Admito alguma dificuldade com isto de uma-coisa-barra-outra-coisa. Fico sempre à procura do “riscar o que não interessa”...

«Observei a foto do autor da Treta a qual aparenta carência afectiva, faltas de afirmação pessoal e paz interior, emoções reprimidas, incompletude emocional, enfim, experiências mal vividas que levarão o Doutor L. Krippahl, a fazer uso, vão, de malabarismos discursivos cujo intuito é colmatar falhas emocionais, repressões latentes.»

Tudo isto de uma fotografia onde nem se me vê os chakras. Fantástico.

Agradeço o diagnóstico gratuito, as sugestões e a preocupação do Carlos em me avisar destes problemas. Lamento apenas que o Carlos só tenha tido tempo para comentar as minhas repressões, falhas e incompletudes e não lhe tenha sobrado sequer umas linhas que ajudassem a fundamentar a sua prática terapêutica. Por isso, e apesar de toda a sua boa vontade, tenho de admitir que ainda considero a terapia energética uma treta e que vou continuar a tomar a claritromicina em vez de tentar tratar uma infecção respiratória com um diapasão.

1- Comentário em Treta da semana (passada): Anatomia Energética.

terça-feira, dezembro 29, 2009

O pedido.

Interpretar a Bíblia, já me disseram, é uma tarefa complexa que só algumas pessoas podem fazer. É estranho que um livro tão importante esteja tão mal escrito, mas seja. No entanto, apesar de estar ciente dessa complexidade, muitas vezes me espanto com as interpretações.

Num post no Companhia dos Filósofos, o Samuel descreve assim a sagrada família: «Um carpinteiro, da Casa de David, a quem o Senhor falou num sonho. Uma jovem, Maria, a quem o Senhor pede que realize o Seu sonho: a Encarnação. E um Menino, que nasce numa Família da Judeia, Jesus Cristo, nosso Salvador.»(1) A parte sobre Maria chamou-me a atenção porque não me lembrava de Deus lhe pedir o que quer que fosse.

O evangelho de Lucas conta a história. Descreve primeiro como o anjo Gabriel visitou Zacarias, um velho sacerdote, e lhe disse que a sua mulher iria ter um filho. Zacarias perguntou ao anjo «Como hei-de verificar isso, se estou velho e a minha esposa é de idade avançada?», ao que o anjo responde: «Eu sou Gabriel, aquele que está diante de Deus, e fui enviado para te falar e anunciar esta Boa-Nova. Vais ficar mudo, sem poder falar, até ao dia em que tudo isto acontecer, por não teres acreditado nas minhas palavras, que se cumprirão na altura própria.» Ficamos assim a conhecer a simpatia e cordialidade deste mensageiro escolhido por Deus.

Uns meses mais tarde é o mesmo Gabriel que vai ter com Maria. Entra em casa dela, saúda-a e diz: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus.» E pronto. A miúda, coitada, que pelos costumes da época se tivesse quinze anos já era muito, limitou-se a dizer «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.» Depois do que Gabriel tinha feito ao Zacarias só por uma pergunta inocente, e considerando como se tratava as raparigas naquela altura, não era de esperar que retorquísse “o útero é meu, aqui só vem quem eu quero”.

Que um deus todo poderoso trate uma criança como incubadora não destoa da cultura daqueles tempos. Infelizmente, não destoa sequer de muitas culturas de hoje, nas quais só é preciso ter algum dinheiro para comprar uma noiva e fazer dela o que se quiser. No entanto, este relato incomoda um pouco as sensibilidades da nossa cultura – ou de qualquer pessoa decente – e compreendo que o Samuel prefira interpretá-lo como um gentil pedido de Deus a Maria. Mas é um valente salto interpretativo.

Que a fé move montanhas é um exagero. As montanhas estão-se a borrifar para as crenças dos mamíferos. Mas a fé é poderosa. Com fé não é preciso que a montanha se mova para fingir que se moveu e convencer outros disso.

1- Samuel, Sagrada Família.

segunda-feira, dezembro 28, 2009

Treta da semana (passada): Anatomia Energética.

Na senda da termodinâmica da espiritualidade, abordo agora a anatomia dos centros energéticos. É uma matéria importante porque, como explica o Dr. Carlos Sousa, «A desordem nos sistemas de Chacras e meridianos – campos energéticos subtis – transforma os problemas emocionais / espirituais em debilidade celular que, tarde ou cedo, expressar-se-á e influirá na condição fisiológica.»(1) Neste contexto, era de esperar que o “Dr.” viesse de algum curso em medicinas alternativas. Mas não. Carlos Sousa formou-se em artes decorativas e design urbano na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva e é mestre em Criatividade Aplicada. Segundo ele, o mestrado foi pela Universidade de Santiago de Compostela, mas não consegui encontrar tal curso nessa universidade. Apenas no Instituto Avanzado de Criatividad Aplicada Total, também em Compostela (2).

Esta formação pode parecer distante da anatomia energética. Mas não é assim tanto porque o Carlos Sousa usa a intuição. Tal como a interpretação filosófica de conceitos científicos, este sucedâneo do conhecimento também exige principalmente criatividade. É inventar. Explica assim o Carlos Sousa que «Do ponto de vista da medicina vibracional, o Chacra é criado na intersecção dos canais energéticos ou nadis, onde, o antagonismo das forças negativas e positivas em jogo gera os campos vibracionais.»

É engraçado o “ponto de vista” neste tipo de coisa. Esta metáfora sugere uma forma particular de ver algo. Por exemplo, ver uma flor do ponto de vista da biologia ou do ponto de vista da decoração. Seja qual for o ponto de vista, é a mesma flor, com as mesmas cores, pétalas, ramo e espinhos. Mas aqui o “ponto de vista” é olhar para algo totalmente diferente, com a intuição a inventar o que não se vê. Dá a sensação que o chacra só é criado na intersecção dos canais energéticos do ponto de vista da medicina vibracional e que, por isso, noutra medicina não há chacra nenhum.

As terapias vibracionais baseiam-se no «princípio da modificação das percepções negativas que contribuem para a disfunção vibracional de um Chacra» e a sua eficácia depende da «TRANSFORMAÇÃO DAS CONDIÇÕES ENERGÉTICAS QUE PREDISPÕEM PARA A DOENÇA», tudo em maiúsculas para ser ainda mais eficaz. O funcionamento é simples. Cada doença tem uma frequência vibratória e a cura consegue-se quando «o nível energético da metodologia terapêutica aplicada é suficiente para anular a frequência vibratória da doença.» Mas atenção: «Um tratamento vibracional mal executado pode provocar ruptura energética num Chacra». Presumo que seja importante o terapeuta ter uma formação sólida em decoração de interiores e design urbano pela violência dessa ruptura, que pode exigir a remodelação ou mesmo a reconstrução das instalações.

Aproveito a explanação do Carlos Sousa para dar mais uma achega à discussão sobre a espiritualidade. «Os Chacras constituem esse extraordinário sistema energético localizado fora do corpo físico para ligar-nos ao universo multidimensional e propiciar feedback emocional e espiritual.» Penso que os Chacras são um bom candidato para a infinita interioridade na infinita exterioridade, pertencendo ao corpo subtil mas estando fora do corpo físico. Ou, por outras palavras, uma espiritualidade corporificada e corporalidade espiritualizada.

É claro que pode bem ser outra coisa qualquer. Nestas coisas tudo está certo desde que soe bem. Nem precisa significar nada.

Adenda (30-12-09): recebi um email do Carlos Sousa esclarecendo alguns detalhes acerca do seu mestrado. Passo a citar a informação que ele me enviou:

«O título que me foi conferido pela Universidade de Santiago de Compostela – Dpto de Métodos e Técnicas de Investigación en CC. do Comportamento e da Educación – está assente no Libro de Rexistro de Expedición a folhas 31, nº 1, com o nº de expediente 200000437.»

O Carlos teceu também algumas considerações interessantes acerca da minha personalidade e problemas psicológicos, mas pedi-lhe que fosse ele a colocar esse comentário.


1- Anatomia Energética. Obrigado a Mário Miguel pelo link.
2- IACAT

domingo, dezembro 27, 2009

Espiritual.

Pedi há uns dias ao Miguel Panão para me explicar o que quer dizer com o termo “espiritual” e o Miguel prontamente acedeu (1). Obrigado, Miguel. Segundo o Miguel, «é precisamente a presença desta dimensão espiritual no mundo que dá sentido (até) ao sofrimento». É portanto uma forma adequada de celebrar a promoção da minha gripe a infecção nos brônquios e aproveitar este estado semi-febril, enquanto o antibiótico não dá cabo da bicharada, para me dedicar à teologia.

Ao fim de algumas citações que não esclarecem o termo, o Miguel propõe uma definição termodinâmica de “espiritual”:«Dado o seu carácter informacional, associando-se ao conhecimento que providencia ao observador do estado microscópico do sistema e não das trocas energéticas que são função da entalpia, a entropia possui como que um aspecto mental, que Teilhard se refere por vezes como energia espiritual.» Ou seja, o espiritual é o aspecto mental da entropia. Infelizmente, esta definição apenas confunde entropia com informação e informação com processo mental.

A entropia em termodinâmica é o número de estados microscópicos contidos num estado macroscópico de um sistema. Por exemplo, a entropia de um copo de água à temperatura e pressão normal é o número de configurações possíveis para aquelas moléculas nessas condições. A entropia na teoria da informação é uma medida da incerteza acerca do valor de uma variável aleatória. Apesar de serem formalmente semelhantes, porque a fórmula é parecida, referem coisas diferentes. O Miguel simplesmente equivoca os dois termos no primeiro passo da sua analogia. E depois comete um erro ainda mais grave. A entropia da teoria da informação não tem nada a ver com processos mentais ou com o conhecimento do observador. É simplesmente uma medida da função de distribuição de uma variável aleatória.

Daqui o Miguel conclui que «O termo “espiritual” refere-se ao que faz parte da vida (e.g. o que é emocional, psicológico, comportamental e afectivo), mas inclui também o que a transcende, ou seja, aquilo que está para além do espaço e do tempo», referindo-se, suponho, a esta “explicação” que cita de Ratzinger, acerca da imortalidade da alma:

«a essência do ser humano, a pessoa, continuará a existir; aquilo que amadureceu durante a existência terrena de espiritualidade corporificada e de corporalidade espiritualizada continuará a existir de outra maneira»

Apesar de tudo, esta definição faz mais sentido. “Espiritual” é aquela parte de nós que transcende o tempo e o espaço por ser imortal. É claro que isto levanta a questão de sobrar alguma parte de nós após a morte. Se não sobrar, como parece ser o caso, “espiritual” refere-se a algo que não existe. Talvez venha daí a necessidade daquela confusão com a termodinâmica para parecer que há algo onde não há coisa nenhuma. Finalmente, o Miguel dá outra “explicação”.

«O que é espiritual na pessoa humana manifesta-se no momento, impreciso no espaço e no tempo, em que se torna consciente em si mesma numa absoluta presença a si mesma, mas orientada para a realidade absoluta do totalmente Outro. Infinita interioridade na infinita exterioridade, onde a matéria é a condição que possibilita o outro objectivo que o mundo e o homem são para si mesmos. A matéria significa a condição para aquela alteridade que aliena o homem de si mesmo e, ao fazê-lo, devolve-o a si mesmo, isto é, o ser humano encontra-se a si mesmo no/pelo outro»

A minha suspeita inicial, antes de ler o post do Miguel, era que “espiritual” teria na religião o mesmo papel que “energias positivas” e afins têm nas medicinas alternativas. Algo que soa bem mas que, em rigor, não faz sentido. No entanto, li a explicação do Miguel pondo de parte qualquer ideia pré-concebida acerca do significado deste termo. Como se não soubesse nada do que quer dizer “espiritual”. E foi assim que cheguei ao fim. Sem perceber o que ele quer dizer com isto.

No entanto, fiquei mais esclarecido. A minha suspeita inicial já não é mera suspeita. Aquelas voltas com a termodinâmica e a “energia espiritual” confirmaram que a função deste termo era mesmo aquela que eu suspeitara. E fiquei com a impressão que o Miguel também não tem uma ideia clara e concreta do que é o “espiritual”. Não por falta de tentar esclarecer-se mas porque, provavelmente, não há tal coisa. Agradecendo o esforço do Miguel em tentar esclarecer o que é obscuro por desígnio, deixo aqui parte da definição do dicionário. O ponto 3 parece-me especialmente apropriado.

«espírito, s. m., 1. Coisa incognoscível que anima o ser vivo. 2. Entidade sobrenatural, como os anjos e os demónios. 3. Ente imaginário, como os duendes.»(2)

1- Miguel Panão, Sobre o termo “espiritual”.
2- Priberam, DLPO, espírito

quinta-feira, dezembro 24, 2009

O Pai Natal.

O maior drama da humanidade é o Homem virar costas ao Pai Natal. A descrença, o cepticismo, o pecado cada vez menos original de negar o Santo Pai e procurar cada um o sentido da vida na sua vida em vez de numa relação com o Pai Natal são, em conjunto, a maior causa do sofrimento humano. E o mais dramático é que a existência do Pai Natal não é uma mera questão de Fé nem contradiz a Ciência moderna. Há evidências sólidas que o Pai Natal existe e que age na abertura das possibilidades de um Natal não determinístico, em constante fluxo e criação, num dom de si mesmo no outro enquanto expressão de relação com a alteridade do eu.

O argumento ontológico é uma prova sólida da existência do Pai Natal. O Pai Natal é um ser tal que não é concebível haver algo mais capaz de dar prendas que Ele. Ora se o Pai Natal não existisse seria possível conceber um Pai Natal existente que, por existir, seria forçosamente mais capaz de dar prendas. Logo, por definição, o Pai Natal tem de existir. Posto de outra forma, podemos definir o termo “Pai Natal” como referindo o Pai Natal que existe, ao contrário de qualquer outro pai natal de ficção que por vezes inventam e tentam ridicularizar, inclusivamente comparando-o com figuras mitológicas de alguma religião, como se o Pai Natal fosse um mero deus.

Mas como nem todos estão abertos à Lógica e à Razão, muitos não conseguem seguir este importante argumento. Por isso importa salientar as evidências históricas, sociais e pessoais. Historicamente, a importância do dia do Pai Natal reflecte-se nas crenças religiosas de todo o mundo. Por exemplo, no mito do nascimento do deus cristão, que muitos erradamente julgam ser a origem da tradição natalícia. Um erro compreensível pelas semelhanças na imagética destes relatos. Os três reis magos levando prendas ao menino, deslizando pela neve da Palestina no seu trenó, e as renas a correr sob os pinheiros enfeitados de gelo. Até as prendas, a mirra, o incenso e o ouro, reflectem uma tradição que perdurou até hoje. Dois terços não serve para nada mas o resto, felizmente, é dinheiro. Atente-se, no entanto, ao facto que até o deus dos cristãos ter alegadamente nascido precisamente no dia do Pai Natal. Isto é demasiado improvável para ser mera coincidência e atesta a Verdade da existência do Pai Natal.

A nível social há evidências ainda mais fortes. Milhões de pessoas em todo o mundo dirigem os seus pedidos ao Pai Natal. Só neste ano em Portugal os CTT já processaram 280 mil cartas para o Pai Natal (1), número que certamente não inclui todos os pedidos. É certo que esta relação com o Pai Natal não é puramente espiritual. Muitos pedem bens materiais ou alguma vantagem, oferecendo algo em troca. Mas este é um aspecto comum a todas as formas do Homem se relacionar com o Pai Natal. Quer lhe chamem “Santa Claus”, “Odin” ou “Nossa Senhora de Fátima”, é comum pedir-Lhe coisas e oferecer-Lhe sacrifícios em troca, seja a promessa de melhor comportamento seja um percurso de joelhos ou uma perna de cera para derreter junto ao altar. No entanto, o que importa e está subjacente a estes actos é a relação entre o Ser Humano e o Pai Natal. É isso que nos separa dos animais, a nossa alma imortal que é sermos amados pelo Pai Natal. Mesmo depois do nosso corpo se tornar cinza e pó, e mesmo que nessa altura já não nos adiante de nada, ainda assim viveremos imortais como uma linha na Sua lista.

E, pessoalmente, a crença no Pai Natal torna as pessoas melhores. Por todo o mundo, desde a mais tenra infância, muita gente se esforça por ter um comportamento mais respeitador e considerado. Inicialmente por interesse, é certo, para evitar um castigo e obter uma recompensa. Mas com o tempo vão percebendo que amar ao Pai Natal* é já uma recompensa em si, ainda que só traga mais um par de peúgas ou o mesmo after-shave de sempre.

Lamentavelmente, apesar destas provas irrefutáveis muitos continuam a julgar que o Pai Natal não existe. Os mais afortunados porque O adoram sob outros nomes e de outras formas, com missas, jejuns ou piões. Exprimem uma Fé menos esclarecida mas ainda assim genuína e digna do louvor condescendente de quem conhece a Verdade. E os menos afortunados, os apainatalistas, porque a sua pobreza espiritual os faz pensar que realidade e ficção são coisas diferentes, levando-os a violentas cruzadas de intolerância nas quais escrevem em blogs que o Pai Natal não existe.

Seja como for, crentes ou descrentes, nesta época todos devemos estar gratos ao Pai Natal por tudo o que há de bom no mundo (que o mal, evidentemente, não é culpa d'Ele). Por isso desejo a todos muitas felicidades, seja qual for a forma como acreditam no Pai Natal. Ou mesmo que não acreditem. Que o Pai Natal vos abençoe.

* “amar o Pai Natal”, se bem que gramaticalmente mais correcto, tem menos estilo.
1- DN, 24-12-09, Pai Natal, eu quero...

terça-feira, dezembro 22, 2009

Curtinho.

Como estou engripado não posso escrever muito, até para não arriscar contaminar os leitores. Mas não queria deixar de referir aqui este post do Miguel Panão:

Maria Imaculada como resposta à poluição no âmbito da ecologia espiritual

Antes do Ben-U-Ron fazer efeito isto quase fez sentido. Mas temo que o paracetamol me tenha afastado novamente do catolicismo. Agora que a febre baixou sinto-me como o Tom Lehrer quando deram o Nobel da paz ao Kissinger...

segunda-feira, dezembro 21, 2009

Tom Lehrer

É um dos meus ídolos desde que era pequeno. Desde que eu era pequeno, entenda-se, que o senhor nasceu em 1928, um pouco antes do meu tempo. Licenciou-se em matemática aos 18 e concluiu o mestrado aos 19. Distinguiu-se como professor em universidades de renome, apesar de nunca chegar a concluir o doutoramento. Mas tornou-se mais famoso como músico. As suas canções eram inteligentes demais para ter grande sucesso comercial e controversas demais para que alguma estação de rádio ou editora pegasse nelas nos anos 50. Por isso Lehrer pagou do bolso a gravação do álbum Songs by Tom Lehrer e vendeu cópias na universidade a admiradores, alunos e amigos.

Em vinte anos de carreira compôs apenas 37 canções e deu somente uns 100 espectáculos. Aborrecia-o cantar a mesma coisa várias vezes e, ao contrário dos músicos que trabalham para editoras, não tinha de escrever uma dúzia de músicas da treta por cada música boa só para encher os álbuns. Compôs músicas para um programa satírico de televisão nos EUA, That Was The Week That Was, que geralmente iam para o ar bastante censuradas.

Lehrer praticamente abandonou a carreira musical no início dos anos 70. Segundo ele, a sátira política tornara-se obsoleta quando Henry Kissinger ganhou o prémio Nobel da paz, em 1973, mas não foi isso que o afastou da música. Deixou de compor e actuar simplesmente porque só compunha e actuava quando lhe apetecia. Se não lhe apetecia, não o fazia.

Para mim é um exemplo claro daquilo que o João Vasco chama «entretimento de excelência»(1), e demonstra bem como as restrições à cópia são irrelevantes para este nível de criatividade.

Deixo abaixo alguns exemplos do Tom Lehrer a dissertar sobre vários temas, à sua maneira.

Matemática:



Química


Religião


Política
(Nota: isto foi durante a guerra fria, e a MLF, Multilateral Force, era um plano dos Americanos de criar uma frota de navios e submarinos com misseis nucleares e tripulações mistas vindas dos vários países da NATO).


Sociedade


Poluição


E pronto, fico por aqui senão ainda ponho tudo o que ele compôs. Mas vale a pena ouvir o resto.

Mais sobre o Tom Lehrer na Wikipedia

1- Comentário em Em números

domingo, dezembro 20, 2009

Treta da semana: telechatos.

Segundo a Lei de Protecção de Dados temos o direito de exigir que os nossos dados «sejam eliminados dos ficheiros de endereços utilizados para marketing» e de nos opormos ao tratamento de dados pessoais «para efeitos de marketing directo ou de qualquer outra forma de prospecção.»(1) Na esperança de poder exercer esses direitos, sempre que me telefonam com promoções e afins eu peço para ser retirado da base de dados de quem me contacta.

O problema é que «O exercício do direito de rectificação e eliminação é exercido directamente junto do responsável pelo tratamento», o que pode estar sujeito a diferentes interpretações legais. Como muitas destas chamadas são feitas por empresas de telemarketing sub-contratadas para isto, quando peço para deixarem de me chatear mandam-me contactar a assistência ao cliente da empresa que os contratou. Da última vez que tentei, com a TV Cabo, esperei um quarto de hora ao telefone antes de desistir. Há um limite para o tempo que quero perder ao telefone só para evitar perder tempo ao telefone.

Um dia recebi seis telefonemas da Portugal Telecom, para grande irritação minha e grande diversão dos meus filhos, que se fartaram de rir a ver-me a atender o telefone cada vez mais chateado. A cada vez disse que não queria receber mais telefonemas promocionais. E a cada vez me disseram para telefonar para a assistência ao cliente. Até que à sexta reclamei que não podia ser assim, que eu tinha o direito de não ser incomodado e que se não me retirassem dessa lista estavam a violar a lei. Não sei se é verdade mas parece que funcionou. Que me lembre não me voltaram a chatear. Até ver.

O último episódio foi com a ZON/Netcabo. Telefonaram-me a dizer que eu podia ficar com mais canais de televisão, passar de uma ligação de 20Mb para 50Mb e pagando menos um euro por mês do que pago agora. Bastava agendar uma visita do técnico para instalar a fibra óptica que a instalação seria gratuita. Eu disse que era uma proposta interessante mas que nunca aceito comprar nada por telefone, por isso depois ia ver à página e logo decidia, ao que o vendedor me disse que assim não tinha os descontos por ser um cliente antigo. Quais descontos, perguntei. Ah, e tal, não respondeu.

Fui ver à página da ZON e está lá tudo exactamente como ele descreveu. Incluindo a instalação gratuita. Mas tem também algo que, pelo telefone, ficou por dizer. É que o tal preço mais barato é uma promoção para o primeiro ano. Depois a mensalidade aumenta cinco euros. Não é muito, e se não fosse o risco de ficar sem os newgroups da Telepac por ter uma gama IP diferente, ou se não estivesse satisfeito com o serviço que tenho, até mudava. Mas mais de 20Mb não me faz falta, não preciso de mais canais de TV sem nada de jeito e incomoda-me o procedimento. Telefonam-me para casa a dar-me informação incompleta para me meter num negócio que pode não ser do meu interesse.

Enquanto que os telechatos são mais incómodos por serem muitos, por cabeça o pior é aquele que vem bater à porta. Começa logo por estender a mão para me cumprimentar, quando não o conheço de lado nenhum. E passou o dia a dar a mão a uma data de gente, a mão que a maioria das pessoas põe à frente da boca quando espirra ou tosse. É claro que custa dizer desculpe, não aperto a mão por causa das gripes e assim. A minha mulher diz que sou mal educado, e até tem razão. Vai contra tudo o que me ensinaram de boas maneiras. Mas aquele estranho só me estende a mão porque isso lhe facilita o trabalho de me vender algo que eu não quero. Não é razoável arriscar a minha saúde por isso.

Para tomar uma decisão devemos primeiro ter em mente o que precisamos. Saber bem o que queremos obter ou que problema queremos resolver. Depois precisamos conhecer as opções que estão ao nosso alcance. Quais as suas vantagens e desvantagens e como contribuem para o nosso objectivo. Só depois podemos finalmente escolher uma das alternativas. O tipo que telefona ou bate à porta vem vender uma solução para um problema que nem sabíamos ter, e diz-nos que é a melhor quando não conhecemos as alternativas. Temos tanta escolha como a água a escorrer pelo ralo.

Para evitar ser enganado por estes vendedores sigo uma regra simples. Só compro coisas quando a iniciativa é minha e nunca quando me as vêm vender. Não só porque acho indecente que me venham incomodar mas também porque não são circunstâncias adequadas para tomar uma decisão racional. Talvez assim venha a perder algum bom negócio mas, até agora, parece-me que não aconteceu. Pelo contrário, julgo que esta regra já me safou de muitos barretes.

Melhor ainda seria toda a gente fazer o mesmo. Se deixássemos todos de comprar coisas impingidas em pouco tempo deixava de haver telechatos. Era um descanso. Infelizmente, é como o spam. Basta uma pequena percentagem cair na esparrela para o negócio compensar.

1- Comissão Nacional de Protecção de Dados, Direitos dos Cidadãos

sexta-feira, dezembro 18, 2009

Em números.

Tenho manifestado neste blog uma oposição radical a qualquer sistema de incentivo à criatividade assente na proibição da cópia ou transformação de material publicado. No lado oposto, alguns comentadores têm apoiado a posição radical que o autor tem o direito de proibir a cópia daquilo que decidiu tornar público. Este post não é para esses. É para os outros, os que estão meio, que sendo contra a repressão legal da cópia privada, lamentam o impacto da “pirataria” na criatividade. Não lamentem mais.

Segundo dados publicados pela British Phonographic Industry e pela Performing Right Society for Music, a queda nas vendas de gravações musicais entre 2004 e 2008 fez baixar o rendimento anual das editoras de mil milhões de libras para 780 milhões de libras. Os artistas também foram afectados e passaram a ganhar menos pela venda de gravações, passando esta fonte de rendimento de 150 para 110 milhões de libras por ano. No entanto, no mesmo período, o rendimento auferido pelos artistas por espectáculos ao vivo aumentou de 430 para 730 milhões de libras por ano, um aumento quase oito vezes maior que a queda no seu rendimento devido à menor venda de discos. Isto porque enquanto que o grosso dos rendimentos pela venda de música gravada vai para as editoras, nos espectáculos quem ganha mais são os artistas.

No total, o volume anual de negócio da indústria musical do Reino Unido aumentou cerca de 10% neste período, devido também ao aumento dos licenciamentos para radiodifusão, publicidade e assim por diante. Isto demonstra que apesar do aumento exponencial da partilha gratuita de ficheiros tem havido um aumento significativo no que os consumidores gastam na música. A grande mudança foi a quem dão o dinheiro. Cada vez menos aos distribuidores e cada vez mais aos artistas.

Pela primeira vez na história, este ano ou no próximo os músicos vão ganhar mais que as editoras. Para alguns – imaginem quem – isto é uma injustiça inaceitável.

Fonte: Times Online, Do music artists fare better in a world with illegal file-sharing?. Via TorrentFreak. Ver também este estudo semelhante acerca da indústria musical sueca: The Swedish Music Industry in Graphs Report

quinta-feira, dezembro 17, 2009

Equívocos.

O Alfredo Dinis propôs-se apontar em breve «Os grandes equívocos do ateísmo contemporâneo»(1). Aguardo com interesse, e queria até dar uma ajudinha começando por sugerir ao Alfredo que evite afirmações como «Estes [os ateus] benfeitores da Humanidade batem-se com uma valentia e uma obsessão semelhante às dos cruzados de outrora». Esta retórica contribui para mais equívocos que aqueles que possa desfazer.

Quando pensamos nos cruzados não nos vem à mente a “obsessão” de publicar livros sobre os mouros ou escrever blogs a favor de uma Jerusalém cristã. Aos cruzados associamos guerra, carnificina e a intolerância violenta que só vem da convicção cega. Que nem sempre é religiosa, mas que fica muito longe da publicação de livros e debates sobre o ateísmo, que é importante não confundir com a invasão armada. Principalmente para os ateus. A julgar pela tradição, se houver uma nova cruzada o mais provável é não ser o meu lado a matar em nome da cruz.

O termo "obsessão" também pode equivocar. O Alfredo, com muitos sacerdotes, dedicou à religião os seus estudos, a carreira profissional e boa parte da sua vida pessoal, privando-se até de constituir família. Eu sei que nos religiosos isto não se chama obsessão mas sim dedicação ou vocação que, segundo os próprios, é totalmente diferente. Mas ao rotular os ateus de obsessivos só porque publicam livros ou escrevem blogs nos tempos livres, o Alfredo pode induzir no leitor dúvidas acerca desta distinção. E a dúvida, parece-me, é a fonte da maior parte daquilo que o Alfredo considera equívoco.

Por isso sugiro pormos de parte metáforas e considerações pessoais acerca do que cada um faz com o seu tempo e, em vez disso, que se foque com clareza os aspectos objectivos da nossa divergência. Como o Alfredo faz a seguir. Escreve o Alfredo que o ateísmo pode «ajudar a eliminar [...] os elementos irracionais e pagãos [das religiões], contribuindo assim para que as religiões sejam cada vez mais genuinamente aquilo que devem ser». Nisto estamos de acordo, apesar das estimativas diferentes acerca do que sobrará das religiões no final desse processo. Infelizmente, adiante o Alfredo contradiz esta sua proposta ao reprovar a crítica a «pormeores anedóticos ou irrelevantes, como são as ‘denúncias’ do que dizem e fazem ‘santos’ e ‘santas’, bruxos e bruxas, videntes profissionais, etc; ou em imagens inacreditáveis de deus».

O Alfredo é um crente esclarecido, culto, que dedicou a vida a reflectir sobre a sua fé. É natural que, para ele, muitas destas críticas não sejam apropriadas. Mas o ateísmo não se faz à medida da fé do Alfredo. O facto trágico é que pelo menos a grande maioria das crenças religiosas é um disparate. Pastores evangélicos em África a mandar matar crianças que acusam de bruxaria não é irrelevante. Milhões de pessoas doarem bens e dinheiro em Fátima, ou noutros santuários, especificamente para pagar os supostos serviços dos santos não é meramente anedótico. O financiamento estatal das religiões, a propaganda aos alegados milagres dos santos, a magia quotidiana de missas e transubstanciações, tudo isso tem alguma relevância. Não só pelo que implicitamente alega acerca dos factos, sem fundamento, como também pelas suas implicações éticas e sociais.

Como muita gente acredita nestas coisas os ateus sentem necessidade de as criticar. Mesmo que estas não sejam as crenças do Alfredo. É certo que, neste diálogo, podemos evitar mencionar aquelas que não importam ao Alfredo. Mas isto apenas se ele enunciar explicitamente os critérios que segue para classificar certas crenças como «elementos irracionais». É que se o tarot da Maia é um “elemento irracional” por só ter um efeito psicológico naqueles que acreditam, é difícil ver como a bênção do padre possa ser classificada de outra forma por alguém que faça uma análise imparcial de ambos.

Quando o Alfredo apontar os grandes equívocos do ateísmo espero que se lembre de duas coisas importantes. Uma é que as crenças religiosas são um conjunto muito mais vasto que aquele que o Alfredo aceita, e inclui muito acerca do qual o Alfredo e os ateus concordam. Por isso é importante, para esclarecer equívocos, que o Alfredo explique concretamente como se pode distinguir aquela pequena parte que ele considera racional.

A outra é que aquilo que estamos a discutir é esse conjunto de alegações acerca dos deuses. Quais as mais plausíveis, quais as que podem contar como conhecimento e quais são apenas especulação, opinião ou desejo. E, para as avaliar, afirmar que deus é assim ou assado é andar às voltas com a conversa, visto que está em causa precisamente como se pode fundamentar essas alegações. O que seria bom para esclarecer equívocos era o Alfredo explicar, objectivamente, como sabe o que diz saber acerca do seu deus.

Depois de começar a escrever este post, que já arrasto há uns dias, descobri que o Ricardo Alves tinha escrito sobre o mesmo tema um post com o mesmo título, no Diário Ateísta. Mas, em nome da diversidade de opinião, da confluência das grandes mentes e, acima de tudo, para não deitar fora o que já tinha escrito, aqui fica este também.

Editado: substituí um "obcecado" por um "obsessivo". Obrigado ao Francisco Burnay por me avisar da diferença.

1- Alfredo Dinis, 9-12-09, Os grandes equívocos do ateísmo contemporâneo.

terça-feira, dezembro 15, 2009

Legal, 9 (ou descubra as diferenças).

Dominique Brueilh, dona de casa e mãe de três filhos, recebeu uma visita da polícia francesa por ter comentado "Ah, a mentirosa" num vídeo onde Nadine Morano, a secretária de estado para a família, foi apanhada a, digamos, reinterpretar os factos*. Morano exigiu a identificação de Brueilh ao seu ISP, pelo registo do endereço de IP, e iniciou um processo por "insulto público a um membro do governo", punível com uma multa superior a dez mil euros (1). Felizmente para a senhora Brueilh a publicidade a esta acção ridícula fez com que a senhora Morano desistisse do processo.

Samantha Tumpach, de Rosemont, nos EUA, passou duas noites na cadeia pelo crime de filmar o aniversário da sua irmã. Foram ao cinema e, juntamente com as fotos da família e a filmagem de todos a cantar os parabéns, dentro da sala de cinema Samantha filmou também um total de quatro minutos de anúncios, apresentações, comentários dos familiares e algumas imagens do filme. Um funcionário chamou a polícia Samantha foi presa. Nos EUA é crime filmar o que se paga para ver no cinema. O caso só acabou no tribunal quando a acusação decidiu desistir da queixa, talvez em parte porque até o director do filme que tinham ido ver afirmou publicamente que aquilo era uma terrível injustiça (2). Pode-se fazer. Mas é proibido.

A BREIN, a agência holandesa anti-piratas, exigiu o encerramento da Fill Threads Database (FTD), uma comunidade que distribui software e organiza uma base de dados para facilitar a procura de ficheiros na Usenet (3). A Usenet foi concebida em 1979 como uma rede distribuída de servidores onde os utilizadores podiam ler e publicar mensagens, "notícias", em categorias definidas (os "newsgrouops"), mas hoje em dia é usada para trocar qualquer ficheiro. Quem for cliente da Telepac ou Netcabo tem acesso gratuito a alguns grupos nacionais, e há serviços internacionais de acesso ilimitado à Usenet por meia dúzia de euros mensais.

A BREIN quer fechar a FTD, mas não por disponibilizar ficheiros. A FTD não distribui conteúdos. Nem sequer é por disponibilizar ligações aos ficheiros, como faz o Pirate Bay, porque a FTD também não tem disso. É apenas uma base de dados onde organizam a informação acerca de dos grupos em que se encontram os ficheiros. A BREIN alega é que é ilegal dizer às pessoas onde há ficheiros "pirateados".

Estes exemplos ilustram a crescente separação entre aquilo que a lei regula e o que a sociedade considera legítimo regular. Esta divergência resulta de aplicar a uma sociedade de informação regras que só foram adequadas quando a informação era centralizada ou estava agarrada a suportes materiais. Quando o que se copiava era livros em papel ou discos em vinil. Quando a comunicação social era controlada por um editor, com profissionais e negócio por trás. Aí fazia algum sentido punir quem acusasse publicamente o político de mentir sem punir o político que mente nem as conversas de café. Porque nessa altura esfera pública dos jornais de da TV estava claramente separada da vida pessoal, e também se podia proibir a impressão de livros sem licença ou a venda de cassetes pirata sem entrar na casa das pessoas a ver quem tinha gravadores com dois decks.

Hoje não se pode proteger monopólios mantendo esta distinção. A informação soltou-se do suporte e do formato. Tanto dados como conversas saem do teclado ou do CD, passam pela fibra óptica, resvalam num satélite e acabam num monitor ou pendisk no outro lado do mundo. E a comunicação passou de "social" para universal. Os políticos podem exercer um monopólio sobre a informação publicada em jornais ou na TV, mas quando qualquer um pode pôr o vídeo no YouTube ou publicar algo num blog isso de nada lhes serve.

A trasladação cega de regras velhas para uma sociedade nova só alarga o âmbito das proibições, sem qualquer vantagem que o compense. O que dantes proibia actos públicos e comerciais hoje proíbe actos pessoais de troca de informação e expressão de opiniões. Cada intromissão destas na vida das pessoas tem um de dois resultados possíveis. Ou é exposto o ridículo e desperdiça-se recursos em tribunais e polícia só para, no fim, fingir que não havia lei. Ou, pior ainda, a lei é mesmo aplicada e o resultado é uma injustiça e contrário ao propósito de haver leis. Seja como for, já não podemos restringir a informação sem a censurar por completo, e a mera conveniência política ou económica não justifica uma medida dessas.

*Era mesmo a mentir, mas não quero a polícia francesa a bater-me à porta.

1- The New York Times, As Web Challenges French Leaders, They Push Back. Se o site pedir um login ou registo, usem o BugMeNot. Obrigado pelo email com a notícia.
2- TorrentFreak, New Moon Pirate Camming Farce Comes To An End
3- TorrentFreak, Anti-Piracy Group Wants To Ban You From Talking About Usenet

domingo, dezembro 13, 2009

Treta da semana: é só não acreditar neste.

Não é razoável reduzir uma forma de encarar a vida, ou um movimento social, apenas ao significado literal de uma palavra. Se bem que ἄθεος queira dizer literalmente "sem deus", Χριστός quer dizer "Ungido" e não devemos concluir daí que o cristianismo é apenas a crença que alguém foi untado com azeite. É incorrecta a ideia que «Ateísmo é só não acreditar em Deus»(1). Não acreditar inclui também pinheiros e recém nascidos. E os meus filhos, que não acreditam em deuses mas também não são ateus. São crianças. Com oito anos ainda estão longe de qualquer ismo.

Esta definição de ateísmo só serve para propaganda dos crentes. Numa sociedade moderna a religião quase não tem poder para reprimir dissidentes, e o impacto da ciência demonstra a vantagem de formar opiniões com fundamento objectivo. Daí o interesse em fazer crer que o fundamento do ateísmo é, como o das religiões, mera questão de crença pessoal. Uns acreditam, outros não. Mas isso é falso. Não acreditar em deuses não é o fundamento do ateísmo. É um sintoma. Para ser crente religioso é preciso ter muita confiança que só existe aquele deus, ou aqueles deuses, e mais nenhum dos outros. Mas uma análise objectiva e imparcial das evidências leva forçosamente à conclusão que nenhum deus proposto até hoje merece essa confiança. É daqui que vem o tal sintoma saliente que faz pôr "ateu" no ateísmo.

Além disso, "Deus" é a alcunha do deus da bíblia. Se o ateísmo fosse apenas não crer nesse deus então a maioria dos religiosos seria ateu. O que é absurdo, mas é um absurdo necessário. Outra característica da sociedade moderna é o convívio de muitas culturas, tornando evidente que ainda há mais crenças que chapéus. O problema disto é fácil de ver na aposta de Pascal, por exemplo. Se Deus existe e não vivermos como cristãos sofreremos para toda a eternidade mas teremos o paraíso se seguirmos o cristianismo. Por outro lado, se Deus não existe pouca diferença faz. Isto justifica ser cristão. A menos que nos ocorra que o mesmo se aplica a qualquer outro dos muitos milhares de deuses que por aí se inventa, qualquer um disposto a fazer a folha a quem acreditar no deus errado. Os crentes por vezes defendem que o número de fieis mostra a verdade da sua religião. O número de religiões refuta cabalmente esse argumento.

Mas se esta definição de ateísmo não é adequada, admito também que não há uma definição rigorosa que o possa ser. O ateísmo não é uma categoria meramente taxonómica, como "mamífero", que possa ser definida ao milímetro por ser indiferente se o cinodonte fica de fora só por causa de um osso da mandíbula. E não é uma categoria com força normativa, como "católico apostólico romano", que mais que identificar quem pensa de certa maneira serve para dizer a cada um de que maneira deve pensar. É um termo, como muitos outros, que descreve algo com alguns atributos característicos mas sem uma fronteira bem definida.

Uma característica que se manifesta, entre outras coisas, pela falta de deuses é a disposição para avaliar alegações factuais em função de evidências objectivas. Daqueles dados que não dependem de se ter fé nisto ou de crer muito naquilo. Isto não faz com que os ateus concordem imediatamente em todas as questões de facto. Todos tomamos decisões com informação incompleta, o que pode levar a diferenças de opinião acerca da realidade. Mas faz com que os ateus concordem na forma como se resolve estas divergências. Com dados objectivos. Nisto distinguem-se dos crentes, para quem há sempre aquela excepção, aquele jeitinho a dar à hipótese da existência de um certo ser que, ao contrário de todas as outras hipóteses, se aceita como um mistério da fé ou algo que o valha.

E em questões de valor os ateus normalmente são-no porque não responsabilizam um deus pelos seus critérios. É verdade que os ateus não têm todos os mesmos valores. Nisto também discordam muito. Mas também aqui concordam num aspecto fundamental. Quem defende algo como bom ou mau, como louvável ou condenável, responsabiliza-se por justificar essa escolha de critérios. Não é aceitável passar a batata quente e dizer que bom e mau são decididos por um livro, profeta ou Grande Chefe.

Isto não chega para criar uma ideologia homogénea ou sequer um grupo bem definido. Muitos que são ateus no sentido de não ter deus preferem chamar-se agnósticos, humanistas, racionalistas, livres pensadores ou algum outro termo que foque outras consequências destas atitudes que não sejam a simples ausência da missa. Mas ainda assim este fundamento é importante. Porque, ao contrário de quem leva os deuses a sério, cada ateu participa na sociedade responsabilizando-se pessoalmente pelos seus valores em vez de culpar um amigo imaginário. E mesmo quando discordam das conclusões acerca dos factos, os ateus concordam que para os averiguar o que conta são dados objectivos e não a mera opinião. Estas são bases importantes para qualquer sociedade livre e democrática.

1- Jairo Entrecosto, num comentário em É oficial

Metáforas (ou censura para totós).

A Transportation Security Administration (TSA) faz parte do Department of Homeland Security. Foi criada depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 para assegurar a segurança dos transportes nos Estados Unidos. Há uns dias disponibilizaram uma versão do seu manual de operações num site governamental sobre oportunidades de emprego e, para não divulgar elementos críticos dos seus procedimentos de segurança, censuraram partes do documento. Para isso acrescentaram ao ficheiro .pdf uns rectângulos pretos sobre o texto a censurar, impedindo toda a gente de ler esses trechos desde que não saiba seleccionar, copiar e colar (1). Porque o texto todo continuava lá, debaixo dos rectângulos.

O problema é comum. Muita gente não percebe que aquilo que vê no computador é fictício. São metáforas(2). Janelas, desktop, a distinção entre ficheiros de imagens, de som ou texto, as pastas, as ligações para "ir" de um sítio para o outro. É tudo faz de conta. São só filas de números. O monitor cria a ilusão de tinta no papel mas essa é apenas uma de muitas formas de representar os bits do ficheiro. E o rectângulo preto por cima é só mais uns números.

Isto vai mais fundo que a incompetência de alguns funcionários públicos. Os legisladores proíbem a alteração de software por parte do comprador e punem a neutralização de restrições digitais. Mas estas acções consistem apenas em fazer contas e substituir valores em listas de números (3).

As regulações que tratam o download de uma maneira e o streaming de outra baseiam-se também na ilusão de uma diferença onde não há nenhuma. Em ambos os casos o nosso computador recebe uma sequência de bytes e guarda-a localmente. A diferença está apenas no utilizador, que no caso do streaming desconhece onde o ficheiro ficou guardado (4). Por outro lado, as metáforas da interface levam o legislador a confundir as sequências de números que descrevem uma obra com a obra em si. Mas a relação entre esses números e a obra é meramente convencional. Tanto podem representar algo semelhante ao que o autor criou como algo completamente diferente (5).

Não devia haver dúvidas. Como os nomes indicam, ficheiros digitais são números e computação é fazer contas. Mas a bonecada de janelas, e a aparência de coisas familiares como papeis escritos, filmes e canções, vai continuar a enganar muita gente. Ao mesmo tempo que aumenta o custo da confusão. Não só para a carreira de funcionários menos cuidadosos e para algumas empresas de distribuição, mas também para a sociedade e para as liberdades de todos nós.

1- Wired, TSA Leaks Sensitive Airport Screening Manual, e BoingBoing, TSA can't redact documents properly, releases s00per s33kr1t operations manual. Via Schneier on Security
2- Neal Stephenson, In the Beginning was the Command Line.
3- Um exemplo antiguinho, a profissionalização do Windows XP Home Edition.
4- Se usarem o Opera para ver um vídeo no YouTube, por exemplo, vão à pasta "Opera\profile\cache", ordenem por data de modificação, e o ficheiro maior entre os mais recentes é o vídeo. Basta copiar para outro lado qualquer e acrescentar a extensão .flv.
5- O Photosounder é um programa que interpreta imagens e sons indiscriminadamente, usando uma representação gráfica dos sons que permite ouvir fotografias como música ou ver música como imagens. E aqui (.pdf) um artigo sobre recuperação de música gravada em discos de vinil usando uma câmara de vídeo e processamento de imagens digitais.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

As provas do Sabino.

O Marcos Sabino criticou-me por ter focado umas estatuetas e não ter mencionado o que o Marcos diz ser «muitas outras evidências inequívocas» dos dinossauros terem convivido com seres humanos. Sugeri por isso que ele indicasse algumas dessas. «Basta referir-se a uma», escreveu o Marcos, «desde que não se esqueça de referir que não é a única existente. […] Pode referir-se, por exemplo, ao dinossauro na américa».

Aqui fica então a prova conclusiva da coexistência de dinossauros com os seres humanos. Como pedido, saliento que não é a única, se bem que, segundo o Marcos, esta seja a melhor. O que não abona muito em favor das outras...

se isto é um dinossauro eu sou criacionista

O painel superior mostra um petróglifo gravado pelos Anasazi, onde agora é o Colorado, algures entre o século VI e XII. O painel inferior mostra a silhueta que o Marcos usou para salientar o que alguns criacionistas julgam ser um dinossauro (1), parecença esta que também chamou a atenção de quem estudou estes petróglifos (1,2). Mas a questão é se um desenho na pedra, mesmo parecendo um dinossauro, é suficiente para concluir que havia dinossauros na América durante a idade média. Eu proponho que não.

Como apontam os criacionistas, não conseguimos explicar aquele desenho. Mas não conseguir explicar algo não quer dizer que tenha uma única explicação. Pelo contrário. Normalmente, a dificuldade é haver mais explicações do que as evidências permitem distinguir. Os petróglifos são representações artísticas e simbólicas que exprimem ideias, crenças religiosas e mitos. Não podendo questionar o autor nem conhecendo a cultura de quem desenhou estas figuras, não podemos saber do que se trata. Se são dois animais sobrepostos, se é um ser mitológico, se é parte de uma história, uma maldição ou um feitiço para transformar cobras em lagartos. Até pode ser um dinossauro, mas pode ser muitas outras coisas.

E é estranho que os dinossauros tivessem tão pouco representados na arte Anasazi se tivessem mesmo convivido com este povo. Os Anasazi desenhavam muitas coisas. Muitos animais, pessoas em várias actividades, até uma tartaruga a tocar flauta – quem sabe "evidência inequívoca" de répteis musicais (3). Se andassem a fugir de tiranossauros ou a caçar brontossauros, seria de esperar mais desenhos sobre isto.

Mas o problema principal é que não podemos inferir a existência de algo apenas porque vemos um desenho que o pareça representar. Não temos «evidências inequívocas» que os egípcios andavam de lado com o pescoço torcido ou que alguns tinham cabeça de crocodilo. Não é legítimo concluir da arte Hindu que havia mulheres com quatro braços. E espero que os arqueólogos que daqui a dez mil anos desenterrarem revistas do Tio Patinhas não sejam tão precipitados como o Marcos e não tirem delas conclusões acerca do nosso aspecto.

Para fundamentar a hipótese que dinossauros viveram ao mesmo tempo que humanos, o Marcos precisa de evidências muito menos ambíguas. Como as que temos para toda a megafauna do Pleistoceno, o período que começou há 1.8 milhões de anos e terminou há 11,500 anos. Neste período, durante o qual surgiu a nossa espécie, os nossos antepassados conviveram com muitos animais de grande porte. Mamutes, tigres dente de sabre, preguiças gigantes, moas, ursos gigantes.

Sabemos isto porque os animais de grande porte tendem a fossilizar mais facilmente – os seus esqueletos são mais resistentes a necrófagos e outros factores que obliteram animais mais pequenos – e porque os seus fósseis são mais fáceis de encontrar. A tíbia de um urso gigante é mais óbvia que a de um pardal, por exemplo. Por isso temos muitos fósseis de animais grandes do período em que viveu o Homem primitivo. Além disso, muitos destes animais viveram dentro da gama de datação pelo carbono 14, e alguns vestígios, como os mamutes da Sibéria, não estão completamente fossilizados, permitindo datá-los com grande rigor.

Isto dá-nos uma ideia bastante completa da fauna no tempo dos nossos antepassados. E nesse grande conjunto de fósseis não há indício nenhum de dinossauros. Nem sequer um dente. Esta evidência paleontológica contra a coexistência de humanos e dinossauros é tão forte que até resiste à Raquel Welch num biquíni de pele. Esse boneco do Marcos, que tanto pode representar um dinossauro como uma cobra a comer um rato, nem sequer faz mossa.

Se isto não convencer o Marcos, apresento-lhe "evidências inequívocas" de ser o legítimo proprietário da ponte Vasco da Gama. E até lhe faço um preço de amigo, se estiver interessado...

evidência inequívoca

1-Marcos Sabino, Os dinossauros e a Bíblia (Parte 9) – A arqueologia confirma: seres humanos viram dinossauros vivos
2- Apologetics Press, A Trip Out West—To See the “Dinosaurs”
3- Petroglyphs.US, Anasazi petroglyphs at New Well

quinta-feira, dezembro 10, 2009

É oficial.

Sou um fanático religioso fundamentalista.

Já me tinham chamado coisas parecidas mas, até agora, tinham sido sempre crentes religiosos para quem "fanatismo" quer dizer criticar as suas crenças. A diferença esta semana é que a sentença foi proferida pelo Presidente da Direcção da Associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português.

«Não tenho qualquer interesse em trocar comentários contigo. A tua obsessão por esta questão raia o fanatismo religioso fundamentalista e inquisitório.» (1)

Obsessão, presumo, porque escrevi uns posts no meu blog e uns comentários no dele. E sou fanático fundamentalista e inquisitório por criticar alguns aspectos daquela associação que me parecem menos correctos. Como chamar "Movimento Ateísta Português" a uma associação que só quer representar alguns ateus, os fundadores terem mais votos que os outros associados e a direcção eleger-se antes da assembleia geral, quando o normal é que uma comissão instaladora admita os sócios que depois elegem democraticamente os órgãos da associação. Mas disse-me assim o Presidente:

«Eu não tenho de te dar qualquer satisfação. Todas as respostas às tuas perguntas já foram deixadas um pouco por todo o lado nestas caixas de comentários» (1)

Infelizmente, as respostas foram "porque sim" ou "não tens nada a ver com isso", o que é pouco satisfatório. Excepto à questão de eleger a direcção antes de admitir associados, que nem um "porque sim" mereceu. Isto não é o que se espera do presidente de uma associação, especialmente de uma dedicada a promover o racionalismo. Mas, por outro lado, é um tipo de resposta que me é familiar, e um indicador fiável da pertinência das críticas.

Críticas que, admito, podem prejudicar o ateísmo português. Talvez, por amor à causa, eu devesse ficar calado, fingir que não havia problema e evitar que vissem os ateus a criticar-se mutuamente. Mas isso seria pôr o ateísmo enquanto ideologia colectiva e institucional à frente do ateísmo pessoal. Da autonomia de pensamento, responsabilidade individual e do apreço pela objectividade dos quais o ateísmo é muitas vezes um sintoma mas quase nunca a causa. Por isso não me parece boa ideia ficar calado só para não criticar quem diz ser do meu clube. Prefiro ser consistente e apontar a treta onde a vejo.

No entanto, como a ironia desta resposta do Ricardo é difícil de superar, voltar a este assunto nos próximos tempos será certamente anti-climático. Por isso prometo não vos aborrecer mais com isto por enquanto. Termino só desejando à PAMAP uma boa primeira assembleia geral, onde será aprovado o plano da direcção. Não só porque a direcção é que tem os votos, mas também porque não adianta de nada reprová-lo, visto que só daqui a cinco anos é que há eleições. Se houver.

OK, OK, calo-me já. Pronto.

1- Ricardo Silvestre, comentários em Massas associativas, no Portal Ateu.

terça-feira, dezembro 08, 2009

Hipóteses.

O Bernardo Motta escreveu recentemente sobre «como a Igreja foi formulando, com base na razão e no testemunho apostólico e escriturístico, uma ideia correcta acerca de Cristo, deixando as heresias para trás.»(1) No seu post mostra um diagrama de várias dessas heresias, com a cronologia do percurso da Igreja Católica e outros derivados do cristianismo judaico. Um exemplo é o nestorianismo, acolhido pela Sagrada Igreja Apostólica Católica Assíria de Leste (2).

Em 431 o imperador Teodósio II convocou o Conselho de Éfeso porque o Patriarca Nestório dizia que Jesus tinha sido humano de corpo mas a sua alma era o Logos divino. Por isso Maria teria apenas dado à luz Cristo e não Deus, que já existia antes de Maria. O Papa Celestino I considerou isto heresia e o conselho foi reunido para debater a questão. Os bispos apoiantes do Papa chegaram primeiro, reuniram rapidamente antes de chegar a oposição e condenaram Nestório. O imperador concordou. Depois chegaram os nestorianos, reuniram-se em separado e condenaram os outros como heréticos. O imperador concordou novamente. Mas depois, baralhado, acabou por mudar novamente de ideias e deu precedência a quem tinha chegado primeiro (3).

Não relato este episódio apenas para ilustrar aquilo que o Bernardo chama de “lógica” e que hoje conhecemos por “politiquice”. A questão fundamental é que não tinham forma de saber se a alma de Jesus era uma alma humana, se era o Logos divino ou se era uma tosta mista. A "lógica", mesmo no sentido coloquial de um método formal de dedução, não permite decidir sobre matérias de facto na ausência de dados. E nenhum testemunho é relevante, nem mesmo se «apostólico ou escrituristico», porque ninguém sabe nada sobre a alma de Jesus. Não há testemunho. Tal como não há quem possa dizer se a natureza humana e divina de Jesus formam duas pessoas ou uma só pessoa com duas naturezas distintas e completas. Ou se a divindade de Jesus é exactamente a mesma de Deus ou apenas semelhante à de Deus. Isto que a Igreja Católica diz ter “descoberto”, e muito mais do mesmo género, é apenas especular no vazio. Não há evidências relevantes que justifiquem favorecer qualquer destas hipóteses.

O Bernardo certamente dirá, como muitos outros, que a alma de Jesus, a sua natureza divina e Deus não são objecto de estudo científico e que, por isso, não se aplicam as regras da ciência. Mas isto confunde o objecto de estudo com as hipóteses formuladas acerca dele. É com as hipóteses que a ciência lida. São as hipóteses que a ciência aceita ou rejeita.

Nenhum objecto de estudo é mais ou menos científico que qualquer outro. Se uma coisa existe, é legítimo tentar conhecê-la. Se não existe, é legítimo tentar saber que não existe. Em qualquer destes casos o conhecimento é o conjunto de ideias que podemos fundamentar objectivamente. Isto é, pela conformidade das ideias aos atributos observáveis do objecto, de forma independente da crença pessoal de qualquer sujeito. A confusão é não notar que aquilo que a ciência manipula são as ideias acerca das coisas e não as coisas em si. São as ideias que a ciência rejeita, aceita, altera e encadeia para formar a rede de teorias, de modelos e de hipóteses a que chamamos conhecimento. O que pode ser ou não ser científico são essas ideias. Não as coisas em si.

Por exemplo, se eu propuser que Deus pintou a minha casa de verde estou a propor um modelo científico, no sentido de ser testável. Se a minha casa não for verde posso rejeitar a hipótese do modelo corresponder à realidade. Se a minha casa for verde posso comparar este modelo a modelos alternativos que expliquem a cor da minha casa com menos entidades sem suporte independente. E durante boa parte da história da ciência Deus foi uma peça central na maioria dos modelos científicos.

Por outro lado, se propuser que o universo surgiu espontaneamente a semana passada, já com tudo o que aparenta uma longa história anterior, como fósseis, a luz das estrelas a chegar à Terra e até as nossas memórias, proponho um modelo que a ciência rejeita por não ser falsificável nem informativo. Ou seja, não são os objectos de estudo que determinam se algo é científico. São as hipóteses que inventamos acerca desses objectos.

Esta distinção é importante quando se discute a existência de qualquer deus porque o que está em causa não são os deuses em si. Esses ou existem ou não existem, independentemente da nossa opinião. O que temos de decidir é se as hipóteses que formulamos são verdadeiras. E, dessas, há duas categorias. As que podemos confrontar com os dados e assim encontrar algumas com fundamento objectivo. E as outras que não podem ter fundamento porque nada há que permita aferir se são verdadeiras ou falsas. A primeira categoria contribui para o conhecimento. A segunda só para o ócio.

O que me traz ao ponto principal deste post. É um erro tentar justificar afirmações acerca da alma de Jesus, do amor de Deus e afins alegando que Jesus é assim ou que Deus é assado. Não se justifica uma afirmação infundada com mais afirmações infundadas acerca do mesmo. Uma afirmação de facto justifica-se com dados objectivos que sejam mais consistentes com a verdade dessa afirmação que com a sua falsidade. O resto é treta.

1- Bernardo Motta, 27-11-09, Heresias cristãs.
2- Wikipedia, Church of the East
3- Wikipedia, First Council of Ephesus e Christology

domingo, dezembro 06, 2009

Evidência criacionista.

O Marcos Sabino está a escrever uma série de posts para demonstrar que os dinossauros viveram com os humanos. Pelo que ele relata, isto terá sido até depois do fictício Dilúvio criacionista. Parece então que Moisés Noé* também levou dinossauros na arca.

A série toda de posts é engraçada, se bem que se torne um pouco monótona de ler. Este post mostra apenas uns exemplos que, segundo o Marcos, serão os mais relevantes. O primeiro item sob o título «Alguns relatos e factos históricos mais importantes:» é:

«1) Marco Polo viveu na China durante 17 anos, no ano de 1271, e reportou que o imperador chinês criava dragões para puxarem as suas carruagens em desfiles;»(1)

Além de "relatos e factos históricos" como este e «Os Vikings utilizavam na proa das suas embarcações cabeças de dragão;», outra prova conclusiva, o Marcos apresenta também evidências arqueológicas. Por exemplo, as estátuas de Acámbro.

«Estas estátuas foram descobertas nos anos 40 pelo alemão Waldamar Julsrud. Depois de descobrir uma estátua no chão, Julsrud contratou vários assistentes (a maioria deles, agricultores locais) para procurarem mais artefactos. Algum tempo depois, Julsrud tinha uma vasta colecção de cerca de 33.000 estátuas.»(2)

Julsrud, um comerciante alemão imigrado no Mexico em 1944, teve a brilhante ideia de oferecer um peso por cada estatueta que lhe trouxessem (3). Esta técnica inovadora e sagaz despertou tal interesse nos agricultores locais que, em pouco tempo, lhe tinham trazido trinta e três mil exemplares. Mesmo sem treino arqueológico, a perícia destes agricultores era tal que as frágeis estatuetas pareciam ter sido feitas na altura. O seu talento envergonharia os arqueólogos treinados que, quando desenterram peças de barro com séculos de idade, geralmente as encontram fragmentadas, riscadas, lascadas e incrustadas de terra e detritos, em vez de novinhas em folha.

Além de provar a presença de dinossauros na história recente do México, estes achados demonstram também o talento arqueológico sub-aproveitado dos agricultores mexicanos. Escreve o Marcos que «não estou a ver meros agricultores locais com conhecimentos artísticos e paleontológicos suficientes para fabricarem estátuas com tanto detalhe.» A imagem abaixo ilustra o conhecimento artístico e paleontológico que o Marcos refere.

Bicho que até um dos meus filhos fazia

Num próximo post o Marcos certamente focará o fabuloso trabalho de William Hanna e Joseph Barbera, dois investigadores americanos famosos pelo estudo detalhado do convívio entre homens primitivos e dinossauros. Mas, enquanto esperamos, sugiro ao Marcos outro tema que certamente beneficiará do espírito crítico, da imparcialidade e do rigor jornalístico que o Marcos aplica ao criacionismo. Como escreve o Marcos, «É caso para perguntar: em que modelo é que o artista se baseou para desenhar» estas coisas. Não só dinossauros, mas também evidências arqueológicas conclusivas das visitas regulares de extraterrestres ao longo da nossa história.

Astronautas, só podeMais ETs

Imagens de: Wikipedia e The Ancient Astronauts Theory.

* Oops. Obrigado ao André Esteves por apontar a gralha. Se bem que, em rigor, haja tantas evidências para a arca de Moisés como para a de Noé...

1- Marcos Sabino, 19-11-09, A Bíblia e os dinossauros (Parte 6) – Relatos históricos sobre dragões
2- Marcos Sabino, 5-12-09, A Bíblia e os dinossauros (Parte 10) – As evidências controversas
3- Wikipedia, Acámbro figures

sábado, dezembro 05, 2009

Treta da semana: iguais, mas uns mais que os outros.

Tenho seguido o percurso da associação Portal Ateu – Movimento Ateístas Português (PAMAP) com interesse e preocupação. Interesse porque sou ateu e porque conheço pessoalmente o Helder Sanches e o Ricardo Silvestre. E preocupação, no fundo, pelas mesmas razões, que me colocam próximo das divergências que os levaram a sair da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) e fundar a PAMAP. O Helder considerava «obrigação [da AAP] ter uma abordagem positiva do ateísmo e demonstrá-lo à sociedade portuguesa, quer seja através de actos públicos de proximidade, quer seja através da organização e participação em debates, publicação de livros, etc.»(1) E ofereceu-se, com o Ricardo, para organizar estas actividades em nome da AAP. A iniciativa é de louvar, se a título pessoal, mas como nenhum ateu consegue representar adequadamente os ateus em geral, o consenso na direcção da AAP foi que este activismo não deve ter mandatários. A AAP não deve servir para mostrar o ateísmo do presidente da comissão de debates, ou algo do género, mas sim o que há de comum no ateísmo dos portugueses. Isto exige prudência, diálogo e, sobretudo, contenção no protagonismo.

A PAMAP tem uma abordagem diferente. Segundo o Helder, não procuram consenso mas representar apenas «os ateus que se sintam representados por nós»(2). Infelizmente, o nome dá a entender que representam o movimento ateísta português, pelo que me preocupa a ideia de ter uns a liderar o ateísmo dos outros. Principalmente depois de ler o regulamento interno da PAMAP, disponível no Portal Ateu (3). Além de uma gralha engraçada*, sugere uma intenção de chefia que me parece pouco compatível com a representação fiel do ateísmo. Diz o artigo 15º :

«1. Número de votos dos sócios:
a) Os sócios “fundadores” da PAMAP por se tornarem sócios na Assembleia-Geral constituinte da PAMAP terão 10 votos em Assembleia Geral,
b) Os sócios que se inscrevam na PAMAP após a Assembleia Geral Constituinte terão direito a 1 voto em Assembleia Geral. Estes sócios terão a denominação de Sócios Escalão 1,
c) Sócios de Escalão 1 que mostrem dedicação e empenho para o sucesso da PAMAP e da promoção do ateísmo, poderão ser convidados pela Direcção da PAMAP a ascenderem a Sócios Escalão 2, onde passarão a ter 5 votos em Assembleia Geral. Esta mudança de escalão será promulgada pela Mesa da Assembleia Geral,»


A 9 de Setembro os sócios fundadores já elegeram, por cinco anos, os órgãos da associação(4), e só na primeira assembleia geral ordinária serão aceites as propostas para novos associados. Os escalões de associados, uns com mais votos que outros, os mandatos de cinco anos e a eleição da direcção antes de admitir sócios é estranhamente anti-democrático. O Helder explicou-me que «Uma associação ateísta é uma associação como outra qualquer» (5), mas no respeito pela transparência, pela troca livre de ideias e pela diversidade de opiniões, penso que uma associação ateísta devia destacar-se da média.

E não para o lado em que a PAMAP se destaca. Segundo o Helder, «Ao contrário de outras organizações, aqui queremos privilegiar o mérito»(5). Não sei porque estar presente na escritura é dez vezes mais meritório que o que faz qualquer outro ateu. Mas o problema fundamental é "privilegiar o mérito" dando mais votos a quem a direcção decide. Imagino o Primeiro Ministro Sócrates propor que se reconheça o mérito dos cidadãos concedendo, à partida, dez votos a cada militante do PS, com o governo depois promovendo ao "escalão 2", com cinco votos, quem o governo julgar ter mérito para isso. Não sei se o Helder iria aplaudir tal medida, mas muita gente interpretaria isto mais como uma forma de prolongar este governo do que de promover o mérito. Sei que uma associação não é um país, nem a sua direcção um governo, mas os princípios democráticos são análogos. A forma mais justa de reconhecer o mérito é todos votarem por igual e deixar o mérito de cada proposta ou candidato transparecer no número de votos.

A outra justificação do Helder é que «Dar o mesmo poder a quem não faz ou não deixa fazer é um tiro no pé da própria associação.»(5) É uma ideia interessante, esta do "poder". Traz-me à mente uma reunião de ateus. Como as da AAP, nas quais o Helder também participou. Um almoço amigável, todos entusiasmados a discutir ideias, a pensar, a discordar e a criticar mas, em conjunto, a debater e a afinar propostas. Nisto, sai-se um com meus amigos, isso é tudo muito bonito, mas como eu é que tenho dez votos vai-se fazer como eu quero.

Um momento de silêncio. Um garfo bate levemente no prato. E desata tudo à gargalhada, uns a bater nas costas do desgraçado que se engasgou com o pão e outros a limpar as lágrimas de riso com o canto do guardanapo. Não sei em que ateus é que o Helder quer usar este "poder" dos dez votos. Os ateus são muito diferentes nas suas opiniões, atitudes e personalidades, mas como ninguém recebe o ateísmo por revelação, os ateus não têm profetas, nem bispos nem papas. No que toca à autoridade sobre o ateísmo, todos os ateus são iguais. Mesmo que alguns digam ser mais iguais que os outros.

*O artigo nono do regulamento interno da PAMAP, pelo menos à data em que escrevo este post, diz «Serão considerados «sócios fundadores» da Associação Ateísta Portuguesa todos os sócios que se tenham inscrito como tal até à data da realização da primeira Assembleia Geral.» Os perigos do copy-paste....

1- Helder Sanches, 19-1-09, Carta aberta à Direcção da AAP
2- A outra.
3- Portal Ateu, PAMAP
4- Portal Ateu, Nasceu a associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português
5- Portal Ateu, Convocatória para a 1ª Assembleia Geral ordinária da PAMAP

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Biiiip!

Graças a um comentário do sxzoeyjbrhg, no post anterior, fui ter ao blog do Richard Wiseman, onde encontrei este vídeo. É uma boa ilustração da diferença entre objectivo e subjectivo. Essa pouca vergonha que vão ouvir está só na vossa mente. Perversos.



Outro exemplo engraçado de como, dando um pouco de liberdade à imaginação da audiência, se corrompe até as coisas mais inocentes.



Repetindo a questão do Wiseman, será que depois de censuradas estas cenas deixam de ser apropriadas para crianças?

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Objectivamente.

O Jairo Entrecosto tem defendido aqui que tanto o sentido da vida como os valores morais são atributos objectivos, respectivamente, da nossa existência e dos nossos actos. Segundo o Jairo, e muitos crentes religiosos, «A questão filosófica é que sem Deus não existe um sentido objectivo para a existência.»(1) A confusão nos conceitos leva à contradição.

Um atributo é objectivo se for propriedade do objecto e subjectivo se depender de um sujeito ou sujeitos. A carga do electrão é uma propriedade objectiva. Se extraterrestres do outro lado da galáxia examinarem electrões vão encontrar a mesma carga porque a carga está no electrão. Não depende do juízo de ninguém. Mas se esses extraterrestres encontrarem riscos na areia com o padrão "branco é a galinha o põe" não vão pensar «ah! é o ovo». O significado desses riscos não é um atributo dos riscos nem pode ser descoberto pela análise dos riscos ou da areia. Resulta de uma convenção entre sujeitos e só descobrindo esses sujeitos e essa convenção é que poderão compreender o significado dos riscos.

O Jairo revela esta confusão quando afirma que «, para evitar confusões peguemos no épico "The [Meaning] of Life" dos Monty [Python]. Por ["meaning"] eu entendo "significado".» Se a vida tem um significado, ou seja, se refere algo mais que a vida em si, este significado não poderá ser uma propriedade da vida como objecto. Terá de vir da relação de algum sujeito, ou sujeitos, com essa vida. Tal como o significado dos riscos na areia, é subjectivo e não objectivo.

O mesmo se passa com os juízos de valor, sejam estéticos ou éticos. Se o Zé afirma "todos os homens devem ter barba" afirma algo que não é objectivo, nem verdadeiro nem falso. Não é uma proposição acerca de um facto nem propõe que "dever ter barba" é propriedade de algum objecto. Simplesmente exprime um valor do Zé, enquanto sujeito. É subjectivo.

É claro que podemos ver este juízo de valor do Zé de forma objectiva considerando o Zé como o nosso objecto de estudo. A sua opinião será então um atributo objectivo do Zé: "O Zé pensa que todos os homens devem ter barba". Esta proposição, objectiva, pode ser verdadeira ou falsa conforme corresponda, ou não, àquilo que o Zé realmente pensa. Mas ao mudar de perspectiva, distanciando-nos da afirmação e vendo este valor como uma uma propriedade do Zé, perdemos o seu carácter normativo. Isto passou a ser apenas uma descrição do que o Zé pensa. É o que acontece com a alegada objectividade do sentido da vida e da moral. A força normativa de qualquer afirmação acerca de sentido, dever, beleza, bem ou mal depende da sua subjectividade. Precisa do sujeito. Assim que a vemos de fora, objectivamente, resta apenas a uma descrição da opinião do sujeito. Que aquele tipo julga que isto deve ser assim é apenas um facto como qualquer outro. Descreve o que é sem dizer o que deve ser.

O curioso é que o Jairo, e muitos como ele, reconhece implicitamente este problema. «A questão filosófica é que sem Deus não existe um sentido objectivo para a existência.» Se o sentido para a existência fosse mesmo objectivo – um atributo do objecto – então é que não seria preciso Deus para nada. Não apontam como questão filosófica que sem deuses não possa haver objectivamente carga no electrão. A carga é propriedade do electrão e, precisamente por isso, não precisa de um sujeito para interpretar o electrão como tendo carga. Deus é o sujeito que dá ao sentido da existência aquela subjectividade que precisa para ter alguma força normativa. Senão era apenas um facto. Objectivo, mas normativamente neutro.

Uma vez que admitimos que para algo ter sentido é preciso que um sujeito lho dê, e que o sentido da vida é subjectivo, então prefiro ser eu a dar sentido à minha. Eu, o sujeito que a vive, em vez de um deus que nem conheço. Mas isto é outra coisa que os crentes também assumem implicitamente, mesmo que não o admitam. E temos evidências disso.

O psicólogo Nicholas Epley, da universidade de Chicago, publicou recentemente um estudo mostrando uma forte correlação entre a opinião dos crentes e a opinião que estes atribuem ao seu deus, em matérias diversas como a pena de morte, aborto e homossexualidade(2). Esta correlação é muito superior à correlação entre as opiniões dos entrevistados e as que estes atribuíam a pessoas célebres do seu país, como George Bush e Bill Gates. Como a correlação não indica qual a causa e qual o efeito, Epley testou também o que acontecia quando essas opiniões mudavam, constatando que quando as pessoas mudam de opinião também muda a opinião que atribuem ao seu deus. Finalmente, mediu a actividade cerebral de voluntários enquanto pensavam acerca da sua opinião, da opinião do seu deus e da opinião de pessoas famosas. As duas primeiras usavam as mesmas partes do cérebro, e a última partes diferentes.

Os crentes religiosos defendem como objectivos o seu sentido da vida e a sua moral, ambos subjectivos. Fazem-no alegando haver um sujeito que torna o subjectivo objectivo. Chamam-lhe "deus". E em Português quase acertam. Basta tirar a primeira e a última letra.

1- Comentário em Sentido.
2- Ed Yong, Creating God in one's own image, via Pharyngula.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Evolução: fósseis vivos.

Fósseis vivos são espécies que se assemelham a fósseis de espécies ancestrais. Os celacantos, Latimeria chalumnae e Latimeria menadoensis, são um exemplo famoso, preservando características de peixes que viveram há uns 400 milhões de anos, por volta da altura em que os primeiros vertebrados começaram a aventurar-se em terra, e que desapareceram do registo fóssil há 65 milhões de anos. Infelizmente, o termo faz algumas pessoas pensar que estas populações não evoluíram. O que é falso.

A classificação de uma espécie como um fóssil vivo deve-se a ser, aos olhos humanos, parecida com os contemporâneos dos seus antepassados. Ou seja, a evolução não alterou as características anatómicas que nos parecem mais salientes. No entanto, quando medimos a evolução ao nível dos genes, os "fósseis vivos" são tão evoluídos como qualquer outro organismo. As duas espécies de celacanto hoje vivas (e conhecidas), uma na costa africana e outra na Indonésia, são parecidas à vista mas são geneticamente muito distintas, indicando que se separaram há cerca de 40 milhões de anos. Se tivéssemos um registo genético dos fósseis veríamos que, ao nível molecular, a evolução destas linhagens foi tão rápida como a de quaisquer outras.

Por isso um factor importante nesta classificação é a nossa tendência para dar mais importância a umas características que a outras. Toda a taxonomia o reflecte. Por exemplo, a ordem Primata tem 350 espécies e surgiu há 60 milhões de anos. A ordem Diptera tem 250.000 espécies e existe há pelo menos 200 milhões de anos. Mas estão no mesmo nível taxonómico porque, para nós, um chimpanzé parece muito diferente de um humano ou de um lémure enquanto moscas e mosquitos parecem todos a mesma coisa. Se os biólogos fossem moscas em vez de primatas, Diptera seria uma classe e Primata não passava de um género.

Mas a preservação de características por longos períodos merece uma explicação além deste enviesamento cognitivo. E, ao contrário do que por vezes se pensa, não pode ser explicada pela ausência de pressões selectivas. Sem pressão selectiva as mutações acumulam-se e eventualmente as características alteram-se. Por isso se um conjunto de características sobrevive numa linhagem por muito milhões de anos é porque as alternativas foram eliminadas. E isso exige selecção.

A selecção que preserva características pode ser mais directa ou mais indirecta. Se as características forem obviamente vantajosas então a explicação é trivial. Não nos surpreende que os peixes tenham brânquias e as tenham mantido durante muitos milhões de anos. Mas, por vezes, as pressões selectivas são menos directas e mais interessantes. O cérebro do golfinho pesa 1.7Kg, cerca de 300g mais que o nosso. Em contraste, o cérebro do tubarão branco pesa cerca de 35g. Não deve ser preciso grande inteligência para sobreviver como predador marinho, e é provável que o tamanho do cérebro do golfinho não se deva apenas às vantagens da inteligência. Uma explicação mais plausível é que o desenvolvimento dos mamíferos impede que mutações aumentem o tamanho do corpo sem aumentar o cérebro. No embrião cresce tudo sincronizado, e alterações nesse processo são normalmente letais. É claro que, uma vez tendo um cérebro grande, é natural que outras adaptações lhe dêem uso. O cachalote, Physeter macrocephalus, há de tirar algum proveito dos seus oito quilos de cérebro.

Este tipo de restrições, relacionando diferentes características, pode explicar a durabilidade de alguns conjuntos de atributos que não sejam claramente vantajosos por si. Mas é preciso mais para explicar porque é que algumas espécies se mantêm, em média, praticamente iguais durante milhões de anos. Paradoxalmente, parece que um factor importante para a estabilidade de uma espécie é a instabilidade dos ambientes que essa espécie ocupa.

Como só uma pequena fracção dos organismos fossiliza, se podemos seguir uma espécie no registo fóssil é porque esta estava bem representada no seu tempo. Seria constituída por várias populações espalhadas por diferentes regiões, cada região favorecendo certas variantes locais. Se esta situação se mantém estável há tempo para que as diferenças entre estas populações se acumulem e a espécie se divida. Uma vez quebrados os elos reprodutivos, as novas espécies tendem a divergir rapidamente.

Mas se o ambiente varia depressa demais o resultado é um remexer constante destas populações. As alterações ambientais levam-nas a deslocar-se, seguindo o seu ambiente preferido. Por exemplo, durante uma glaciação, os habitats de plantas e animais vão-se deslocando gradualmente para zonas mais temperadas. Estes movimentos de populações misturam as variantes regionais de uma espécie que esteja distribuída por vários habitats, homogeneizando-a e mantendo-a estável durante longos períodos. Este mecanismo é confirmado pelo registo fóssil, que revela as variações locais e pontuais esperadas, mesmo durante os períodos de estabilidade média das espécies, e que a diversificação de espécies tende a ser maior quando o ambiente – o clima, por exemplo – se mantém mais estável.

Os fósseis vivos não são nem um mistério insondável nem um exemplo que refute a teoria da evolução. São um dado a explicar de onde podemos gerar modelos compatíveis com esta teoria, testáveis e confirmados pelo que observamos.

A quem estiver interessado numa discussão mais técnica e aprofundada da estabilidade e especiação rápida, recomendo este artigo do Eldrege et. al. The dynamics of evolutionary stasis, Paleobiology, 31(2), 2005, pp. 133–145.

Editado a 3-12 para corrigir um erro ortográfico. Obrigado ao Tuvalkin por o apontar.

segunda-feira, novembro 30, 2009

Sentido.

Deus dá sentido ao universo. Pelo menos, é o que dizem os crentes. Mas não é claro o que isto quer dizer porque esta palavra pode referir orientação, significado, inteligibilidade ou algo que sentimos profundamente. E parece-me que alguns dos sentidos de "sentido" vêm baralhados na religião.

Partes do universo fazem sentido. Nem todas, porque há muito que ainda não compreendemos e que talvez nunca cheguemos a compreender. E, do que compreendemos, muito faz um sentido distante, que não mexe connosco. Sentido sem se sentir. Coisas como o número de estrelas da galáxia, o tamanho do electrão e a duração do universo estão tão fora da nossa capacidade de apreender subjectivamente que só as compreendemos na forma abstracta de representações simbólicas. O universo tem 13,500,000,000 de anos. Grande número. Tão grande que alguns preferem agarrar-se a um livro que o reduza a uns milhares de anos, mais ao alcance da imaginação compreensivelmente limitada dos antigos hebreus e mais dentro daquilo que podemos sentir. Dez mil anos sentimos que é muito tempo. Treze mil milhões de anos não nos diz nada, subjectivamente.

Compreendo que esta distância entre o sentido que a ciência dá às coisas e as coisas que conseguimos sentir desiluda alguns e os leve a imaginar algo mais humano para encontrar o tal sentido. A ciência unifica muitos fenómenos em teorias elegantes e rigorosas, tem grande poder explicativo mas parece demasiado abstracta por nos dizer coisas difíceis de imaginar. A Lua está a trezentos e oitenta mil quilómetros de distância. Tem três mil e quinhentos quilómetros de diâmetro e desloca-se à volta da Terra a quase quatro mil quilómetros por hora. Mesmo para quem sabe isto, são só números. É muito difícil olhar para a Lua e sentir estas dimensões ou sequer algo que se aproxime da imensidão que é até o nosso minúsculo cantinho do universo.

Por isso uma alternativa é encontrar sentido imaginando um deus que é amor. Amor sabemos sentir e podemos imaginar facilmente um ser que ama. Umas vezes caridoso e generoso, outras vezes ciumento e violento. Que age por paixão, ora com gestos fúteis de enorme sacrifício e dedicação, dando a vida só por dar (por amor!), ora exigindo tudo em troca, dedicação total ou o castigo eterno. Enfim, o deus da bíblia. Amor à medida da pequenez humana, sentido como nós o sentimos, com o bom e o mau à mistura.

Mas esta forma de procurar sentido não faz sentido. Sente-se, é verdade, mas não dá nada a compreender. Não esclarece o que observamos nem sequer encaixa com a imensidão do universo e a indiferença com que este nos trata. Este universo, é mais que evidente, não se porta com amor nem se importa connosco ou com coisa nenhuma. A hipótese de um deus que é amor não explica nada. Além disso, é errado julgar que é o deus que dá sentido. Mesmo que existisse tal deus, essa existência seria apenas mais um facto e esse deus seria apenas mais uma coisa, como o Sol, a Lua e as galáxias. O sentido, tanto o de dar a compreender como o de sentir, está nas nossas ideias e não nas coisas em si. A fé, no fundo, não é acerca dos deuses. É acerca da ideia de haver deuses.

Eu prefiro não abdicar do sentido que as coisas fazem só para as sentir. Prefiro não me agarrar a hipóteses sem fundamento nem utilidade explicativa só para despertar alguma emoção de assombro ou conforto. Por um lado porque seria enganar-me propositadamente. Por outro, e principalmente, porque não é preciso. Com um pouco de esforço, e provavelmente não mais que aquele que a fé exige, posso sentir na realidade um sentido tão forte como os que as religiões inventam com os seus deuses. Posso olhar a Lua e as estrelas e sentir algo da magnificência do que estou a ver sem ter de inventar o que estou a ver. Posso-me maravilhar por ser feito de átomos criados dentro de estrelas que explodiram há milhares de milhões de anos e sentir assombro pelo longo processo de evolução que me deu a capacidade de perceber as minhas origens.

É verdade que nunca serei capaz de sentir mais que uma pequena fracção daquilo que devia sentir. A vertigem que sinto, numa noite límpida, ao imaginar a distância a que estão as estrelas fica muito aquém do que devia sentir se a vertigem fosse proporcional à distância. Devia explodir de vertigem. Mas isto apenas demonstra as minhas limitações. Não justifica imaginar um deus de amor só para sentir mais qualquer coisinha.

Finalmente, as perguntas últimas. Qual o sentido disto tudo? Para que serve a nossa existência? E assim por diante. São perguntas fascinantes, mas nenhuma resposta que se encontre por aí poderá ser a resposta certa. Seja num livro sagrado, nas palavras dos deuses ou nas leis da natureza, nada que nos seja dado poderá dizer qual o sentido que isto tem para nós, pois esse terá de vir de cada um. São perguntas para ir respondendo, vivendo.

Em suma, os deuses não dão sentido. As hipóteses acerca deles não explicam nada e, mesmo que seja só para sentir, a realidade é melhor que as religiões que inventamos.