sábado, junho 30, 2007

Treta da semana: Culturalismos.

Numa sociedade moderna convivem várias culturas, grupos de pessoas com tradições e valores que muitas vezes chocam. O multiculturalismo defende o respeito mutuo e a preservação desta diversidade. Os muçulmanos que construam mesquitas à vontade, os hindus que celebrem o casamento como quiserem. O monoculturalismo aconselha cautela. Não apedrejem pessoas só porque têm um amante e não cortem o clitóris às raparigas. E muitos procuram o equilíbrio entre as várias culturas. Não impor a nossa cultura ocidental mas defender as nossas tradições. Respeitar outras culturas sem perder a nossa identidade cultural. E assim por diante.

Mas a cultura, neste sentido, é abstracta e arbitrária. Na cultura Portuguesa incluem os descobrimentos mas não a escravatura, a religião católica mas não a inquisição e a perseguição religiosa, a tourada mas não o trabalho infantil. Agrupam umas pessoas pelo sítio onde nasceram, outras pela religião dos pais, outras por alguns costumes que a família tem. Nada disto tem mal se for só para classificar e organizar a informação. Mas é mau quando faz ver o conflito como sendo entre grupos e culturas. É treta. É entre pessoas.

Quando o pai quer cortar prepúcio ao filho há um conflito de interesses entre o pai e o filho. Não interessa se o pai é gordo, magro, judeu, católico ou simplesmente doido. Nem interessa se o pai dele lhe cortou o prepúcio, e o avô ao pai. O puto não tem nada a ver com isso. Dizer que é questão cultural assume que a criança já nasceu com a cultura enfiada e que não tem o direito de escolher que partes desta cultura lhe interessam e que partes prefere ir buscar a outras culturas. A cultura é muito bonita, mas não se deita fora o prepúcio assim de ânimo leve.

Foca-se a cultura e o grupo e perde-se o mais importante. O indivíduo. O muçulmano tem tanto direito de ser católico como um católico, e ambos o direito de ser ateus. Não é por ter os pais assim ou assado que se tem mais (ou menos) direito a uma ideologia, religião ou comportamento. E é errado dar prioridade a conceitos abstractos como cultura e tradição. Essas coisas não sentem, não sofrem, não desejam, não pensam.

Isto é grave porque qualquer cultura inclui mecanismos de preservação de tradições, de resistência a ideias novas, e de educação das crianças de acordo com os preceitos da cultura. É de esperar que assim seja, porque dura mais a cultura que melhor se preserva. Mas uma boa ideia não precisa da tradição para a justificar, e uma má ideia é má mesmo que seja antiga. Nem sempre é bom preservar a tradição, e é de desconfiar daquilo que se faz só porque sempre se fez.

Dar prioridade ao indivíduo é especialmente importante na educação. Não é correcto assumir que a criança vai seguir os preceitos dos pais. Tem o direito de os seguir, mas também tem o direito de conhecer alternativas para, quando adulta, orientar a sua vida à sua maneira. Não deve haver escolas católicas, judaicas, orientais ou ocidentais porque as crianças não são nada disso. São crianças, e as escolas devem mostrar-lhes a diversidade de opções de uma forma neutra que ensine sem coagir.

Há quem acuse isto de impor a cultura ocidental aos outros. Treta. Esta ideia não se justifica por ser do ocidente. Justifica-se porque quem sofre ou beneficia é sempre a pessoa e nunca a abstracção sociológica. Somos nós que merecemos respeito, e não as idiossincrasias dos nossos antepassados. E o problema principal é uma comunidade impor a sua cultura aos seus próprios membros. Ao contrário do que muitos julgam isto não é bom. É mau. Tão mau como impô-la aos membros de outras comunidades, porque identificarmo-nos com esta ou aquela tradição deve ser um acto voluntário e não mera função do sitio onde nascemos ou do ventre de onde saímos.

A mulher deve andar tapada dos pés à cabeça só se quiser, e não por obrigação ou tradição. A liberdade religiosa deve ser pessoal. Não deve ser a liberdade de obrigar os filhos a ter a mesma religião. As tradições valem pelo que valem. Não devem ganhar pontos por antiguidade. E, acima de tudo, a cultura de cada pessoa deve ser aquilo que ela escolhe, e não um defeito de nascença.

Sodoma e... a treta do costume.

Tem havido um animado debate inter-blogues acerca do sexo anal. Suas implicações políticas, consequências para a saúde pública, e alguns disparates de pseudo-biologia que entram sempre nestas conversas. Talvez dedique um post a estes últimos. Quem estiver interessado tem um resumo da novela neste post do Ricardo Alves no Esquerda Republicana (1). Mas o que me traz ao tema é um post mais recente do João Miranda, no Blasfémias (2):

«A moral que se vai tornando dominante é extremamente puritana perante comportamento com riscos para a saúde e por isso procura penalizar o tabaco e a fast food. Nesses casos a liberdade individual é secundarizada em nome de uma responsabilidade colectiva sobre a saúde individual.[...] As dietas que antecedem o Verão não são muito diferentes do jejum e da abstinência da Quaresma. E a moda do vegetarianismo não é muito diferente da proibição da carne à Sexta-Feira. O progressismo é apenas um processo de redescoberta da religião por uma via mais longa e dolorosa.»

Há uma grande diferença entre aquilo que fazemos voluntariamente e aquilo a que nos sujeitam. Não é aceitável sujeitar o empregado de balcão à sodomia sempre que os clientes o desejem. Não compete ao proprietário do estabelecimento decidir sobre isto, e não é algo que deva fazer parte do contrato de trabalho. A desculpa que ele quis trabalhar ali não serve, pois poucos são completamente livres de escolher onde trabalham.

Há um problema semelhante na obesidade infantil. É óbvio que os principais responsáveis são os pais, mas muito antes da culpa chegar à criança tem que passar pela escola que lhe vende porcarias ou pela publicidade constante na televisão. Não aceitamos publicidade ao tabaco ou ao álcool durante a programação infantil. Proibir a publicidade aos chocolates nesse período seguiria o mesmo princípio.

E o princípio não é proibir os riscos para a saúde. É impedir que se arrisque a saúde de quem não participa de livre vontade. As crianças porque ainda não são responsáveis e os empregados de balcão porque não são livres de escolher um emprego diferente. Não sou contra fazer jejum. Sou contra obrigar a fazer jejum. Não sou contra o sexo anal. Sou contra sodomizar quem não quer. E não sou contra o tabaco. Sou contra que fumem para cima de quem não quer fumar.

1- Ricardo Alves, 27-6-07, A blogosfera delira.
2- João Miranda, 28-6-07, Os "outliers" do politicamente correcto II

sexta-feira, junho 29, 2007

Miscelânea Criacionista: Blá, blá, blá...

Um comentador anónimo, continuando na linha de argumentação de Jónatas Machado (e, ao que parece, na mesma linha de rede e endereço IP), afirmou:

«cientificamente, não existe nenhuma argumento que possa ser consistentemente mobilizado contra o relato do Génesis sobre a criação, a queda, a maldição, o dilúvio, Babel e a dispersão subsequente. Pelo contrário, esta grelha analítica fornece um quadro interpretativo muito plausível da realidade efectivamente observável.»

Trocando por miúdos, diz que a ciência não refuta a bíblia. Engana-se. O dilúvio global é tão compatível com a ciência moderna como a Lua ser feita de queijo. A torre de Babel é tão real como o peixe de Babel. E a queda só explica alguma coisa se tiver sido de cabeça. Mas mesmo que fosse. Vamos supor que um deus acenou a varinha mágica e tudo isto aconteceu sem deixar vestígios. O problema é que este «quadro interpretativo» não serve para nada. Nem para enfeitar serve, este universo das Caldas.

Não faz sentido acreditar em algo só porque não foi refutado. Não vou passar os dias com medo do homem invisível que ninguém pode provar não me perseguir. Para usar o famoso exemplo de Bertrand Russell, é disparate acreditar que há um bule de loiça a orbitar Plutão mesmo que não se prove o contrário. Não podemos viver assumindo como verdadeiro tudo o que não provamos ser falso. Por isso não bastava ao criacionismo ser compatível com a ciência. Era preciso mais. Era preciso evidências.

É evidência para uma hipótese a observação que é consequência dessa hipótese. Se me arrombam a porta a fechadura fica partida, por isso a fechadura partida é evidência de arrombamento. Mas isto quer dizer que a hipótese é refutável pela observação contrária. Se a fechadura não está partida então não arrombaram a porta. E isto os criacionistas não podem arriscar. O criacionismo é fé, não pode ser refutável. Por isso não podem dizer nada mais concreto que abracadabra. No princípio, Deus criou o céu e a Terra, e é melhor não entrar em detalhes.

Sem nada para dizer, têm que falar muito para compensar. Repetem perguntas que já foram respondidas inúmeras vezes. Dizem que a evolução não explica mas também nunca explicam nada com o criacionismo. Afirmam barbaridades como esta de nada na ciência contradizer o dilúvio. Distorcem a ciência chamando «acaso» a qualquer processo natural, como se fosse preciso uma grande sorte para cozer um ovo ou digerir uma maçã. O resultado é só conversa fiada.

O criacionismo não vai a lado nenhum nem empurrado. Querem ver? Senhores criacionistas, vamos assumir a vossa premissa. Deus criou os todos os seres vivos. Agora expliquem como. Não sabem? Então deixem-se de tretas.

quinta-feira, junho 28, 2007

O teste da cebola.

A conversa recente sobre o lixo genético mostrou o problema da definição do termo. Codifica, não codifica, regula, não regula, é transcrito, não é transcrito. Eu propus que o ADN é lixo se não é importante para o organismo. A grande variação da maior parte do ADN entre organismos e espécies indica que anda à deriva, ao sabor das mutações. Só as partes conservadas, uma pequena minoria, é que estão a ser seleccionadas, e por isso só estas devem servir para alguma coisa. Mas pelo Nick Matzke do Panda’s Thumb (1), descobri um teste rápido para aqueles que propõem que todo o ADN é importante para o organismo. O teste da cebola, de T. Ryan Gregory, no Genomicron (2).

Espécies do género Allium, cebolas e alhos, têm um genoma duas a dez vezes maior que o genoma humano. O teste da cebola é simples: quem propuser que não há ADN lixo que explique porque é que a cebola precisa de tanto ADN a mais que nós, e porque é que algumas cebolas precisam de cinco vezes mais ADN que outras.

A melhor explicação para a variabilidade das sequências e para esta diversidade de tamanhos do genoma é que apenas uma pequena parte do ADN contribui para a sobrevivência e reprodução destes organismos. O resto só lá fica porque nada elimina as linhagens com ADN a mais. É como a tralha que vamos metendo na dispensa e nunca usamos. Como ninguém morre por causa disso, vai-se acumulando.

1-Nick Matzke, 22-6-07. Junk DNA, Junk Science, and The Onion Test
2-T. Ryan Gregory, 25-4-07,The Onion Test

quarta-feira, junho 27, 2007

Penicilina.

Muitas bactérias patogénicas têm uma parece celular de peptidoglicano, uma rede de longos polissacáridos (glicano) interligados por curtas cadeias peptídicas A figura abaixo mostra um esquema desta estrutura molecular. Os círculos maiores representam os açúcares dos polissacáridos e os mais pequenos os aminoácidos das cadeias peptídicas (1).

Free Image Hosting by FreeImageHosting.net


A reacção que liga estas cadeias peptídicas é catalisada por transpeptidases. Primeiro, uma destas enzimas liga-se à extremidade da cadeia peptídica, normalmente terminada em duas D-Alaninas. Isto quebra a ligação entre estes dois aminoácidos, liberta uma D-Alanina e deixa a enzima presa à parede celular. Em seguida a enzima liga a cadeia onde está presa a outra cadeia peptídica, criando uma ligação cruzada no peptidoglicano e libertando-se para catalisar nova ligação.

As penicilinas (há várias) interferem nesta reacção. São semelhantes a essa sequência terminal de duas D-Alaninas, e por isso a transpeptidase liga-se fortemente à penicilina. Tal como na síntese do peptidoglicano, a transpeptidase quebra uma ligação química, parte a penicilina em duas e fica presa a uma das partes. Mas agora não tem forma de se livrar da sobra e por isso fica incapaz de continuar o seu trabalho. Sem transpeptidases funcionais não há parede celular, sem parede celular a bactéria rebenta e nós ficamos bons. Foi o que aconteceu em 1944, quando começou o uso generalizado da penicilina. E vivemos felizes para sempre.

Bem, até 1946, quando começaram a aparecer estirpes resistentes. Nos anos 60 já a maior parte da bicharada resistia bem à penicilina, e tem sido meio século de corrida aos antibióticos para nos aguentarmos à frente das bactérias. Os criacionistas dizem que esta evolução não cria informação, que só degenera o genoma e enfraquece os organismos. Antes fosse. Com a proliferação de estirpes multi-resistentes, se isto fosse verdade já estava tudo tão degenerado que ninguém apanhava infecções. Infelizmente, é treta. E uma das formas de resistência à penicilina é um bom exemplo.

Muitas bactérias resistentes produzem enzimas que degradam a penicilina. Isto é uma capacidade nova. Não é degeneração ou perda de uma capacidade antiga. Estas enzimas, as beta-lactamases, são versões modificadas das transpeptidases. Por duplicação e mutação algumas bactérias adquiriram variantes das transpeptídases que fazem quase o mesmo, ligando-se à penicilina e quebrando uma ligação, mas que não ficam agarradas às sobras e rapidamente se libertam para destruir mais moléculas de penicilina. Com várias cópias e variantes destes genes uma bactéria pode resistir a muitos antibióticos diferentes.

Para mais detalhes recomendo a excelente série de posts do Laurence Moran no Sandwalk (2), sobre a penicilina e a resistência a estes antibióticos. Aqui quis apenas dar outro exemplo que contradiz o criacionismo. É falso que as mutações só façam perder capacidades. É falso que as mutações não possam criar novos genes. Para o debate com os criacionistas não adianta dizê-lo nem mostrar evidências. Eles não querem dialogar. Querem rezar, repetindo sempre as mesmas coisas e tentando não ouvir nada do que se lhes diz. Mas pode ser que ajude a criar resistências, «enzimas mentais» para destruir mais umas tretas criacionistas.

1- Wikipedia, Peptidoglycan
2- Bacteria Have Cell Walls, How Penicillin Works to Kill Bacteria, Penicillin Resistance in Bacteria: Before 1960, Penicillin Resistance in Bacteria: After 1960

segunda-feira, junho 25, 2007

Miscelânea Criacionista: A complexidade.

Outro argumento criacionista a favor de um criador inteligente é a complexidade dos seres vivos, especialmente os humanos. Dezenas de milhares de genes numa enorme rede de interacções que ainda mal começámos a desvendar. Biliões de células organizadas em tecidos e órgãos. Imensa complexidade. Mas é errada a premissa criacionista que qualquer complexidade indica desígnio. Um fio emaranhado é mais complexo que um novelo. Uma faca de pedra polida tem uma forma mais simples que a rocha original, irregular e assimétrica. O que temos que considerar não é se os seres vivos são complexos – são – mas se têm a complexidade que se espera de um design inteligente. E essa não têm.

Normalmente, o propósito de algo concebido com inteligência é aparente no próprio design. Uma espada, um automóvel, uma muralha de pedra, uma fábrica de rolhas de cortiça. Mas nos seres vivos não. Peixes com pulmões, moscas, pinguins, trezentas mil espécies de escaravelho. Uma diversidade enorme sem que se vislumbre um propósito, nem na vida como um todo nem em cada espécie. Não se pode garantir a ausência de propósito, mas esta complexidade caótica não sugere uma criação inteligente. Pelo contrário.

Também se espera que a criação inteligente resolva problemas racionalmente, com ordem e lógica. Nos veículos usamos rodas, esquis ou asas conforme o meio por onde se deslocam. Nos animais é uma confusão. As asas do pinguim são barbatanas. As barbatanas do peixe voador são asas. As patas do esquilo voador são asas. As asas da avestruz são um casaco com garras. Os dedos dos cavalos são pés. Os pés dos orangutangos são mãos. Não há inteligência nisto. É apenas o que se espera da evolução, de um processo natural empurrado por mutações aleatórias e vagueando ao sabor de tudo o que afecta a reprodução dos organismos.

Finalmente, da inteligência espera-se uma padronização de elementos. Os moveis da IKEA são um bom exemplo. O mesmo parafuso ou dobradiça serve em muitas situações diferentes, sem precisar de qualquer modificação. Este indicador do bom design inteligente é pouco óbvio na nossa tecnologia porque há muitos criadores, competem entre si, e o seu conhecimento é imperfeito. O progresso, as modas e outras forças de mercado forçam a que haja mais diversidade do que haveria se fosse tudo criado pelo mesmo criador. Mas em máquinas criadas por uma inteligência suprema espera-se ver a mesma peça em todas as situações em que seja a melhor solução.

Não é o que se observa na natureza. Os sistemas biológicos estão pejados de análogos dos parafusos, proteínas que desempenham o mesmo papel em organismos diferentes. São todas diferentes. É como se cada máquina tivesse o seu tipo de parafuso, e não houvesse dois modelos diferentes com parafusos iguais. Isto é inconcebível num sistema criado com inteligência. Mais uma vez, é o padrão esperado por um lento acumular de mutações aleatórias seleccionadas pela reprodução dos organismos.

A complexidade da vida na Terra é como a complexidade dos flocos de neve, das tempestades, das correntes oceânicas, dos diamantes ou do fluxo turbulento. É a complexidade de processos naturais sem propósito nem inteligência. E o contrário do que se esperava de um acto metódico, racional e deliberado. Design incompetente? Talvez. Design inteligente está fora de questão.

domingo, junho 24, 2007

Miscelânea Criacionista: A função do ADN.

Um gene, uma pequena parte de uma molécula de ADN, interage com outras moléculas desencadeando reacções químicas que, eventualmente, fazem com que os olhos sejam azuis. Se o gene fosse diferente os olhos seriam castanhos. Um grão de areia é atraído pela Terra, colide com outros grãos de areia e passa por um buraco da peneira. Se o grão fosse maior teria ficado na peneira.

Dizer que o gene tem a função de dar cor azul aos olhos é como dizer que o grão de areia tem a função de passar pela peneira. É errado. Mas no caso do gene é um erro conveniente. Dennet chama design stance(1) a esta atitude de ver algo como concebido para um propósito mesmo que não o seja. É útil porque permite ignorar os detalhes e reter facilmente algo que importa. Não precisamos saber toda a bioquímica entre o gene e o olho para perceber a relação entre estes. Basta imaginar que o gene serve para fazer o olho azul. Mas não podemos esquecer que este propósito e função são imaginação nossa. Nem o grão de areia foi criado para passar a peneira nem o gene foi concebido para fazer o olho azul.

Quando se diz que há um código genético, que um gene tem uma função e que as asas servem para voar estamos a usar um truque cognitivo para perceber alguns aspectos sem considerar detalhes. Mas os criacionistas levam o truque à letra e deduzem que há mesmo uma mensagem escrita no ADN, que um criador fez cada gene e que cola as asas de cada mosca*. É disparate. E nem se aplica à maior parte do ADN. Cerca de 95% do nosso ADN é lixo. Não faz nada.

Os criacionistas afirmam que constantemente se descobre o papel importante de novas regiões no ADN humano ou de outros seres. É verdade. Mas não é este o lixo. 2% do nosso ADN especifica a sequência de aminoácidos das nossas proteínas. Estes trechos são fáceis de identificar, e percebemos bem o que fazem. 3%, aproximadamente, são importantes na regulação dos genes, entre outras coisas. A actividade destas partes do ADN é mal compreendida, mas sabemos que são importantes.

O resto não serve para nada, e também sabemos que não serve para nada. Porque em 95% do nosso ADN as mutações não têm efeito. Isso é evidente quando comparamos as sequências de ADN de indivíduos diferentes. Em 5% do ADN as sequências são conservadas, são muito semelhante entre todos. Isto revela uma pressão selectiva que elimina as mutações. O organismo com diferenças nestes sítios normalmente não se reproduz, ou nem sobrevive, e essas diferenças perdem-se da população. Mas nos outros 95% há uma grande diversidade, o que é esperado numa evolução neutra, pelo acumular de mutações que não têm efeito no sucesso reprodutivo. Com o passar das gerações, estas regiões alteram-se milhares de vezes mais que a minoria de 5% do ADN que faz alguma coisa.

Esta pequena parte do ADN pode ser descrita como uma máquina que desempenha uma função. Mas isto é apenas uma forma sucinta de explicar alguns aspectos. É como o riacho correr alegremente ou o mar estar zangado. Não é para levar à letra. E com 95% de lixo é óbvio que o ADN resulta de um processo sem inteligência. Quando uma chuvada enche o balde que deixámos no jardim também não dizemos que alguém apontou as nuvens. Basta olhar em volta, tudo alagado, para ver a falta de pontaria.

* Os criacionistas não afirmam isto, mas deduz-se dos seus argumentos. A probabilidade de uma mosca, por acaso, ficar com as asas certas no sitio certo é muito reduzida. A probabilidade de isso acontecer a biliões de moscas ao mesmo tempo é virtualmente nula. Por isso, segundo a lógica criacionista, tem que haver um Criador com muita paciência e tempo livre a colar cada par de asinhas.

1-Wikipedia, Intentional Stance.

sexta-feira, junho 22, 2007

Diálogo difícil, parte 3.

Usei a teologia católica como exemplo das dificuldades de diálogo entre a fé e a descrença por causa de um post do Bernardo Motta no blog Espectadores (1). Mas o criacionismo é outro bom exemplo. Ambas as crenças partem de pressupostos que só os crentes aceitam. O católico assume a existência do seu deus trinitário, a virgindade de Maria, a infalibilidade papal. O criacionista assume que a bíblia é literalmente verdade em tudo. Nenhum está disposto a procurar um ponto de partida em que haja acordo com o descrente.

E nenhum aceita as ferramentas do diálogo. Rejeitam as observações que partilhamos, o católico alegando ser um problema «supra empírico» e o criacionista insistindo que é tudo questão de interpretação. E rejeitam a razão, o católico afirmando que a fé a «transcende» e o criacionista inventando milagres sempre que cai em contradição.

Nesta última parte proponho que quem fala da sua fé não quer o diálogo. E até compreendo porquê. Há assuntos que também não discuto. Gosto mais de chocolate que de baunilha. Não me ocorre qualquer facto que um diálogo me revele que faça a baunilha saber melhor que o chocolate. Nem consigo dialogar com quem considere bom sofrer. A premissa que sofrer é mau é tão fundamental para mim que não vou conseguir recuar até um ponto de entendimento. O melhor que posso fazer é dar uma pisadela ao meu interlocutor, para que se sinta melhor.

Por isso compreendo o crente que encara a fé como um valor pessoal e não está disposto a discuti-la. Mas isto só faz sentido em questões de valor, e nunca em questões de facto. Eu abomino maus tratos a crianças, mas a razão obriga-me a admitir que possam ocorrer. Não é por detestar algo que vou concluir que não existe. É este o erro de alguns crentes, extrapolar de um juízo de valor para uma afirmação de facto.

Deus é bom e é bom que exista e é bom acreditar nele. Seja. Gostos não se discutem. Mas isso não quer dizer que exista mesmo. Confundir o valor pessoal da fé com a sua adequação à realidade põe o crente numa situação difícil. Como matéria de facto exige abertura ao diálogo, mas sendo matéria de valor não permite ceder terreno e não deixa encontrar um ponto de consenso onde encetar esse diálogo. Um comentário anónimo revela o resultado (2):

«O Ludwig está prostrado, rendido,[...] Ele gostaria de não ter que confrontar os seus argumentos com os argumentos criacionistas. Preferiria uma separação de blogs. [...]Neste momento, o tempo é de confronto directo e os criacionistas não temem o confronto. Pelo contrário. [...] Para o Ludwig, [...] desespero de causa [...]Que festa»

E assim por diante. Oitocentas palavras de confusão entre juízos e factos, desprovido de algo que se possa discutir. É o mesmo que gritar «Viva o Benfica!» duzentas e sessenta vezes. Uns concordam, outros não, mas não é diálogo.

É esta diferença de atitude que contrasta ciência e religião. A ciência é uma actividade descrente baseada no diálogo. Valoriza a opinião discordante que prevalece por ser consequência racional de premissas aceites por todos, principalmente observações que todos podem partilhar. A religião é um monólogo a dois. O crente fala com o seu deus com ritual e repetição, dizendo sempre a mesma coisa na esperança que se torne verdade. O deus fala com o crente por decreto. O livro sagrado tem que ser levado à letra ou interpretado pelo representante oficial do deus. A dissensão é punível. É pecado.

É fácil dialogar com o crente que não discute a sua fé. Discute-se outras coisas, por vezes bem interessantes, e deixa-se a fé em paz. Mas só é diálogo se for sem fé, e só é fé se não admitir diálogo.

1- Bernardo Motta, 13-6-07, Filosofia para a sala de aula
2- O caso do criacionista anónimo.
Episódios anteriores:
Parte 1
Parte 2

quinta-feira, junho 21, 2007

Coisas fantásticas...

Ontem às cinco e meia da tarde fiquei sem net. O modem encontrava o sinal da Netcabo, não tinha problemas com ruído ou com a intensidade do sinal, mas não conseguia negociar a ligação. Fiz reboot ao modem, tirei o repartidor, desliguei e liguei fios. Nada.

Depois do jantar telefonei à assistência e uma senhora simpática mandou-me fazer o que eu já tinha feito. Tornei a tirar fios, repor fios, desligar, ligar. Não estranhei a falta de melhoria, apesar da simpatia da senhora. Disse-me então que ia dar conhecimento do problema e que um técnico me contactaria dentro de uma hora. Nem uma, nem duas, nem sei bem quantas porque hoje de manhã decidi ligar para o número que ela me tinha dado para a eventualidade do problema não ficar resolvido. Até parece que tinha adivinhado...

O senhor de hoje de manhã, igualmente simpático, informou-me que, de facto, o meu modem não conseguia ligação. O diagnóstico não me impressionou, mas devo dizer que acertou em cheio. Disse-me então que devia ser um problema de sinal, e que ia mandar cá um técnico para ver isso e, já agora, substituir o meu modem por um novo, gratuitamente. É que estavam a alterar os protocolos na rede e em breve o meu modem ia deixar de ser compatível. Em breve? perguntei. Não será esse o problema? Não, disse ele, é do sinal. Hmmm... pensei eu.

O técnico veio umas horas mais tarde e substituiu o modem. Sinal? Nah, é o modem que já não é compatível. Funcionou tudo à primeira.

Eu não sou de atribuir a má fé o que se pode explicar por incompetência. É uma empresa grande, e pode ser que não saibam quando têm que substituir os modems. Mas ocorre-me que se eles dizem ao cliente que tem que mudar de modem, então além do modem têm que pagar o técnico que o vai substituir. Mas se mudam o sistema e esperam que o cliente se queixe sempre se divertem a mandar tirar e pôr fios, cobram a deslocação e mão de obra, e ainda fazem um figurão por trocar o modem de borla.

Há coisas fantásticas, não há?

quarta-feira, junho 20, 2007

O caso do criacionista anónimo.

Era uma tarde chuvosa de Junho. Estranho, mas era mesmo. Chover em Junho, vejam lá. Mais estranho ainda, entre as duas e um quarto e as duas e meia surgiram sete comentários anónimos a defender o criacionismo. Bem, três. É que um foi repetido cinco vezes, num abuso característico do copy-paste. Incluindo duas vezes como comentário ao mesmo post. Um post com mais de dois meses. Só notei porque recebo os comentários por email. Há coisas difíceis de compreender. E não me refiro à chuva em Junho...

Ah, nada como um pouco de spam criacionista depois do almoço. Isto foi ontem. Hoje, de novo à carga. Ao menos num post mais recente (1), e já sem copy-paste. Progresso, sem dúvida. Evolução, diria mesmo. O conteúdo, infelizmente, não sai da cepa torta:

«Eles afirmam que o Universo surgiu por acaso, mas a ciência não consegue discernir a causa do hipotético Big Bang.»

Meu caro anónimo criacionista. Decida-se. Ou nos acusa de dizer que foi por acaso, ou nos exige que expliquemos as causas. Os dois ao mesmo tempo é que não. É contradição, e isso é convosco. Se querem causas para o acaso procurem na arca de Noé, nos bolsos da senhora que se transformou em sal ou na corneta de Jericó. E se não encontrarem, inventem. Não seria a primeira vez...

Estou disposto e interessado em discutir o criacionismo. Merece ser debatido, para que se veja bem o que é. Mas se quer colar cinco vezes o mesmo texto de 500 palavras (o dobro deste post), sugiro que crie um blog para esse efeito e volte aqui quando estiver mais aliviado e disposto a um diálogo produtivo.

1- Diálogo difícil, parte 2

É o que eu faço!

Mais ou menos. Menos. Menos os supercomputadores e os gráficos xpto. Mas, basicamente, é isto. Ciência in silico.



Não destruo galáxias nem expludo bombas, mas também já fiz uns bonecos engraçados com as proteínas. Abaixo à esquerda o dímero da desulforedoxina, uma pequena proteína da bactéria Desulfovibrio gigas. À direita a reductase do superóxido, de Treponema pallidum. Sim, a bactéria da sífilis. Mas não mexi no bicho, só usei as coordenadas da estrutura.

Free Image Hosting by FreeImageHosting.net Free Image Hosting by FreeImageHosting.net
(Clique para ver maior)

Com uma pequena alteração no programa de modelação (1) exportei as estruturas para o POV-Ray (2) e o resto foi o computador que fez. Isto é que é trabalhar...

Estas imagens foram para a exposição Proteins we Love, em Março, na Faculdade de Ciências e Tecnologia. São mais artísticas que realistas; tanto quanto sabemos as proteínas não parecem berlindes deformados. Mas como são vinte vezes menores que o comprimento de onda da luz visível qualquer representação visual é irrealista. Errado por errado, ao menos que nos divirta.

Atrai-me esta forma de fazer ciência porque torna explícito o que é o conhecimento. Modelos abstractos de onde tiramos conclusões, previsões, ou bonecos giros, mas sempre cientes que nem tudo no modelo representa fielmente a realidade. Sem modelos não há compreensão, e sem observação não há nada para compreender.

Atrai-me também porque não tenho que lavar a loiça do laboratório. Essa parte era uma seca...

Obrigado ao João Moedas do Terra Que Gira pelo link do vídeo.

1- Chemera.
2-POV-ray

Diálogo difícil, parte 2.

Outra dificuldade no diálogo com os crentes é basearem os seus argumentos em extremos. Tudo ou se prova ou se refuta, tudo é axioma, fé e dogma. Em parte, isto é consequência de confundir a prova científica com a prova da dedução lógica. Já falei disso antes (1), por isso adianto aqui apenas que a prova científica é no sentido de provar um bolo ou um fato. É testar, não é como provar um teorema. Esta insistência nos extremos faz perder toda a gama de possibilidades intermédias, e leva a erros como este comentário do Bernardo Motta:

«A descrença no metafísico é a crença do ateu. É o seu ponto de partida. O seu axioma. Aquilo que o ateu não está disposto a abdicar.»

Não é nada disso. A careca não é uma cabeleira e a descrença não é uma crença. Há muitas formas de encarar uma proposição. Axiomas, dogmas, opiniões, conjecturas, hipóteses, palpites, disparates. Ver apenas fé a favor e fé contra faz perder toda a gama da rejeição confiante, passando pela dúvida, a desconfiança moderada, até à aceitação relutante ou confiante.

A metafísica foi o que Aristóteles escreveu depois da física. Física era acerca da matéria, metafísica acerca das leis que governam a realidade, do propósito do universo, e assim por diante. Hoje em dia partes do que era metafísica estão no domínio da física, outras no domínio da filosofia, outras no domínio do disparate. Rejeito estas últimas, mas não por crença dogmática. Por descrença. Pela mesma razão que não estou em pânico com medo da bomba debaixo da minha cadeira. Se não há evidências de bomba também não se justifica o pânico. Mas estou disposto a abdicar, e a entrar em pânico, assim que as evidências o justifiquem.

Este extremismo também perde de vista os mecanismos pelos quais formamos opiniões. Noutro comentário, o Bernardo Motta dá como condição para a fé:

«ter confiança nos testemunhos das religiões sérias: confiança em pessoas concretas, que viveram experiências concretas, cuja explicação empírica não existe porque não experienciaram nada de puramente empírico»

Isto assume que se tem confiança em algo isolado, numa pessoa ou numa hipótese. É falso. Eu nunca vi o meu pai bebé nem tartaruga. Se o meu pai me disser que já foi bebé eu acredito que sim. Mas se me disser que já foi tartaruga eu duvido da afirmação e da sua sanidade. Não é uma questão simples de confiar no meu pai. Não se reduz aos extremos de confio ou não confio. É a tarefa mais complexa de comparar a afirmação com a imagem coerente que eu tenho da realidade, testar (a tal prova) a sua compatibilidade, e decidir, no caso de serem incompatíveis, se revejo o modelo ou rejeito a afirmação. O meu modelo é compatível com um bebé crescer e envelhecer, mas incompatível com o meu pai ter sido tartaruga. Como as evidências em que apoio o modelo (com que o provei, no sentido de testar) são mais sólidas que a afirmação que o meu pai foi tartaruga eu rejeito a afirmação. Mesmo vinda de alguém em quem normalmente confio.

A proposta de «ter confiança nos testemunhos» é inaceitável porque exige uma confiança extrema que ignora outros factores. A confiança sensata depende de como o testemunho encaixa num modelo assente em evidências. A confiança cega que os crentes defendem não pode ser base para um diálogo. É arbitrária. Porquê confiar naquele testemunho e não naquele outro que o contradiz?

O diálogo tem que assentar no que é partilhado pelos intervenientes: ideias com as quais concordam, o que observam do mundo que os rodeia, e a razão, o encadear lógico de premissas e conclusões. Só assim é possível resolver divergências de uma forma racional e pacífica. Mas o crente parte de premissas que já sabe que o ateu rejeita. Alega que nada de empírico é relevante, pondo de parte todas as observações que possa partilhar com o interlocutor. E, finalmente, afirma que a fé transcende a razão. O que sobra? Nada. É esse o diálogo...

Nota: crentes há muitos. Por «crente» aqui refiro-me especificamente ao crente defensor da teologia Católica e afins. Kierkegaard, por exemplo, ia concordar comigo que a sensatez é o oposto da fé, que a fé é cega e sem razões, e que o diálogo é impossível. Mas acrescentaria que assim é que deve ser.

1- Eu, 25-11-06, Provado cientificamente.

segunda-feira, junho 18, 2007

Treta da Semana: A verborreia.

Há dias passou por mim um carro com altifalantes. Ouvi a voz aguda a apregoar «...enorme prazer que a Câmara Municipal de Odivelas convida» e, mais grave, «todos os munícipes a assistir ao mais prestigiado espectáculo...». E pronto. Dobrou a esquina e fiquei na mesma. Dez segundos de conversa fiada a cinquenta quilómetros por hora são cento e quarenta metros. Uma conta simples que evitava desperdiçar tempo e gasolina.

No LIDL uma gravação pede «o favor de utilizar a saída pelas caixas», fugindo ao mais económico e correcto «sair». Efectuamos pagamentos em vez de pagar e visionamos em vez de ver. Nos jornais, lemos frases como este simpático puzzle de nove peças:

«O apartamento de onde desapareceu Madeleine McCann, a 3 de Maio, no The Ocean Club, Praia da Luz, e no qual passava férias, foi vendido na passada semana pela proprietária, de nacionalidade inglesa, a um casal também inglês, segundo apurou o DN.» (1)

No mesmo jornal, o João César das Neves demonstra que escrever artigos de opinião é como tirar números no bingo:

«O combate contra o cristianismo é um dos mais vastos, sistemáticos e duradouros de sempre. Desde a crucificação segue múltiplos propósitos, formas, atitudes e um só objectivo. Hoje a campanha adquiriu tons específicos, especial agressividade e profundo embuste.»(2)

Temos aqui um pouco de tudo. A agressividade é especial. O tons adquiridos são específicos. O embuste é profundo, o combate é vasto, sistemático e duradouro e segue múltiplos propósitos mas, curiosamente, um só objectivo. Não fica claro como conciliar vários propósitos num só objectivo, mas com isto certamente completou um cartão.

Em casos como o João César das Neves a verborreia sempre limita a densidade de disparates, com a palha a roubar espaço à treta nos interstícios. Mas, em geral, incomoda-me a falta de consideração pelo leitor ou ouvinte. As palavras desnecessárias só dão trabalho a ler e fazem perder tempo. As frases mal estruturadas mostram que o importante era pôr as palavras cá fora e não quem as quer pôr de novo lá dentro. Termos confusos e ambíguos proclamam «não tenho nada de jeito a dizer mas ouçam-me à mesma». E o que não dá para dizer em cento e quarenta metros não é para apregoar de carro. Ou estarão à espera que vamos a correr atrás para ouvir o resto?

Quem escreve para outros lerem devia ler aquilo que escreve e apagar pelo menos um terço antes da versão final. É o que eu faço. Não garanto que saia alguma coisa de jeito, mas imaginem o lixo que isto era se não o fizesse... Assim sempre incomodo menos.

1- Diário de Notícias, 18-6-07, Apartamento ocupado por Maddie foi vendido
2- João César das Neves, 18-6-07, Imposturas Anticristãs

Diálogo difícil, parte 1.

O Bernardo Motta, no blog Espectadores, falou da dificuldade de diálogo entre crentes e ateus e revelou bem as causas desta dificuldade. Mas talvez não da forma como pretendia. O Bernardo aponta, correctamente, que «não é possível raciocinar nem expor um raciocínio sem considerar primeiro qual é o nosso ponto de partida»(1). Sim, temos que partir de algum lado. Mas o Bernardo exige demais:

« Mas mesmo o céptico moderado deve habituar-se a fixar os seus pressupostos: a dizer em que é que acredita. Quais os seus "dogmas"? Quais os pressupostos dos quais não duvida e que não pretende demonstrar? Quais os seus axiomas?».

Dogmas? Axiomas? Não duvida? Não... é apenas um ponto de partida, não é uma profissão de fé. Não é preciso esse exagero. Pior ainda, o que o Bernardo exige como condição necessária depois toma como condição suficiente. Assim que um argumento parte de um dogma que não se pretende demonstrar, passa a ser um «tipo de bom senso do crente, este tipo de sensatez pística».

O objectivo do diálogo é conciliar posições diferentes. Cada participante conduz os interlocutores a uma conclusão através de um raciocínio que estes aceitem. O ponto de partida é simplesmente algo aceite sem argumento. Não precisa ser dogma, nem é bom que seja. Tem é que ser aceite. Ao dialogar com um crente, «Deus não existe» nunca será aceite como premissa. Pode ter os requisitos que o Bernardo exige, de um dogma que não pretendo demonstrar, mas não se consegue dialogar partindo de um ponto de discórdia.

Temos que partir daquilo em que concordamos. Por exemplo, que Odin não é um deus de verdade. Não é irrefutável, não é dogma, não é algo que eu não pretenda demonstrar ou não possa justificar. Mas é uma opinião que partilho com o Bernardo e com muitos outros crentes. É um bom ponto de partida para um diálogo porque não precisamos perder tempo a discuti-lo. Outra premissa útil é que uma longa tradição religiosa considerou Odin um deus de verdade. Não é axioma, mas é outra premissa aceitável. E destas premissas deduz-se que a tradição religiosa não justifica a crença num deus.

Partindo de premissas aceites por todos e seguindo um raciocínio que todos considerem válido garante-se que todos irão concordar com a conclusão, seja qual for a sua opinião inicial. Assumindo que estão honestamente interessados no diálogo. Quem admite que A é verdade e que A implica B mas mantém a sua fé que B é falso não quer dialogar. E se cada um se limita a proferir os dogmas que considera irrefutáveis ninguém se entende. Como exemplo, aponto mil e quinhentos anos de animado diálogo entre o Cristianismo, o Judaísmo e o Islão.

O Bernardo critica «loucos insensatos, como o fanático e maníaco Richard Dawkins» por não fixarem dogmas nem axiomas. A premissa de Dawkins é que é mais fácil o universo surgir espontaneamente do que o criador do universo surgir espontaneamente. Não é dogma nem axioma. É um ponto de partida para o diálogo. Uma premissa razoável com implicações importantes para quem quiser dialogar.

É irónico que o Bernardo acuse de fanatismo maníaco quem não defende dogmas, mas que considere sensato começar um diálogo com axiomas que o interlocutor não partilha. Mas numa coisa estamos de acordo. Assim o diálogo é difícil.

1- Bernardo Motta, 13-6-07, Filosofia para a sala de aula

domingo, junho 17, 2007

Prémio Científico IBM.

Por sistema, não vou usar este blog para fazer publicidade a empresas. Mas como a IBM me atribuiu o Prémio Científico IBM de 2006 pelo meu trabalho sobre integração de informação estrutural de proteínas, desta vez faço uma excepção.

Ah, e, já agora... IUPIII!

1- Prémio Científico IBM.

Ética, parte 4: Apelo à natureza.

A lei natural é um tema complexo na filosofia ética, mas o seu maior problema é evidente num exemplo simples. É natural ter cáries, mas nem por isso é imoral usar pasta de dentes.

Quem justifica um principio ético pela observação que é assim na natureza ou está distraído ou a tentar enganar. Porque deixa omisso que primeiro usou um principio ético para escolher esse exemplo que apresenta. Seja qual for. É um problema semelhante ao de basear a ética na fé religiosa. Quer nas religiões quer na natureza abundam exemplos do bom e do mau, e só sabendo primeiro distingui-los é que conseguimos apontar o bom exemplo. Como louvar o leão que defende os seus filhos e não mencionar que mata os dos outros.

Para David Hume este problema viria da impossibilidade de passar de uma constatação de facto – aquilo que é – para um juízo de valor – aquilo que deve ser – sem recorrer a outro juízo de valor. E parece-me que ele tinha razão. A natureza dá-nos meros acontecimentos. O que acontece, e a forma como a evolução nos moldou, não é intrinsecamente bom nem mau. É, e pronto. Bom e mau são classificações criadas pela percepção subjectiva.

Mas isto do natural ser bom está sempre na moda. Da medicina alternativa aos iogurtes apresentam-nos muita coisa como sendo boa por ser natural. E nunca mencionam que o arsénico e o veneno de cascavel também são 100% naturais. Na ética, criticam os direitos dos animais porque somos omnívoros (será a violação menos condenável se o violador for heterossexual?), criticam o capitalismo pelo nosso instinto de cooperação, o comunismo pelo nosso instinto territorial, ou defendem cada um escolhendo o exemplo contrário.

A coisa chega a tal absurdo que alguns defendem a igualdade de direitos entre raças ou sexos afirmando que somos todos iguais. Não só perdem a noção dos factos como perdem a noção da ética. Não somos iguais. Isso é um facto. Mas o que importa é que todos merecemos a mesma consideração porque todos sentimos, pensamos, temos consciência de nós próprios e autonomia nas nossas decisões. Que a natureza tenha dado a uns características diferentes das que deu a outros é eticamente irrelevante. Merecemos igual consideração mesmo sendo diferentes. Isso é ética. O resto é cenário.

Todas as formas de apelo à natureza partilham este problema fundamental. Nem tudo o que ocorre na natureza é bom. Para fundamentar a ética na natureza há que seleccionar o que a natureza tem de bom e ignorar o que tem de mau. Mas é a ética que distingue o bom do mau. Temos assim a tarefa impossível (ou desonesta) de precisar antes daquilo que apresentamos como vindo depois.

O resultado é a aldrabice de um tentar impor aos outros o que julga importante. Porque acha que o importante é ser humano agora é isto que tem que valer para todos. Ou que o importante é ser omnívoro. Ou querer propriedade privada. Ou não querer. Mas qualquer que seja a escolha será sempre errada porque nada é importante em si, e de igual forma para todos. A relevância ética seja do que for é necessariamente subjectiva.

O único universal ético com que podemos contar é que cada sujeito tem uma perspectiva subjectiva única. O que é importante para um nem sempre é importante para os outros. Escolher o que é importante para mim e tentar impô-lo aos outros não tem nada de ético, por muito que eu gesticule invocando deuses, instintos, ou naturezas. A ética tem que ser um critério que considere todos os pontos de vista, toda a diversidade do subjectivo. Seja natural ou não.

Episódios anteriores:
Ética, parte 1: Subjectividade.
Ética, parte 2: Fundamentos.
Ética, parte 3: Deus?... Para quê?

sexta-feira, junho 15, 2007

Não... sim... quer dizer... qual era a pergunta?

O Helder Sanches propôs outro debate inter-blogues, desta vez com o tema «Será a Religião Eterna e Inevitável?». A resposta é não. As leis da termodinâmica garantem que a religião não pode ser eterna. Eventualmente, há de acabar.

Mas, como disse Woody Allen, a eternidade é muito longa, especialmente lá para o fim. O Helder deve querer dizer uma eternidade mais curtinha, e nesse caso a resposta é sim. O fundamento da religião é tratar o inanimado como pessoa. É certo que a atitude de quem pede a uma estátua que lhe cure o pé de atleta é diferente da atitude de quem especula, aos berros, sobre a profissão da hipotética progenitora do seu PC. Mas são ambos exemplos de personificar o inanimado. Seja o santo, o espírito, o deus, ou o filho da ... do computador. Ver tudo como pessoa é uma tendência natural do ser humano.

O nosso cérebro é uma máquina de criar modelos intencionais. No sentido comum de intenção como propósito, em que consideramos o tipo de terra que esta planta gosta, ou que as asas dos pássaros surgiram para que eles voassem. E no sentido filosófico de intencionalidade como ser acerca de outra coisa. A linguagem e gestos com que comunicamos ou os rituais e superstições são coisas que representam outras. A hóstia é o corpo de Jesus, mas só simbolicamente, porque se fosse mesmo ninguém a comia. Esta capacidade torna-nos vulneráveis a muitas infecções mentais, da astrologia ao Cristianismo e, estatisticamente e no sentido lato, a religião é eterna e inevitável.

Mas considerando cada indivíduo e dando um sentido mais rigoroso à palavra, então a resposta é talvez não. Como a gripe. Mais por sorte que por mérito, há sempre quem se safe.

Já agora, aproveitando que este saiu curto, deixo uma palavrinha ao organizador. Helder, se pões uma pergunta e o pessoal responde não há debate nenhum. Para haver debate tem que haver uma troca de ideias em oposição, e para desencadea-lo não pode ser uma pergunta, tem que ser uma afirmação da qual outros discordem.

E um bom debate é como um bom arroto. Liberta-nos de algo que estava a incomodar, muitos consideram-no de mau gosto e, mais importante de tudo, é espontâneo.

1- Helder Sanches, 15-6-07, Debate Interblogues: Será a Religião Eterna e Inevitável?

quinta-feira, junho 14, 2007

Treta da Semana: 10% do cérebro.

Já várias pessoas me disseram que só usamos 10% do cérebro. Infelizmente, a minha educação sempre me impediu de responder «fala por ti». É treta. Um AVC ou uma bala na cabeça deixam sequelas em muito mais que 10% dos casos. A ressonância magnética e a tomografia por emissão de positrões mostram actividade no cérebro todo e não apenas num cantinho. E se alguma vez tiverem que ser operados ao cérebro é bom que o cirurgião não pense que 90% é lixo. Cada pedacinho tem a sua função; ele que não deite nada fora.

O post do Massimo Pigliucci no Rationally Speaking (1) levou-me a escolher esta treta para esta semana. Como ele, recomendo o artigo do Benjamin Radford no Snopes (2). Resumindo, esta patranha espalhou-se porque atrai os fãs do paranormal. Pouco capazes de distinguir factos e ficção, julgam encontrar aqui um sítio para aqueles poderes que alegadamente temos. Coisas como ler os pensamentos do cão, ter sonhos vagos com acontecimentos futuros e dobrar colheres só de olhar para elas. Como solução põem isso na parte do cérebro que não usam.

Não vou perder tempo a explicar porque é que isto é treta. Recomendo a quem tiver ainda dúvidas que siga os links abaixo. O que me fascina neste tema é como se subestima a complexidade das nossas tarefas quotidianas. Considerem estes dois conjuntos de exemplos:

A: Resolver um sistema de equações diferenciais; calcular quanto combustível é necessário para colocar um satélite em órbita; vencer um jogo de xadrez.

B: Jogar à bola; perguntar (e perceber) o caminho para o supermercado; ver telenovela.

A maioria dirá que o grupo A exige maior capacidade mental, e que B é intelectualmente trivial. É precisamente o contrário. Qualquer computador pessoal ou até uma máquina de calcular sofisticada resolve as primeiras tarefas sem problemas. Mas as tarefas do grupo B são tão complexas que nem sabemos como programar uma máquina para as fazer.

Pegando no último exemplo, quando vemos uma novela na televisão começamos por identificar caras e pessoas diferentes. Um computador moderno com software sofisticado consegue fazê-lo quase tão bem como nós. Mas no passo a seguir já deixamos o computador para trás. Percebemos o que cada actor diz, associamos o significado das palavras às emoções que inferimos do tom de voz, da expressão da cara, da postura, e do contexto. Mesmo quando o actor é mau conseguimos fazê-lo.

Recorrendo a um grande conjunto de informações que adquirimos ao longo da nossa vida e dos episódios anteriores, criamos um modelo mental para cada personagem. Sabemos que a Elizete, por estar casada com o Amílcar, não está à espera de o ver na cama com a Odaliza. E a surpresa será duplamente desagradável porque esta última se fez passar por sua amiga. Fazemos isto em fracções de segundo, em paralelo com várias coisas que possamos estar a fazer ao mesmo tempo, e com tão pouco esforço que para muitos até aborrece.

Dobrar colheres com a mente? Se fosse fisicamente possível era trivial. Não tinha nada que saber. Não precisava da milésima parte do cérebro e até um gafanhoto conseguia. O que é incrivelmente difícil é o que fazemos todos os dias, como chegar a casa e contar uma coisa engraçada que nos aconteceu no trabalho. A linguagem, o humor, a criatividade, a capacidade de compreender o que o outro sente e pensa. São tarefas tão complexas que até surpreende que baste cem mil milhões de neurónios para as desempenhar.

É triste. Quem tanto procura o maravilhoso nas tretas acaba por perder o verdadeiro espectáculo que é a realidade. E que está mesmo à frente (ou, neste caso, atrás) do seu nariz.

1- Massimo Pigliucci, 4-6-07. Not true: you don't use only 10% of your brain
2- Benjamin Radford, 8-2-00, Claim: We use only ten percent of our brains.

quarta-feira, junho 13, 2007

Ética, parte 3: Deus?... Para quê?

Muita gente defende que o papel de Deus e da religião é na ética. Já não precisamos Dele para explicar a chuva e as doenças, mas precisamos para explicar o Bem e o Mal. E apresentam três razões para justificar esta posição. Todas são treta.

A primeira é que Deus é o Bem. Esta é simplesmente uma confusão de categorias, consequência de recorrer a metáforas vagas. Bem e mal são classificações que damos a actos voluntários. A algo que se faz, e não algo que é. Dizer que Deus é o Bem é tão disparatado com dizer que Deus é o Espirro.

A segunda razão faz mais sentido. Deus é a fonte do bem. Ou seja, precisamos de Deus para nos dar os critérios pelos quais classificamos os nossos actos voluntários. Mas o problema desta já é famoso desde os primórdios da filosofia moral. Só há duas possibilidades, e ambas são más para a posição que defendem.

Uma é que Deus inventa os valores e define o bem. Um acto é bom ou mau porque Deus decide, e pronto. Quando no antigo testamento Deus aconselhava os pais a apedrejar as filhas que descobrissem não ser virgens, isso era bom por definição. Supostamente, entretanto mudou de ideias e agora é mau. Ora isto não é ética. É capricho. O bem e o mal não pode ser assim à escolha do freguês. Nem mesmo que seja o Freguês.

A alternativa é que Deus nos ensina o bem. Ele sabe-o, e como um pai atencioso ou um bom professor explica-nos o que devemos fazer. Aceitável, mas não é bem o que os crentes querem. Não somos crianças nem alunos para sempre, e a implicação é que uma vez que conhecemos o bem não precisamos de Deus para nada. E até podemos ir directamente à fonte desse conhecimento e aprender por nós o que é o bem. Deus é supérfluo ou, no máximo, tem um papel de auxiliar provisório.

Pelos problemas com estas justificações os crentes normalmente recorrem à terceira: crer em Deus e numa religião torna o crente eticamente melhor. Outro erro. É que nem pode ser.

Um ladrão sem escrúpulos vai roubar um carro mas vê que está um polícia por perto e acaba por não cometer o crime. Não se tornou uma pessoa melhor. Não roubou, mas é tão imoral como era antes de ver o polícia. E nem por adquirir a crença num polícia invisível que o persegue constantemente se vai tornar uma pessoa melhor. Deixa de roubar, mas continua um crápula.

Isto porque a ética não é uma resposta a pressões externas, nem um meio para um fim. Não é o que fazemos para escapar à prisão ou para agradar a um deus. São as restrições que nós próprios impomos aos nossos actos. Se em todo o universo só existir eu e um cachorro, a ética vem da compreensão que não devo dar um pontapé no bicho porque isso vai magoá-lo. É o critério final que avalia os meus actos. Não depende do polícia, dos santos, de Deus nem da tia Dele.

Quem alega que Deus ou a crença em Deus é importante para justificar a sua ética está a cometer um erro sério. A crença em Deus pode ser importante para o crente, mas não tem nada a ver com a ética.

Ética, parte 1: Subjectividade.
Ética, parte 2: Fundamentos.

terça-feira, junho 12, 2007

T.R.E.T.A.

Há com cada treta... Texas Real Estate Teachers Association.

E não é só a sigla. É uma associação de professores de mediação imobiliária...

Comunismo Digital.

Já me acusaram de comunista por defender que não se deve aplicar direitos de cópia à partilha de conteúdo digital. E até sou. De certa forma. Aqui em casa vivemos os quatro como comunistas. Partilhamos recursos e o fruto do nosso trabalho, de cada um conforme pode e a cada um conforme precisa. É o sistema ideal porque temos objectivos comuns, e é estável porque cada um beneficia mais colaborando neste sistema que com qualquer alternativa.

Mas não é o benefício do grupo que importa. O mesmo sistema aplicado ao prédio em que vivo beneficiava-nos a todos, mas não funcionava. A economia de escala permitia poupar em comida, água, e outros recursos consumíveis. Partilhar os ordenados de vinte famílias dava mais segurança perante algum percalço financeiro, e aumentaria bastante a qualidade de vida dos menos favorecidos. Mas não funcionava porque cada um podia ganhar ainda mais guardando para si o que conseguisse esconder dos outros. O que é vosso é de todos, mas o que é meu é meu. Nestas circunstâncias, só funcionava com a polícia secreta do comité central a mandar para o gulag de Trás-os-Montes quem não alinhasse.

O capitalismo tem o mesmo problema. Só à força é que um casal com filhos pequenos ia funcionar num modelo de compra e venda de bens e serviços. As anedotas são outro exemplo, por razões diferentes. Quem sabe uma anedota engraçada tem mais a ganhar contando-a que tentando vender a anedota, porque outro qualquer pode contá-la primeiro. Só coagindo os outros é que alguém podia ganhar a vida a inventar anedotas sem ter qualquer dom artístico adicional mais difícil de duplicar (o sucesso do Fernando Rocha é inexplicável num modelo racional).

Como descrição das interacções humanas o capitalismo e o comunismo são ambos consequência da racionalidade ao serviço do interesse próprio. Na ausência de coacção, agimos de uma forma ou de outra dependendo das circunstâncias. E nem sempre é mau um pouco de coacção. Aceito que me forcem a partilhar um terço do ordenado com quem mais precisa, em impostos e segurança social. E aceito que haja limitações de cópia em actividades comerciais para manter uma concorrência saudável que nos beneficia a todos. Mas como ideologia sou pouco comunista e pouco capitalista. Pode ser bom uma pitadinha da ideologia adequada, mas sem exageros.

Que não nos obriguem a partilhar o ordenado todo com os vizinhos, nem nos proíbam de contar anedotas. E os ficheiros no computador são como as anedotas. São informação, podem ser duplicados sem custo, e cada indivíduo tem mais a ganhar partilhando que ficando fora da partilha. É possível descarregar ficheiros sem os partilhar, mas dá mais trabalho que simplesmente deixar os bits correr de um lado para o outro. E neste caso não há razão prática ou moral para coagir milhões de pessoas a adoptar um modelo contrário aos seus interesses.

Há coisas que queremos vender e há coisas que queremos partilhar. Pode-se forçar um pouco, mas forçar demais dá asneira, seja para que lado for. Por isso liberalizar o tráfego de bits para fins pessoais não é comunismo, é bom senso. E tentar que seja ilegal não é capitalismo. É disparate.

Memes.

Há umas semanas a Joaninha, do Joaninha Voa Voa (1), pediu-me que explicasse «por a+b» o que são os memes. Esta expressão é um bom exemplo de um meme. Porque não disse ela «por x+y» ou «por b+c»? A teoria dos memes ajuda a compreender porquê. Mas primeiro, o que é um meme.

A melhor definição que conheço é a de Susan Blackmore: memes são o que se transmite por imitação (2). Pode ser a forma de cumprimentar ou de fazer um avião de papel, pode ser uma expressão idiomática ou cada palavra que usamos. Se o fazemos por imitação, é um meme. E tem que ser por imitação. Se vemos alguém a comer pão com manteiga, provamos, gostamos, e passamos a comer regularmente, isso não é um meme. Comer já era um comportamento que tínhamos, e passámos a comer o pão porque provámos e gostámos. Não se transmitiu por imitação. Por outro lado, se a pessoa que vimos a comer pão com manteiga cortava sempre as fatias ao meio ou punha manteiga nos dois lados e nós copiamos esse comportamento, então já é um meme.

Esta distinção é importante porque o comportamento imitado herda preferencialmente as características do original que mais favorecem a imitação. Ou seja, o meme evolui. As suas características propagam-se, mudam, e são seleccionadas pelo processo de propagação. A palavra «meme» foi criada por Richard Dawkins (3) para mostrar que a evolução não se restringe aos genes. A teoria da evolução aplica-se a qualquer entidade (por muito abstracta que seja) cuja propagação dependa de características herdadas. Ironicamente, a maior objecção ao meme é que não é um gene. Pois era mesmo essa a ideia.

O meme não é associável a um suporte material como o DNA. Além disso, não é composto por unidades discretas, e por vezes é difícil dizer exactamente o que é o meme. Um exemplo famoso é a quinta sinfonia de Beethoven. Será o meme a sinfonia toda ou será que o ta-ta-ta-TAM já um meme? Mas esta dificuldade também temos com o DNA. Normalmente, «o gene» para um atributo são muitos pedaços de DNA a produzir proteínas que interagem de formas complexas. E não ter um suporte material bem definido é irrelevante para a sua evolução. Se não tentarmos ver o meme como um gene e focarmos aqueles aspectos essenciais à sua evolução deixa de haver objecções razoáveis a esta ideia. O importante é que temos algo que se propaga, com características herdadas que influenciam a sua propagação. É só disso que a evolução precisa.

A ideia que as ideias são entidades que se propagam e evoluem ajuda a compreender porque algumas proliferam. Vou ilustrar primeiro com um exemplo biológico. Quando temos gripe espirramos. Porquê? Uma possibilidade é que espirrar traz ao engripado vantagens que compensam a energia despendida. Mas não há evidência de tais vantagens para quem espirra. Por outro lado, o espirro é óptimo para o vírus. Apanha boleia nas gotinhas e assim espalha-se por vários hospedeiros. A hipótese mais provável é que o espirro é uma adaptação do vírus, e não do hospedeiro. O vírus evolui e adquire características úteis à sua propagação. Fazer espirrar, por exemplo.

Podemos ver uma situação semelhante em vários conjuntos de memes. É típico das religiões condenar a apostasia e exortar os fiéis a ensinar a sua religião aos filhos. São também comuns os rituais e credos que têm que ser executados ou proferidos sempre da mesma exacta maneira. Nada disto beneficia o crente ou o seu deus. Quem beneficia com a repetição à letra do «Pai Nosso que estais nos céus, santificado seja o Vosso nome...» é esse meme, que assim é propagado com alta fidelidade. Tal como os vários genes de um vírus, os vários memes de uma religião colaboram para a sua propagação. Não em benefício do hospedeiro, mas em benefício daquele conjunto de comportamentos propagados por imitação.

O que aprendemos por imitação tem uma vida própria nesta capacidade de evoluir. Em ciência combate-se constantemente a tendência de certas teorias proliferarem pela sua capacidade de propagação em vez do seu rigor ou exactidão. Muita tecnologia é adoptada pela sua utilidade, mas muita propaga-se infectando cérebros e espalhando-se como uma epidemia. A moda é um exemplo extremo da infecciosidade dos memes.

Em suma, a Joaninha não me pediu para explicar «por a+b» pela importância de a e b nesta equação. X, y, ou quaisquer outras letras serviam igualmente bem. Mas «a+b» soa melhor. Fica no ouvido. Sai mais facilmente. E por isso proliferou.

1- Joaninha, 24-5-07, Desafio da Annie.
2- Susan Blackmore, The Meme Machine, 1999, Oxford.
3- Richard Dawkins, The Selfish Gene, 1989 (1976), Oxford.

domingo, junho 10, 2007

Ética, parte 2: Fundamentos.

O problema fundamental da ética é definir o bem. Só sabendo o que é o bem é que nos podemos preocupar com o bem da maioria, a justiça, a reciprocidade, e assim por diante. Muitos precipitam-se e confundem o problema de implementar o bem com o problema de o definir.

Este problema é antigo, e já se propôs, entre outras, o bem como virtude, moderação, excelência, imperativo categórico, fé ou servir a vontade de um deus, Infelizmente, parece que ainda ninguém acertou, e não há uma boa definição do que é o bem. Não vou resolver o problema. Mas excluir o que não é relevante ajuda a limitar o que o bem pode ser, e ajuda a compreender o problema.

Algo só é eticamente relevante conforme o seu efeito subjectivo. Quebrar uma ligação química ou criar um fotão não é relevante por si, mas apenas se afectar algum ser subjectivamente. Uma consequência disto é que nada pode ser eticamente bom sem ser bom para alguém, nem eticamente mau sem ser mau para alguém. Parece pouco, mas já dá para rejeitar muitos disparates. Por exemplo, que a homossexualidade é pecado ou que rezar trinta pai-nossos é louvável. Se não prejudica ninguém não é condenável. Se não ajuda ninguém não merece louvor.

Outra consequência é que não há nem bem absoluto nem mal absoluto. O subjectivo é relativo, e por isso a ética lida com preferências e avalia tudo em relação às alternativas. Tirar o apêndice a alguém não é necessariamente bom nem necessariamente mau; depende do que acontece se não o tirarmos. E a ética é mais útil quando avalia alternativas no futuro, quando nos indica o que devemos fazer em vez do que devíamos ter feito. É outro princípio que parece banal mas que nos impede de ignorar problemas do ambiente só porque afectam gerações futuras ou os interesses de um feto só porque ainda não pensa. Temos que avaliar as consequências relativamente às suas alternativas.

Mas nem tudo o que é subjectivo é eticamente relevante. A ética avalia actos, e não meros acontecimentos. Uma chuvada ou um terremoto podem ter efeitos subjectivos. Podem ser coisa boa ou má. Mas não no sentido ético. Chover não é louvável, nem é condenável que a terra trema. Acontece. Só é eticamente relevante a consequência previsível de um acto na medida em que foi consciente e deliberado.

Estas condições necessárias à ética tornam claro o que são direitos e deveres. Os direitos de um são restrições que a sua subjectividade impõe às acções de outros. O recém nascido e o deficiente têm direitos em virtude do impacto que os outros possam ter na sua subjectividade. E os deveres não são uma contrapartida pelos direitos. São restrições impostas ao próprio pela sua capacidade de compreender as consequências dos seus actos. Tem mais direitos quem é mais sensível e vulnerável. Tem mais deveres quem é mais consciente e capaz.

Isto é apenas um fundamento. Só delimita a ética, e está longe de resolver problemas reais como decidir pôr um doente de quarentena contra a sua vontade ou perdoar as dívidas aos países mais pobres. Casos reais têm consequências complexas, podem afectar muitos seres, e temos que comparar efeitos subjectivos e avaliar a responsabilidade de quem age ponderando as consequências na medida em que foram escolhidas deliberadamente.

Mas mesmo este esboço mostra que não se distingue o bem do mal com regras de conveniência como a da reciprocidade ou que só os humanos contam. Essas regras são atalhos. São úteis apenas em algumas situações. A reciprocidade resume bem a relação do cliente com o merceeiro, mas não a relação da sociedade com os desalojados ou idosos. Considerar apenas os humanos faz sentido num programa de vacinação ou a matar piolhos, mas não se estamos a destruir florestas ou a chacinar baleias.

O importante é que a ética lida com consequências subjectivas. Não se pode simplesmente arbitrar que umas contam e outras não. E a ética avalia escolhas conscientes. O nosso dever ético surge automaticamente da nossa consciência que aquilo que fazemos afecta os outros. Não só os que nos dão algo em troca ou que são da nossa espécie, mas todos os que sentem as consequências dos nossos actos.

Ética, parte 1: Subjectividade.

sábado, junho 09, 2007

Treta da Semana: Tarot.

O tarot é um bom exemplo da nossa predisposição para detectar padrões e relações. Mesmo onde não existem. Como ver uma cara a sorrir em dois pontos e um parêntesis. No tarot, o «baralho de cartas constituído por 22 arcanos maiores profundamente simbólicos e 56 arcanos menores igualmente portadores de mensagens»(1) cria uma ilusão análoga à da felicidade de um :)

Qualquer sistema de detecção pode cometer dois tipos de erros: responder a algo que não existe ou ignorar o que devia ter detectado. Normalmente, queremos detectores que equilibrem estes dois erros. O secador das mãos na casa de banho às vezes não liga quando queremos secar as mãos, e às vezes liga-se quando alguém passa por perto. Mais vale assim que ser infalível a ligar quando é preciso mas tão sensível que esteja quase sempre ligado desnecessariamente. Ou o contrário, nunca se ligar quando não é necessário, mas custar a ligar quando queremos secar as mãos.

Os detectores que evoluem nem sempre são assim. Pode parecer estranho, mas uma percepção tendenciosa é muitas vezes mais útil que uma percepção com erros equilibrados, porque os erros podem ter custos diferentes para o organismo. Os nossos antepassados apanharam muitos sustos desnecessários quando confundiram sombras inofensivas com um lobo ou um leopardo, mas mais vale dezenas de sustos que não reparar no leopardo ou no lobo no dia em que lá está mesmo.

O mesmo se passa nas relações sociais, a identificar oportunidades, e em muitos outros aspectos da nossa vida. Para os nossos antepassados masculinos o custo reprodutivo de fazer figura de parvo era menor que o de perder uma oportunidade de ter filhos. Hoje, se ela diz que ele é uma besta ele fica convencido que ela está apaixonada.

E não é só a percepção tendenciosa. A nossa memória também conspira para nos enganar, tornando mais vívidas as relações imaginadas que aquilo que observamos. A cartomante diz que alguém nos inveja e, subitamente, aquele olhar de soslaio da vizinha à janela fica firmemente ligado à agora evidente sabedoria dos quadradinhos de papel. Como é que as cartas sabiam? Fabuloso...

A cartomancia, a quiromancia, a tretomancia em geral são parasitas mentais que vivem das nossas distorções cognitivas. A simbologia vaga e metafórica, o sentido pouco definido e a contradição estimulam a nossa capacidade de preencher falhas inventando relações e significados profundos onde não há nada:

«O tarot ensina-nos a caminhar ao encontro do Eu Superior, fazendo-nos interiorizar, sem esquecer a espontaneidade que sendo um processo intuitivo e simultâneo à experiência vivida no concreto, não existe acaso destituído de significado; a leitura intuitiva individualiza-o, eliminando o processo de repetição de cada leitura.»(2)

Mas o tarot é mais que uma curiosidade psicológica. É uma aldrabice num oceano de tretas. Desde cursos de tarot a 150€ por três dias (3), e ao menos são só três dias, às «canalizações» do Arcturiano Kryon (4), escolas da mais variada tretologia (5), e à literatura fabulosa que nos ensina a proteger contra (sim, proteger contra...) o mau olhado e a falar com o nosso eu interior (6). Que mal é que isso tem, perguntarão alguns. Afinal também se compra revistas do Tio Patinhas. É verdade. Mas não como documentários sobre o mundo animal.

Cada um tem o direito de acreditar no que quiser. Num deus salvador, nas cartas que sabem o futuro, numa cidade cheia de patos que falam. Mas esse não é o direito de afirmar ou prometer algo baseando-se apenas numa crença. Ninguém tem o direito de vender previsões sem evidências que esteja mesmo a prever qualquer coisa, nem o direito de prometer o paraíso a quem dá o dízimo.

Em nome da liberdade de crença estamos a ir longe demais. Estamos a ser complacentes com a burla. Não deviam considerar intolerância nem desrespeito exigir de quem crê que não aldrabe. Acreditem no que quiserem, mas não digam que sabem sem ter evidências.

1- Maya, O que é o Tarot?
2- Tarot
3- www.paulocardoso.com
4- Velatropa
5- Quiron
6- Editora Anjo Dourado

quarta-feira, junho 06, 2007

Photosynth

Muitos certamente já passaram pela seca de ver as fotos das férias de algum amigo ou parente. Uma colaboração entre a Microsoft e a Universidade de Washington promete acabar com a seca (mas multiplicar as fotos).

Vejam esta apresentação do Blaise Aguera y Arcas, um dos criadores do sistema.

Site do Photosynth
Via Bad Astronomy

sexta-feira, junho 01, 2007

Ética, parte 1: Subjectividade.

A propósito da tourada nasceu uma conversa interessante sobre ética, tanto aqui nos comentários como numa troca de posts com o Ricardo Alves do Esquerda Republicana. Vários leitores questionaram a minha posição e, no seu post mais recente sobre o assunto, o Ricardo Alves colocou algumas perguntas concretas:

«O Ludwig, antes de responder que não deve ser assim, deveria explicar quais são os animais a que reconhece direitos (e porquê).[...] será que sentimos a obrigação de levar ao hospital todos os cães que vemos serem atropelados? Não? Porquê?» (1)

A conversa começou quando questionei a afirmação do Ricardo que só os humanos é que contam. Por isso é irónico que ele continue a exigir justificações sem dar nenhuma. Está por esclarecer porque é que torturar um humano é errado e torturar um touro não é, sendo o sofrimento o mesmo. Mas compreendo que disparar perguntas é mais fácil que justificar respostas. No entanto, o fácil aborrece-me. Por isso começo aqui uma série de quatro posts onde vou tentar dar as respostas que o Ricardo pede. A obrigação de levar cães (ou pessoas) ao hospital fica para mais tarde; agora começo por explicar quem merece consideração ética. É simples: todo aquele que sente.

Muitos assumem que a ética se baseia na tal regra dourada de não fazer aos outros o que não queremos que nos façam. A reciprocidade (2). Ora esta regra tem o problema óbvio de dar resultados disparatados. Como não martelar um prego por não gostar de levar marteladas. Normalmente resolvem o problema restringindo arbitrariamente «os outros» até dar o resultado certo. Por exemplo, que a ética é só para humanos.

Mas o problema é mais fundamental. No que eu faço aos outros não é o que eu gosto que é mais relevante. Até porque os nossos nunca nos cheiram tão mal como os dos outros. O correcto é não lhes fazer aquilo que eles não gostam. Martelar o prego não é um problema ético porque o prego não se importa. Martelar o Ricardo é um problema, presumivelmente. Para cães e formigas é exactamente a mesma regra. Os cães sentem, por isso é errado dar-lhes marteladas. As formigas são máquinas biológicas sem as estruturas nervosas necessárias à subjectividade. Martelar formigas é perda de tempo mas não é um problema ético. Elas não se importam.

Admito que é difícil traçar esta divisória com exactidão. Não compreendemos bem os mecanismos da experiência subjectiva. Mas nos vertebrados o córtex cerebral parece um bom indicador. Tanto quanto sabemos, é essencial à subjectividade. Assim, divido os vertebrados em peixes, anfíbios e répteis como «máquinas biológicas», e aves e mamíferos como seres que sentem. O sistema nervoso dos invertebrados parece demasiado simples para esta capacidade, com excepção do polvo. O polvo tem um comportamento inteligente e um cérebro grande mas demasiado diferente do nosso para podermos extrapolar com confiança, por isso dou-lhe apenas o benefício da dúvida.

É uma divisão incerta, mas a incerteza é apenas em matéria de facto. A questão de valor é clara: a subjectividade dos outros merece consideração ética. Seja prego, seja pessoa. Se não tem subjectividade, óptimo, está o problema resolvido. Mas a nossa consciência de que agimos sobre um ser que sente dá-nos o dever de o ter em consideração.

E não é mera filosofia vazia. É um principio coerente com aplicação prática. No meu caso, é determinante cada vez que vou às compras. Compro ovos de galinhas do campo. Não compro carne de mamíferos, que são criados, transportados, e abatidos com grande sofrimento. Compro peixe e marisco mas não polvo. Compro frango do campo, porque me parece que o frango é fácil de matar rapidamente, mas evito os de aviário. E todas estas decisões estão sujeitas a revisão. O valor, ou seja, o critério pelo qual decido, é sempre o efeito dos meus actos na subjectividade dos outros. Mas estimar esse efeito depende de informação que está sempre a ser actualizada. Se um dia se descobrir que as vacas não sentem, maravilha. Passo a comer bifes de novo.

Por isso não posso responder ao Ricardo exactamente que animais contam ou não contam. O melhor que posso fazer é estimar quais os seres que sentem e o que sentem, e estar preparado para rever essa estimativa. Ao contrário do Ricardo, eu não escolho quem vou favorecer ou excluir. Não quero uma ética feita para favorecer os amigos, mas uma ética assente num princípio universal. No respeito pela subjectividade do outro.

1-Ricardo Alves, 28-5-07,Mais sobre humanismo e animais não humanos
2- Eu, 25-5-07, Reciprocidade