sábado, março 31, 2007

Jónatas Machado e a Filosofia da Ciência.

Num artigo no Ciência Hoje (1), Jónatas Machado (JM) resume em apenas 3,145 palavras (contou-as o Santiago, em 2) o que outros diriam em mais de três: «Deus não é explicação». Tão sucinto foi que, naturalmente, algumas coisas ficaram menos claras. São essas pequenas falhas que tentarei colmatar.

Primeiro, JM diz que a ciência parte de uma premissa naturalista. Faltou aqui dizer que a ciência parte sempre de muitas premissas. Chamam-se hipóteses, e o objectivo é encontrar as que melhor correspondem ao que observamos. Há uns séculos, a ciência favorecia a hipótese de Deus como explicação. Mas o sucesso de alternativas mais detalhadas que «ah, isso foi Deus» favoreceu essas hipóteses naturalistas. Não por uma limitação do método científico, mas pelas mesma razão que quando o carro não pega o levamos ao mecânico em vez de rezar para que Deus mude as velas. O naturalismo corresponde melhor à realidade do que criacionismo do judeo-cristianismo evangélico literalista bíblico.

Em segundo lugar, JM parece confundir a evolução com a teoria da evolução. É o que dá resumir tudo tão resumidinho. Há tantas observações a apoiar a evolução que a consideramos um facto, como a gravidade ou a Terra orbitar o Sol. A Terra tem biliões de anos, havia espécies que se extinguiram, as espécies modernas descendem de espécies antigas, e o governo não se vai esquecer de cobrar o IRS este ano. São factos. Contem com isso. E a teoria da evolução é a teoria que explica o facto (facto!) de as espécies terem evoluído e continuarem a evoluir. A tarefa do criacionismo é difícil. Não só querem refutar uma das teorias mais sólidas da ciência moderna, como querem refutar os factos que a teoria explica. É como ser tão contra a relatividade que nem sequer se aceita que haja gravidade.

Em terceiro lugar, JM fala da «evolução aleatória». Um termo estranho. Se fosse aleatória não precisávamos de a explicar. A biologia moderna reduzia-se a um conveniente «Olha, calhou». Mas a noção de evolução aleatória sugere uma solução para este debate. Se Deus criou as bactérias sensíveis à penicilina, e se a evolução aleatória não pode criar informação, então não pode haver agora bactérias que resistam à penicilina. Basta os criacionistas se recusarem a tomar qualquer outro antibiótico que a controvérsia acaba em duas ou três décadas.

Em quarto lugar, JM dá um salto de fé ao propor que toda a biologia moderna deriva de assumir que não foi deus que fez isto:

«Se a possibilidade de uma criação sobrenatural é excluída à partida, então a única possibilidade admissível é a evolução cósmica e biológica aleatória. Só pode. Não é?»

Não. Há a possibilidade de criação por um ser natural, de geração espontânea, de evolução por herança de características adquiridas, de ter sido sempre assim, e uma infinidade de outras. A alternativa a “ah, isso foi Deus” não tem que ser forçosamente a teoria da evolução como temos hoje. O que nos trouxe aqui não foi uma premissa pequenina, mas uma enorme montanha de observações e experiências que o universo nos deu.

Mas no título JM acertou em cheio: «O paradigma naturalista». A ciência já explorou muitos paradigmas: os quatro elementos, o vitalismo, o catastrofismo, a mecânica de Newton, o calórico, etc. A maioria foi como veio, sobrenaturais ou naturais. No século XIX havia o éter, um fluido que permeava todo o universo, que não se via nem se sentia, mas milhões de vezes mais rígido que o aço, e que vibrava à frequência da luz. Para mim, isso é que é sobrenatural. Hoje temos o princípio de incerteza de Heisenberg, que aceitamos como natural mas que deveria parecer sobrenatural a alguém do século XIX. A noção de natural muda conforme muda a percepção da natureza.

Hoje aceitamos que a natureza é natural. É o paradigma vigente, e não porque o método o obrigue. Pelo contrário, só recentemente é que a ciência o aceitou. Teve que ser. O universo refutou todas as alternativas com que desesperadamente tentámos salvar as nossas superstições. Foram-se os dragões, os unicórnios, os anjinhos e os deuses. Nem o Pai Natal resistiu ao limite de velocidade que a relatividade impôs.

(700 palavras... por favor leiam quatro vezes para ficar mais ao nível do texto do Jónatas Machado)

1 - Jónatas Machado, 29-3-07, O paradigma naturalista
2 – Santiago, 29-3-07, Ciência Anteontem...

Fé e Conhecimento.

O Bernardo Motta criticou a minha proposta do conhecimento como algo verificável, num texto onde aborda vários temas (1). O texto é algo extenso, por isso vou focar apenas as duas partes que me parecem mais importantes. Primeiro:

«A patrística cristã alude à fé e ao conhecimento como duas modalidades distintas e complementares da intelectualidade cristã. Ambas são indispensáveis»

Começo por apontar um defeito. Se querem dizer «o conhecimento complementa a fé», digam-no. Rodeá-lo de coisas como «a patrística alude» e «modalidades complementares da intelectualidade» só obscurece a ideia. Isto não é uma crítica ao Bernardo; de Kiekegaard a Ricoeur e Plantinga, parece-me que a própria teologia tem aversão a afirmações claras.

Concordo que conhecimento e fé são distintos, mas não que se complementem. O bife e as batatas fritas complementam-se. Ou a flauta e o violino, ou as calças e a camisola. A fé e o conhecimento são o gato e o rato. Ou se separam, ou há chatice. Tanto uma como outro pretende legitimar que se aceite algo como verdade, mas muitas vezes indicam precisamente o contrário. O conhecimento diz que num sistema que não troca energia com o exterior a entropia não diminui. A fé diz que há um deus que, se quiser, faz com que a entropia diminua num sistema isolado. Isto não é complementaridade. É contradição. Ou se rejeita o conhecimento acreditando que isto é possível, ou se rejeita a fé como uma hipótese refutada. Este é apenas um exemplo entre muitos. Em geral, ou se tem fé, ou se compreende. Não há complementaridade. Quem tem o bife, quer batatas, mas ninguém precisa de ter fé naquilo que já compreende...

A alegada complementaridade vem de um erro que o Bernardo torna explícito mais adiante:

«O que diria, Ludwig, acerca do trabalho científico na área filosófica específica dos argumentos ontológicos?»

Diria que é treta. Não é trabalho científico, e esses argumentos ontológicos põem o carro à frente dos bois. A ontologia estuda o que é, mas só é legítimo afirmar que algo é se sabemos que é. E esse problema é um problema de epistemologia, o problema de saber o que é e como distingui-lo do que não é.

Eis um exemplo de um argumento ontológico. Seja A uma montanha de ouro. Seja B a mesma montanha, mas que existe. Por definição, B existe. Bernardo, quer comprar uma montanha de ouro? O erro aqui é óbvio: existir não é uma propriedade que se possa definir. Apenas afirma que as propriedades estão instanciadas num objecto real. É a mesma montanha, A e B, e não é por incluir «existe» na definição que deixa de ser treta.

Resumindo, não se pode determinar o que é ou não é só por aquilo que o Bernardo chama «operações mentais», nem se faz com que algo exista por definição. Toda a ontologia depende da informação que obtemos acerca do universo. Da observação, da epistemologia, do conhecimento. E a fé? Para isto serve tanto como a montanha B. Se querem comprar, vendo baratinho.

Bernardo Motta, 29-3-07, Ludwig e os "mafaguinhos"

sexta-feira, março 30, 2007

Imaginação e Conhecimento.

No excelente blog De Rerum Natura, o Desidério Murcho tem um artigo perfeito (1). Claro, inteligente, e conciso, com muito com que concordo e algo de que discordo. Exactamente como eu gosto.

Concordo que a abertura à crítica e o confronto de hipóteses tem que fazer parte de qualquer investigação séria, seja qual for o tema. Concordo que se deve respeitar provas e não autoridades. Concordo que a abordagem crítica que dá a compreender a química e a física se aplica a fantasmas e deuses, se os houver. E concordo que sem esta abordagem não há conhecimento. Mas não concordo que «em muitos casos a ciência não é falsificável». Mais concretamente, como esclarecemos em conversa nos comentários a esse post, discordo que haja conhecimento a priori. Ou seja, que haja conhecimento sem observação.

Muitas vezes se aponta a lógica ou a matemática como exemplos de conhecimento a priori. É possível deduzir toda a geometria Euclideana partindo de alguns axiomas. O problema é que é possível deduzir infinitas geometrias não Euclideanas partindo de outros axiomas. O conhecimento não é nem uma nem todas estas geometrias. O conhecimento aqui é distinguir qual a mais adequada, e isso exige observação.

Vou dar um exemplo. Concebo um universo hipotético composto de blahs e blehs. Nesse universo a operação blih converte um blah num bleh, ou um bleh num blah. Daqui deduzo duas verdades a priori: que blih de bleh dá blah, e que blih de blah dá bleh. Isto é conhecimento? Não. É treta. Criei um modelo conceptual, posso complicá-lo arbitrariamente, posso criar alternativas infinitas, mas não passa de imaginação. Como este, todos os modelos científicos, e todos os modelos não científicos, podem ser criados a priori só pela imaginação. Na prática não temos imaginação que chegue, e até para a matemática dependemos da experiência. Se não fosse ter que contar ovelhas e ânforas de azeite nunca teríamos matemática. Mas, em princípio, qualquer ideia pode surgir do nada.

Mas ideias não são conhecimento. Quem imagina a química dos quatro elementos, do flogísto, da transmutação alquímica e da mecânica quântica tem uma grande imaginação. Mas só tem conhecimento se souber qual destes modelos melhor corresponde à realidade. Mesmo o exemplo clássico da verdade a priori, que nenhum solteiro é casado, só é conhecimento na medida em que «solteiro» e «casado» correspondem a estados observáveis. Sem essa correspondência temos «nenhum blah é bleh», que ninguém diz ser conhecimento.

Talvez pareça batota semântica, mas «conhecimento» deve-se referir apenas à informação acerca da correspondência entre ideia e observação. Isoladamente, ideias e observações não são conhecimento. Só obtemos conhecimento ao descobrir como (algumas) ideias encaixam nas observações. Isto não pode ser feito a priori porque precisamos das observações, mesmo que a ideia surja a priori. Nem pode ser feito com ideias não falsificáveis, porque essas não têm encaixe nenhum.

E penso que este não é um argumento a priori, porque encaixa na realidade que observo. Pode ser concebido a priori: se conhecer é saber que um modelo corresponde à realidade, então não há conhecimento sem observação. Mas isto não é só blahs e blehs porque podemos confrontar esta ideia com a realidade, e ver como se aplica na prática. Na prática, não chamamos conhecimento a uma proposição que não pode ser falsa à custa de não ser acerca de coisa alguma. Muito menos chamar-lhe ciência.

Desidério Murcho, 29-3-07, Ciência e banha da cobra

quinta-feira, março 29, 2007

Conspiração.

As imagens da destruição brutal são bem conhecidas de todos. E, na altura, muitos estranharam como um governo tão poderoso se deixou surpreender dessa forma, num ataque pela calada. A explicação oficial não satisfez toda a gente, mas até agora sempre me pareceu mais provável que as alternativas, que rejeitei como teorias da conspiração.

Até agora. Mas há muitas perguntas por responder, muitas coincidências improváveis, e muitas razões para suspeitar que o que se passou naquele dia foi diferente do que nos fizeram crer. O novo livro «Uncomfortable Questions» levanta precisamente essas questões que até agora a versão oficial não conseguiu responder. Leiam o resumo aqui, e decidam por vocês.

E não é verdade que o ataque tenha sido totalmente imprevisto. Relatórios de segurança como este demonstram que alguns organismos oficiais já estavam a par desta possibilidade. Incompetência? Ou conspiração?

quarta-feira, março 28, 2007

Biodança.

A minha irmã pediu um esclarecimento sobre este tema, por isso aqui vai. Começo por citar o fundador desta disciplina, o psicólogo Chileno Rolando Toro Arañeda:

«A base conceptual da Biodança provem de uma meditação sobre a vida, ou talvez da desesperança, do desejo de renascer dos nossos gestos despedaçados, de nossa vazia e estéril estrutura de repressão.»

Não há nada a acrescentar. É perfeitamente claro. Só me intriga que o próprio autor não saiba de onde vem a biodança. Afinal, é da meditação ou da desesperança? E parece-me que seria bom manter a estrutura de repressão vazia e estéril. Melhor que plena e fértil, pronta a reprimir. Mas sou um leigo na matéria, e uma dança com base conceptual não é para qualquer um. Por exemplo, não percebo como é que a «sua metodologia promove uma subtil participação no processo evolutivo». Só me ocorre que, durante a biodança frenética, os mais desajeitados caiam e partam o pescoço, participando assim na selecção natural. Mas parece-me pouco subtil...

Fica aqui o link para saberem mais sobre esta fascinante disciplina, que «mais que uma ciência, é uma poética do encontro humano, uma nova sensibilidade frente à existência». Aqui poderão descobrir, entre outras coisas, que a sexualidade é a «dissolução gradativa das couraças caracteriológicas que bloqueiam nossa sensibilidade».

Ovniologia.

Um termo interessante. O estudo de objectos não identificados. Na física, química, biologia, e afins os objectos de estudo estão lá, e quem os estuda sabe identificá-los. Na astrologia, teologia, parapsicologia, e outras que tais, os objectos de estudo provavelmente não existem, mas se existissem – se os astros afectassem as nossas vidas, se existissem deuses ou telepatia – os ‘ólogos destas coisas podiam dizer «Vejam, é isto que eu estudo».

Os ovniólogos nem isso. Se sabem o que é, já não é ovni. Na ovniologia é preciso investigar sem nunca saber. Deprimente? Não. É uma maravilha. Uns viram algo que não sabiam o que era. Outros disseram que podia ser isto, outros que era aquilo, e ainda outros dizem que não. Ou talvez fosse outra coisa. Conclusão: não se sabe o que é. Mais um estudo concluído com sucesso, e mais um passo em frente na investigação ovniológica.

Em 1997 um avião militar A-10 lançou alguns flares durante um exercício nocturno. Os flares servem para enganar mísseis guiados por calor, e por isso ardem a uma temperatura elevada, são muito brilhantes, e caiem devagar para servir de engodo aos mísseis. A figura abaixo mostra um A-10 a lançar flares. À noite isto é muito ovniesco.

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(Clique para ver maior)


Um artigo sobre este incidente na UFOPT.com(1) segue a boa prática da ovniologia. Aponta que «Para alguns [...] as luzes [...] não passaram de “military flaires” (foguetes de sinalização usados pelo exercito)». À parte da gralha, não são nem de sinalização, nem do exército. São contramedidas usadas pela força aérea. Garante-se assim que nenhuma identificação atrapalhará o estudo ovniológico. Acrescenta-se relatos de «esferas de luz», outros avistamentos, que «a explicação não agradou a todos», e até que «militares de diversas facções dizem que nunca poderiam ser esses foguetes». Até compreendo o piloto. Se eu estivesse a sobrevoar várias facções militares também recorria a contramedidas, à cautela... A conclusão é necessariamente inconclusiva:


«O que se passa então nos céus de Phoenix? Será que uns simples foguetes de sinalização iludiram uma cidade inteira, incluindo militares e profissionais de diversas áreas com capacidade para distinguir uma coisa da outra? Será que o governo está a tentar encobrir os acontecimentos porque se tratam de mais um MOGUL (Projecto MOGUL)? Ou será que realmente os “homenzinhos verdes” decidiram fazer uma visita à cidade de Phoenix?»


Mas o mais engraçado foi este comentário de um leitor: «como é possível profissionais se iludirem?». É verdade. Profissionais. Iludirem-se. Verdadeiramente inexplicável...



Silv3r_Wolf, 20-2-07, Luzes sobre Phoenix

terça-feira, março 27, 2007

Os limites da ciência. Ou, novamente, a tal coisa do sobrenatural.

Recentemente, o Jónatas Machado escreveu neste blog um longo comentário onde volta a insistir que «a convicção acerca da verdade da teoria da evolução é uma consequência inescapável da filosofia naturalista que lhe serve de base, independentemente de qualquer investigação científica.». E colocou o comentário três vezes, em três posts diferentes. Eu já achava que os argumentos criacionistas eram repetitivos. Agora nem sei o que dizer...

Mas uma coisa é certa. Uma ideia errada continua errada por muito copy-paste que lhe façam. E a convicção da verdade da teoria da evolução, ou da ciência em geral, fundamenta-se na concordância entre modelos e observações. A crença dualista que divide o universo em natural e sobrenatural não tem nada a ver com o assunto. Infelizmente, esta crença está tão enraizada na nossa cultura que muitos assumem-na implicitamente. No Conta Natura, o Santiago escreve (1):

«... parapsicologia não é Ciência e não aceito nenhuma definição de "Ciência" que não exclua a parapsicologia! A razão para este meu "preconceito" é bem simples de explicar: A parapsicologia (e disciplinas afins) invocam causas não-naturais (ie: Que não explicam em termos de interacções entre matéria e energia).»

Concordo que a parapsicologia não é ciência, mas discordo da razão. A explicação de observações por interacções entre matéria e energia é apenas uma parte do modelo que temos agora. Se o universo fosse outro poderíamos ter outras explicações, fruto do mesmo método científico, mas sem matéria nem energia como as consideramos agora. No século XVIII o calórico foi proposto para explicar o calor, um fluido invisível e sem massa que permeava toda a matéria. Claramente «sobrenatural», pela definição do Santiago. Mas era uma hipótese científica, rejeitada por não ser compatível com as observações.

Mas vou explicar como eu delimito a ciência, e porque concordo que se exclua a parapsicologia. Consideremos estas três hipóteses:

A- Um deus sobrenatural magicamente transforma toda a manteiga do meu frigorífico em brócolos, todos os dias, às 10:00 em ponto.
B- Um deus sobrenatural magicamente transforma manteiga em brócolos, mas apenas quando é impossível determinar se isto ocorreu.
C- O Silva transforma manteiga em brócolos, por métodos naturais ainda desconhecidos, mas apenas quando é impossível determinar se isto ocorreu.

A hipótese A é sobrenatural, mas é falsificável, testável, e 100% científica. Observa-se o frigorífico às 10:00. Se a manteiga não se transforma rejeita-se a hipótese. Se se transforma pode haver outra explicação, mas isso é verdade para todas as hipóteses científicas. Podemos refutá-las, mas nunca podemos garantir que não há alternativa melhor. As hipóteses B e C não são científicas porque não há forma de verificar a alegada transformação. Pouco importa que o Silva seja natural.

Até podemos acrescentar à hipótese A um mecanismo sobrenatural: é com a palavra mágica «plinplão» que esse deus transforma manteiga em brócolos. Mais uma hipótese testável e científica. No nosso universo é uma hipótese disparatada, mas apenas porque sabemos que não funciona. Se funcionasse, se dizer «plinplão» transformasse manteiga em brócolos, teríamos que incorpora-la no modelo científico desse universo. E até teria aplicações práticas para quem estivesse de dieta.

Como o Santiago, também considero que a parapsicologia não é ciência. Mas não pelo sobrenatural. Se fosse por isso bastaria dizer que a parapsicologia depende de leis naturais desconhecidas, e lá teria que a aceitar como ciência. Nada disso. O que falta à parapsicologia (e a ovniologia, e à magnetoterapia, e a tantas parvoíces que não alegam nada de sobrenatural) é um conjunto de hipóteses concretas, testáveis, que demonstrem ter valor para explicar e prever as observações. É isso que importa à ciência. «Sobrenatural» nem sequer faz sentido a menos que se assuma alguma forma de dualismo, e nada justifica essa premissa.

1- Santiago, 26-3-07, "The Limits of Science"

As regras do jogo.

No colóquio de dia 21 (1) alguns intervenientes compararam a ciência e a religião a jogos com regras diferentes. Não ficou claro o que queriam dizer, mas parece-me que esta analogia omite uma propriedade importante das regras da ciência.

As civilizações antigas da China, Egipto, Grécia, e América Central eram muito diferentes. Tinham diferentes deuses, cultura, arte, e política; «jogos» jogados com regras diferentes. Mas algumas regras todas tinham que seguir. A água escorre para baixo em todas as culturas, e isto determina os sistemas de irrigação. Um monte de pedras é estável se a parte inferior for maior que a parte superior, por isso os grandes monumentos antigos tinham forma de pirâmide. Um ser humano precisa de um mínimo de nutrientes para sobreviver, e a população de todas estas civilizações era limitada pelo alimento disponível.

São dois tipos diferentes de jogos. Na interacção entre humanos temos alguma liberdade para decidir com que regras jogamos. Monarquia ou democracia, cristianismo ou ateísmo, barroco ou gótico, e assim por diante. Na interacção com o resto do universo temos que nos sujeitar ao que este é. As regras deste jogo não são negociáveis.

Este diferença marca a história dos últimos séculos. Por serem jogos humanos com regras negociáveis, as religiões (e outras ideologias) multiplicam-se em variantes doutrinais. Seitas, cultos, igrejas, denominações disto e daquilo. Uma diversidade crescente, agora que a repressão violenta da heresia é menos comum. Um arbusto fertilizado pela imaginação humana. Por outro lado, o jogo da ciência é descobrir como o universo funciona, e isso limita as possibilidades. Também neste jogo a imaginação humana contribui com ideias novas, mas a realidade obriga a encaixá-las num único modelo coerente. Em vez de rebentos a divergir, as ideias novas em ciência são tributários de um grande rio. É por isso que não há bioquímica evangélica, apostólica, ou ortodoxa, nem físicos da Ordem de São Newton, nem biólogos da Opus Darwinei.

O objectivo da ciência é conhecer a realidade, e a primeira regra é simples: vale qualquer hipótese com consequências observáveis. Tais hipóteses podem ser testadas, comparadas com alternativas, e seleccionadas pela sua correspondência ao que observamos. As restantes, sem consequências observáveis, são irrelevantes. Porque nunca se pode saber se estão certas ou erradas não nos podem dar qualquer conhecimento. Todas as regras do jogo da ciência são consequência desta regra e de como o universo funcionar. E são iguais para todos.

1- Eu, 24-3-07, Darwinismo versus Criacionismo: colóquio na FCUL.

domingo, março 25, 2007

A premissa naturalista.

Num comentário recente, Jónatas Machado propôs que:

«na questão das origens, uma vez adoptadas premissas naturalistas para a interpretação dos dados empíricos, os resultados só podem ser evolucionistas. Ou seja, o evolucionismo encontra-se pré-programado nas premissas naturalistas.»

Isto é falso a vários níveis. Por exemplo, se existissem apenas fósseis iguais às espécies modernas e as populações não mudassem ao longo do tempo o resultado nunca seria a evolução. Esta conclusão não depende das premissas, mas das evidências. Mas o que me preocupa na afirmação de Jónatas Machado é a ideia que uma premissa naturalista impede a ciência de considerar qualquer hipótese não naturalista. Preocupa-me porque muitos dos que praticam ciência concordam com isto, apesar de me parecer evidentemente falso.

Há seis mil anos, um milagre sobrenatural criou uma batelada de água que inundou a Terra durante 40 dias. Outro milagre pôs tudo sequinho como antes, mas entretanto o dilúvio extinguiu muitas espécies e criou o registo fóssil. Esta é uma hipótese não naturalista, mas a ciência não tem qualquer problema em avaliá-la. E rejeitá-la, por ser contrária às evidências. Há muitas formações geológicas incompatíveis com este dilúvio, uma inundação nunca poderia ter separado os grãos de pólen de acordo com as espécies de plantas, e assim por diante.

Pode-se contrapor que aqui a ciência aborda apenas a parte naturalista da hipótese – a água, os fósseis, a geologia – e que ignora a parte do milagre. Isto é um erro de método, pois só podemos avaliar uma hipótese como parte de um modelo coerente e não como um pedaço autónomo. Mas é fácil ver que esta objecção é irrelevante substituindo o milagre sobrenatural por uma causa natural. Por exemplo, pela intervenção de extraterrestres com tecnologia avançada que trouxeram e levaram a água do dilúvio sem violar leis da natureza.

Podemos levar este modelo mais longe. Os extraterrestres inundaram a Terra, levaram a água, modificaram o registo fóssil, reorganizaram os estratos geológicos e até manipularam as proporções de elementos radioactivos nas rochas para disfarçar o dilúvio e fazer parecer que a Terra tem milhares de milhões de anos. Tudo o que observamos é o resultado destes poderosíssimos criadores (100% naturais) que criaram a Terra há dez mil anos atrás. Este modelo já está fora da ciência. Não porque tenha algo de sobrenatural, mas porque não tem ponta por onde se lhe pegue. Não prevê nada, não informa, não serve como conhecimento.

É só por isto que se exclui da ciência muitos modelos sobrenaturais. Não pelas cinco letrinhas «s-o-b-r-e», mas porque não servem para nada. Tal como muitos modelos naturais. Muitas ideias acerca de OVNIs e coisas que tal são naturalistas mas igualmente disparatadas e igualmente ignoradas pela ciência. É só esse o critério: se o modelo pode ser confrontado com observações e por isso usado para prever observações, então é ciência. Senão, é perda de tempo.

Não há qualquer premissa naturalista na ciência. Pelo contrário, é a ideia de distinguir o natural do sobrenatural que parte de uma premissa dualista, a premissa que o universo se divide em dois tipos de coisas. Espirito e matéria, criação e criador, sobrenatural e natural. Esta premissa cria o falso problema de tentar distinguir categorias que, tanto quanto vemos, são indistintas. O que a ciência faz, e bem, é não assumir o dualismo. Não há qualquer razão para o fazer, nem para se ralar com a nomenclatura inventada pelos crentes no dualismo. O que importa é apenas ver se os modelos propostos servem para alguma coisa. Mas disso falarei mais adiante.

sábado, março 24, 2007

Fé, conhecimento, e mafaguinhos.

O Bernardo Motta apontou que «em grego, "pistis" (fé) é um termo bem diferente de "gnosis" (conhecimento).» Em Português também. Feliz coincidência. Assim não precisamos continuar a conversa em Grego.

Eu propus que a verificação independente permite distinguir o conhecimento da mera crença. O Bernardo retorquiu que:

«eu faço a "verificação independente" da justeza e veracidade da minha fé por intermédio de operações intelectuais.»

É como fazer eu próprio a verificação independente da minha declaração de impostos. Será que a DGCI vai na conversa? Por verificação independente quero dizer mesmo isso. Independente. Se o aluno diz que sabe a matéria, o professor verifica. Se um cientista propõe uma hipótese, outro cientista verifica. Independentemente. E nunca por mera operação intelectual. Algures, alguma ideia será confrontada com alguma observação, senão não se verifica nada. Aposto que em Grego «verificar» e «olhar para o umbigo» também são termos diferentes.

É verdade que poucas vezes precisamos desta verificação independente. Quando consultamos o horário do autocarro ou compramos bolachas basta-nos comparar crenças com observações e rever as primeiras se necessário. Não precisamos que outros confirmem cada inferência que fazemos. Mas quando há empenho pessoal numa certa conclusão, seja nos impostos, passar no exame, publicar o artigo, ou em matéria de fé, é provável que factores subjectivos guiem crenças e afirmações e as afastem da realidade. Nestes casos é importante testar a crença de uma forma independente.

A ciência é exímia nisto. A linguagem rigorosa e a tradição de crítica livre promovem uma actividade colectiva que ultrapassa as limitações individuais de cada cientista. A religião faz o contrário. Criticar ou duvidar é repreensível, e a linguagem religiosa é propositadamente ambígua. Ou mesmo incompreensível. È mafaguinhos por todo o lado, palavras sem sentido.

Um leitor («kota») comentou que «para mim todas as palavras que referiu têm sentido, referem algo, quer exista ou não, quer seja explicável ou não». É verdade que mafaguinhos pode ter sentido para um, deus pode fazer sentido para outro. Mas o sentido da palavra como meio de comunicação – para transmitir informação de uma pessoa para outra – tem que ser o sentido partilhado por ambas as partes, e não o sentido «para mim». De nada serve que «mafaguinho» tenha um sentido para mim se os outros não lhe dão o mesmo sentido.

«Gato» pode ter sentidos diferentes de pessoa para pessoa, mas podemos apontar para um gato e dar um sentido consensual à palavra. «Encarnado» refere uma sensação subjectiva que não sabemos se todos partilham da mesma forma (será que o meu encarnado é o vosso verde?), mas mesmo assim podemos chegar a um núcleo de sentido que partilhamos: «encarnado» é o que se sente ao ver este pigmento, ou quando esta luz incide no olho, ou se estimulam estes receptores da retina ou esta zona do córtex. Mesmo palavras como «justiça» e «amor» têm algum sentido que é partilhado por todos que as usam.

Mas «deus» é mesmo uma palavra mafaguinho. Para os teístas é uma pessoa que se preocupa, que perdoa ou castiga, que se zanga ou se alegra, que ama ou odeia. Para os deístas é o relojoeiro que deu corda ao universo e agora não liga a nada ou ninguém. Para os panteístas é tudo. Para Einstein era a elegância da relatividade. Para Hawking a complexidade da mecânica quântica. Mas não há nada em comum entre todos os estes usos da palavra. Dizer «deus» dá tanta informação como dizer «mafaguinho».

O mesmo se passa com espiritual, sagrado, revelado, e todas essas palavras que as religiões usam para se definir. São inúteis para comunicar ideias concretas pois nunca se sabe ao certo o que querem dizer. E é por isso que abundam na doutrina religiosa.

Darwinismo versus Criacionismo: colóquio na FCUL.

No passado dia 21 assisti ao colóquio sobre Darwinismo e Criacionismo organizado pelo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. Foi uma surpresa agradável. Temia que desse uma impressão de simetria entre a posição científica e criacionista, mas o programa estava bem pensado, dividido entre filosofia, ciência, ensino e religião. Mesmo o painel representando a religião mostrou a diversidade de criacionismos e dos aspectos religiosos desta discussão.

A palestra de Jónatas Machado foi uma das razões que me levou ao colóquio, e tive muito gosto em vê-lo ao vivo a apresentar a sua versão do criacionismo. É um bom orador, experiente, e aproveitou bem o erro comum de afirmar que a ciência exclui o sobrenatural. No entanto, os argumentos do criacionismo bíblico evangélico só convencem quem não estiver informado. Com o debate presidido por professores de geologia e biologia, e uma audiência de profissionais e alunos universitários destas áreas, estes argumentos criacionistas foram cabalmente rejeitados.

As apresentações sobre o ensino e filosofia da ciência foram interessantes, mas gostei especialmente do painel científico. O Octávio Mateus deu uma excelente palestra sobre fósseis de transição, mostrando que onde os criacionistas apontam falhas no registo fóssil há por vezes centenas de fósseis de transição, mostrando a evolução gradual de várias características. Dos dinossauros aos pássaros, dos répteis aos mamíferos, de carnívoros terrestres às baleias.

O que me preocupou no colóquio foi que vários apresentaram a ciência e a religião como «jogos» com regras diferentes. Pior ainda, que são as regras da ciência que a proíbem de lidar com o sobrenatural, que é batota meter deuses à mistura com ciência. É falso, e um erro sério.

A ciência é o «jogo» de descobrir como o universo funciona e como tirar partido de tudo o que existe. As regras são ditadas pelo universo, e não por nós. Numa religião podemos inventar regras: exegese, revelação, intuição, meditação, o método é ao gosto do freguês. Em ciência, ou confrontamos hipóteses com observações ou não vamos a lado nenhum. Inventem as regras que quiserem, mas só isto é que funciona. E se partes do universo forem «sobrenaturais», é também assim que teremos que as descobrir e compreender, pois não há outra forma de o fazer. Mesmo que haja unicórnios ou dragões não é com rezas e bíblias que os vamos estudar.

quinta-feira, março 22, 2007

«Crença»

é um termo ambíguo. É a atitude de aceitar algo como verdade, como quando creio que não está a chover. Mas é também recusar que algo possa ser falso, como na fé religiosa. E além de ser ambíguo por vezes é mal aplicado. A crença é apenas a atitude de quem crê, é a forma subjectiva de se colocar perante uma hipótese. Por si só, a atitude não indica a veracidade da hipótese. Daqui resulta uma confusão entre crença e conhecimento, como exemplificou um comentador anónimo neste blog:

«deve perceber que interpretações das intenções de Jesus, feitas por alguém que não acredita na ressurreição interessam-me tanto como uma aula de português dada por um analfabeto»

É verdade que quem sabe também crê. Se sei que o teatro está a arder, necessariamente acredito que o teatro está a arder. Seria contraditório dizer que sei algo em que não acredito. A crença é parte essencial do conhecimento, e quem sabe ler acredita que sabe ler. Mas esta é a crença no sentido de aceitar algo como verdade. A outra crença, a atitude de recusar que algo possa ser falso, impede o conhecimento. Por um lado porque encurrala o crente. Por outro lado porque saber é mais que a atitude de crer. É crer em algo que é verdade (senão é engano), e pelas razões certas (senão é adivinha, e não saber). Como as razões que fundamentam uma crença são sempre falíveis nunca justificam uma crença definitiva e irrefutável. Ninguém passa a saber ler só por acreditar que sabe, por muito convicto que seja. E é melhor uma aula de Português dada por um analfabeto ciente das suas limitações que por um analfabeto convencido que sabe ler. Mas saber ler é algo que podemos testar, e podemos determinar quem sabe e quem não sabe de uma forma independente da crença de cada um.

Esta possibilidade de verificação independente é a barreira entre a crença e o conhecimento, uma barreira que a religião ultrapassa criando um domínio onde a verificação é impossível. Os mafaguinhos. Se eu disser que sei muito sobre mafaguinhos, ninguém pode testar o meu alegado conhecimento. Assim é mais fácil vender a ideia que a fé nos mafaguinhos fundamenta a sabedoria neste campo. Torno-me um mafagólogo em virtude da minha crença inabalável nos mafaguinhos. O que eu sei é a Verdade Revelada do Mistério Mafaguinhico, e outras tretas que tais.

Deuses, santos, milagres, a trindade que é três em um, as orações e outros mafaguinhos formam um domínio auto-contido de ideias vagas onde a religião vende fé como sabedoria. A sabedoria devia ser a crença na verdade, mas com mafaguinhos não se distingue o verdadeiro do falso. A sabedoria devia assentar nas razões certas, mas os mafaguinhos estão isolados de qualquer razão. Os mafaguinhos são postulados gratuitamente. A hóstia transforma-se no corpo de Cristo porque sim, não porque tenha outro gosto ou textura. O baptismo é importante porque é, não porque o bebé note alguma coisa de especial. A alma existe porque dizemos que existe, sem qualquer razão para o afirmar.

Esta técnica tem dois efeitos nefastos. Cria a ilusão que a doutrina religiosa é conhecimento. Chamam-lhe verdade, saber, Revelação. Mas por muito que os padres e teólogos saibam acerca dos livros que outros padres e teólogos escreveram, sabem tanto acerca dos deuses (ou mafaguinhos) como eu ou qualquer outra pessoa.

Pior ainda, como no exemplo que citei, dificulta aos crentes a distinção entre o que sabem e o que acreditam. E isso é perigoso para eles e para todos. Não era até recentemente, quando o conhecimento era prático, imediato, e quase inconsequente. Um lavrador medieval ou um mineiro no século XVII não tinham muito a perder por confundir conhecimento com crença. Mas nós temos. Individualmente temos mais escolhas e mais possibilidades de decidir o nosso futuro. E colectivamente as nossas escolhas criam ou resolvem problemas que afectam muitos outros. Problemas ambientais, económicos, políticos. Hoje em dia, confundir crença com conhecimento não é apenas disparate. É uma irresponsabilidade perigosa.

domingo, março 18, 2007

Está claro?

A linguagem serve para muita coisa. Para encorajar, prometer, provocar, pedir, causar emoção... e para explicar ou informar. Estes efeitos não são automáticos nem intrínsecos á linguagem. Dependem sempre de como a utilizamos é importante não os confundir.

Por exemplo, não se explica o amor dizendo que é fogo que arde sem se ver. Parece uma verdade profunda, pode despertar emoções, mas não esclarece quem amou nem informa quem nunca se apaixonou. No outro extremo, que os insectos têm seis patas pode parecer trivial. Mas é informativo: quem não sabia passa a saber.

Então como é que o cientista explica o amor? Não explica, porque para explicar é preciso compreender primeiro. Todos (ou quase todos) conhecemos esta sensação, mas não compreendemos o que é. Provavelmente evoluiu por ser uma vantagem na criação dos filhos. Provavelmente envolve hormonas, neurotransmissores, certos padrões da actividade neuronal. Mas sem o perceber não podemos explicar o amor. Podemos fazer poesia, mas só poesia que não esclarece.

Aqui não há nada de controverso. Ninguém explica o amor, mas não há problema porque ninguém finge que o explica. Mas noutros casos há. As doenças, por exemplo. Antigamente ninguém percebia o que eram, e fingiam explicá-las com o equivalente ao fogo que arde sem se ver. Desequilíbrio dos humores. Mau karma. Castigo divino. Bruxaria.

E hoje também. Da biodança à magnetoterapia, quem não sabe engana quem não quer saber com palavras que nem fazem sentido. Sabemos o que é energia, mas energias negativas ou bloqueios energéticos são termos sem sentido. Vibração é um termo claro, mas quando dizem que as essências florais têm vibrações curativas ou se referem ao abanar do frasco ou tiram o sentido à palavra.

A teologia é ainda pior. A espiritualidade, o mistério, a revelação, o sagrado, e mais uma data de termos indefinidos são ideais para fingir que se diz algo profundo sem se dizer nada. Um exemplp da Bíblia é I João 4:8. Deus é Amor. Excelente. Como ninguém sabe o que é deus e ninguém compreende o que é o amor, é a definição perfeita...

Há coisas que ainda não podemos explicar, e algumas que talvez nunca expliquemos. E a linguagem tem funções em que a ambiguidade é importante. A poesia, a política e a religião seriam impossíveis se tivéssemos que dizer tudo com clareza. Mas qualquer explicação tem que assentar em termos claros e bem definidos, senão não explica, não esclarece, não informa. E qualquer pedido de esclarecimento tem os mesmos requisitos. Nem se pode explicar algo com palavras sem sentido, nem se pode pedir que expliquem se não é claro o se quer ver explicado.

A que propósito vem isto? Não perca os próximos episódios: a crença, e a oviniologia...

quarta-feira, março 07, 2007

Apterocyclus honolulensis

É uma espécie de gorgulho, um escaravelho (ordem Coleoptera) que se alimenta de cereais. Como é comum nos escaravelhos, tem um par de asas protegido por élitros, que formam a carapaça dorsal. Abaixo à esquerda mostro um escaravelho da família Buprestidae, a voar. Vê se nitidamente os élitros abertos, de um encarnado vivo. À direita, um Apterocyclus.

BuprestidaeApterocyclus

O interessante no Apterocyclus são as asas. Ou melhor, a razão porque não as vemos: os élitros deste escaravelho estão fundidos numa carapaça sólida. As asas estão lá, mas o Apterocyclus nunca as pode usar.

É uma entre muitas heranças inúteis de antepassados distantes. A versão genética do abat-jour bolorento ou da cadeira carunchosa. Como os olhos das salamandras das cavernas, perfeitamente formados mas enterrados debaixo da pele. Ou a flor do dente-de-leão, que se reproduz assexuadamente e não precisa de flor para nada. Ou os nossos dentes do siso e apêndice, vestígios inconvenientes de um antepassado herbívoro.

Há várias espécies de escaravelho com os élitros unidos. Esta mutação não prejudica um escaravelho que raramente voa, melhora a protecção e reduz a perda de água. As asas presas lá por baixo são um desperdício de energia, tecido inútil que a selecção natural vai eliminar. Mas, sem inteligência, tem que esperar que o acaso crie as mutações certas. E não há nada de inteligente numas asas perfeitas mas perfeitamente inúteis.

Mais um voo da fantasia criacionista que acaba no pára-brisas das evidências.

segunda-feira, março 05, 2007

Obrigado, e volte sempre.

A RIAA estreou há uns dias um site (p2plawsuits.com) para quem eles ameaçam poder pagar logo, sem incomodar o sistema de justiça ou os advogados da RIAA. Eu ia chamar-lhe extorsão, mas o Miguel Caetano antecipou-se com um título genial (1). Bolas. Por isso vou abordar outro aspecto.

Uma música comprada online custa menos de um euro, e as editoras recebem cerca de cinquenta cêntimos. Mas a RIAA exige milhares de euros de indemnização quando processa algum desgraçado. Dizem que é porque a partilha envia a musica para milhões de pessoas. Só que não é bem assim.

O que um envia, outro recebe. Nestas redes de partilha, em média envia-se a mesma quantidade que se recebe. É absurda a alegação das discográficas que cada pessoa envia milhares de cópias de uma música, porque é impossível que assim seja. O mais correcto é assumir que alguém apanhado com uma música enviou essa música uma vez. Alguns mais, outros menos, mas, em média, a razão é necessariamente de um para um.

E esse é um grande problema nestes processos. Um feirante distribui centenas ou milhares de cópias ilegais, mas quem saca umas músicas envia uma ou duas cópias, se tanto. O feirante compete com as discográficas pelo dinheiro dos consumidores. Quem partilha não cobra nada a ninguém. O feirante prejudica a industria vendendo ilicitamente. Quem partilha, se prejudica a industria, é só por não comprar o que estes vendem.

Cada uma das dezenas de milhões de pessoas que partilham ficheiros tem um impacto mínimo na industria. Muito menor que o tal cliché de roubar CDs na loja. Basta imaginar o que seria se dez milhões de pessoas roubassem CDs. A industria falia no próprio dia. Mas em conjunto estas dezenas de milhões ameaçam o monopólio de que depende o lucro das empresas discográficas.

Por isso compreende-se que a RIAA queira punir os poucos que consegue apanhar com penas mil vezes superiores ao prejuízo causado. Mas não é aceitável que a lei o permita.

1- Miguel Caetano, 3-3-07, P2PExtorsão.com

domingo, março 04, 2007

Tipos e propósito.

Da embriologia do século XIX nasceram duas ideias acerca das leis que governam a vida. O embrião começa num estado amorfo, e organiza-se gradualmente num organismo complexo. Propôs-se por isso que a vida do embrião era guiada para a forma do organismo adulto. Por milagre segundo uns, por mecanismos naturais segundo outros, mas todos concordavam que era o propósito do se tornar num organismo adulto que guiava o processo.

Também observaram que um embrião de galinha se transformava em galinha, um embrião de cão num cão, um embrião de humano num humano. Apesar de começarem todos igualmente amorfos, tornavam-se em organismos diferentes. Daqui inferiram que cada tipo de organismo tinha uma essência diferente, um conjunto de propriedades imutáveis.

Já antes de Darwin era aceite que as espécies evoluíam. O avô de Charles, Erasmus Darwin, tinha escrito sobre evolução quando Charles era ainda criança, e Lamarck já era famoso pela sua teoria de como as espécies evoluíam. Mas todos assumiam que a evolução das espécies era como o desenvolvimento dos organismos. A espécie melhorava-se alterando a sua essência para cumprir um objectivo. Duas ideias infelizes que ainda hoje impedem muita gente de compreender a evolução das espécies.

Charles Darwin notou que uma espécie é um conjunto de indivíduos distintos, e não um tipo com uma essência fixa. Quando os criacionistas alegam que nenhum réptil deu à luz um pássaro deixam-se confundir pela ideia dos tipos. Répteis e pássaros são grupos de indivíduos. Cada indivíduo tem características próprias, mas o conjunto de indivíduos abarca uma grande gama de atributos. Uma população de répteis em que uns indivíduos eram mais parecidos com pássaros foi se tornando numa população de pássaros em que uns indivíduos eram mais parecidos com répteis.

Alguns criacionistas perguntam porque há ainda macacos se o Homem evoluiu do macaco. Outra vez se enganam com a ideia de uma essência-homem a tornar-se numa essência-macaco. Foram populações de indivíduos diferentes que se separam em grupos e se tornaram cada vez mais diferentes.

A ideia do propósito é outro empecilho. O que significa isto tudo, perguntam alguns. Para que serve, quem é que guia este processo, qual é o destino da evolução. É como pensar que os grãos de areia no monte decidiram ser pequenos para passar pelos buracos da peneira. É o contrário. Passaram porque já eram pequenos, e não foi de propósito.

A evolução de Darwin é empurrada pelas vicissitudes do passado em vez de ser puxada por uma finalidade. A nossa espécie não evoluiu para ter mais inteligência. A inteligência evoluiu porque os menos inteligentes morreram mais jovens. As espécies não mudam para se adaptar melhor ao seu ambiente, mas porque os menos adaptados deixaram menos descendentes. A evolução é retrospectiva. Não acontece para. Aconteceu porque.

E é talvez esta a ideia que assusta mais gente. Como no século XIX, confundem a população com a essência do indivíduo. A nossa espécie é produto de um processo cego e sem objectivos. Mas este processo deu a cada indivíduo a capacidade de compreender e encontrar sentido na sua vida. Parafraseando Huxley, prefiro compreender como descendo de macacos em vez de usar a inteligência para me iludir acerca das minhas origens.

sexta-feira, março 02, 2007

Dogma e ciência.

É comum que quem defende dogmas que a ciência refuta argumente que a ciência também é dogmática. O que não adianta nada. Mesmo que fosse, um dogma não é mais aceitável só por ser oposto por outro dogma. E a ciência não é dogmática.

Mas a confusão não espanta. A ciência que aprendemos na escola é nos ensinada como dogma. O professor, autoridade, debita a matéria e a criança aceita-a sem questionar. Isto não é uma crítica ao ensino, porque tem mesmo que ser assim. Não podemos pôr os miúdos da primária a rever artigos dos colegas, a apontar defeitos nas conclusões, ou a propor explicações alternativas. O ensino secundário beneficiaria de uma abordagem mais crítica, mas que exigiria demasiado dos professores e a participação activa dos alunos. Não é compatível com a prioridade que é ensinar o maior número possível. Mesmo o ensino superior é dominado pelo conhecimento e relega para segundo plano a prática da ciência como crítica e revisão constante.

O resultado é que só se começa a fazer ciência no mestrado ou doutoramento, onde se exige que o aluno considere alternativas, interprete observações, critique explicações e conceba testes para as várias hipóteses. E isto é como andar de bicicleta. Pode-se explicar em detalhe, mas não há como fazê-lo para perceber o que é. Felizmente, é mais fácil que andar de bicicleta. Não é preciso bicicleta, e as quedas são só metafóricas. Consideremos estas duas afirmações:

A- Se deres com a cara na parede magoas o nariz.
B- Se ofenderes Deus sofrerás eternamente.

Ambas parecem dogmáticas. «Dogma» deriva da palavra Grega para opinião (dogmatos), e ambas podem ser apresentadas como a opinião inquestionável de uma autoridade. Mas são diferentes. É por mera opinião que se aceita B. Podem chamar-lhe fé, crença, ou tradição, mas é tudo opinião. A afirmação A é diferente porque podemos testá-la. Tenham a opinião que tiverem, se baterem com a cara na parede terão uma informação concreta que transcende o mero dogmatos. E essa é a base da ciência.

Isto impõe certas restrições. Não vale falar do unicórnio invisível cor de rosa, nem afirmar aquilo que nunca se pode saber se é verdade ou não. Se formos por aí caímos novamente no dogma. O que não se pode testar aceita-se ou rejeita-se por opinião. Mas no resto podemos criticar, duvidar, especular, propor alternativas, fazer experiências, e no fim ver quem tem razão pelas evidências.

Enquanto as opiniões são subjectivas, as evidências podem ser tais que sejam iguais para todos. Batam com a cara contra a parede se discordarem da afirmação A. É esta a grande vantagem da ciência. Não é o laboratório e os tubos de ensaio, não é o tal «método» de que tanto se fala, se bem que ambos sejam importantes. Acima de tudo a ciência é o empreendimento colectivo de criticar, duvidar, questionar, e no fim encontrar nas evidências a base do consenso. E todos podemos fazê-lo.

Para participar basta deixar de ver opiniões como minhas, tuas, ou dele. Não interessa de quem são. Não interessa a tradição, a crença, o padre ou o professor. Interessa apenas as opiniões, que são de quem as quiser, e as evidências, que são para todos quer queiram quer não. Isto não quer dizer que a autoridade desapareça por completo. Se temos evidências que o mecânico normalmente encontra a avaria, justifica-se confiar na sua opinião. Mas justifica-se pela evidência. Pela evidência que o mecânico usa quando forma uma opinião, e pela evidência que demonstra que muitas das suas opiniões estão correctas.

O caso do padre ou do teólogo é diferente. Afirmam com autoridade que a homossexualidade é intrinsecamente pecaminosa, mas nem há evidência que esta opinião esteja correcta, nem há evidências que os padres ou teólogos consigam identificar o pecado melhor que os outros. A autoridade desta opinião assenta apenas na opinião de ser autoritária. É isto que é dogma.

quinta-feira, março 01, 2007

Escorbuto.

Este é o segundo post aqui de Munique, e o tema adequa-se ao ambiente destas reuniões de projecto. Traz à mente as intermináveis viagens dos descobridores, meses a fio da mesma coisa. Barco inclina para estibordo, barco inclina para bombordo. Repete. Repete. Conclusões. Palmas. Perguntas? Ninguém? Próximo orador...

O culpado do escorbuto é o GULOP. GULO é o gene que codifica a oxidase da L-glucono-delta-lactona, enzima necessária na síntese da vitamina C (ácido ascórbico). GULOP é o pseudo-gene correspondente ao GULO, e é pseudo porque não funciona. Todos os primatas antropóides têm o GULOP, a versão estragada do GULO. No GULOP podemos identificar quase toda a sequência do gene funcional, mas mutações acumuladas nos antepassados dos antropóides inviabilizaram o gene.

Sem GULO não sintetizamos vitamina C, e sem vitamina C não sintetizamos colagénio, proteína essencial para os vasos sanguíneos e pele. Como a nossa dieta normalmente contém vitamina C, passamos bem sem a oxidase da L-glucono-delta-lactona. Mas quem comer só bolachas e carne salgada sentirá na pele (literalmente) as consequências deste acidente genético nos nossos antepassados distantes.

A teoria da evolução explica a origem do problema. Há quarenta milhões de anos nasceu um primata com um defeito neste gene. Era incapaz de sintetizar vitamina C, mas como ele e os seus contemporâneos comiam verdura em abundância ninguém deu pela falta do GULO. Teve filhos, os filhos também, e com o passar dos tempos todos os descendentes desta população tinham um GULO defeituoso. E ninguém deu por nada até aos descobrimentos porque sempre tiveram vitamina C na dieta.

E ajuda a explicar porque não há antropóides carnívoros. Há herbívoros, como o gorila, e muitos omnívoros, mas primatas exclusivamente carnívoros só entre os prosímios. Sem a capacidade de sintetizar vitamina C é difícil adaptar-se a uma dieta sem vegetais.

Este é apenas um exemplo entre muitos que a teoria da evolução nos ajuda a compreender. O criacionismo não explica porque é que humanos e macacos têm um gene defeituoso para uma enzima que normalmente não precisam mas cuja falta pode ser mortal em certas condições.

Quem quiser saber mais, o Laurence Moran do Sandwalk têm vários artigos sobre isto, que recomendo (e que inspiraram este post):
Scurvy and Vitamin C
Nobel Laureate: Walter Norman Haworth
Human GULOP Pseudogene

Custos e benefícios.

O argumento ético a favor do copyright apresenta um conjunto de restrições como um direito do autor da ideia, um direito que a sociedade deve proteger. Este argumento é obviamente inválido; basta ver que o copyright não se aplica à maioria dos actos criativos nem às ideias em si. E ter uma ideia não dá o direito de restringir os direitos dos outros.

Mas o argumento pragmático é válido: algumas restrições trazem mais benefício que prejuízo, e um monopólio temporário pode incentivar a inovação por proteger o investimento. Faz sentido pagar a edição de um livro conferindo exclusividade durante um período limitado, por exemplo.

O problema é confundir estes dois aspectos. Muitos defendem o copyright alegando questões pragmáticas, mas contando apenas os benefícios para um «autor», que normalmente nem é autor, em nome do «direito» de proibir, que também não é um direito. Parece-me mais correcto considerar os custos e os benefícios para todos.

Assim, a legitimidade do copyright varia com o contexto. É uma forma legítima de regular a concorrência comercial. Restringir a venda de livros ou CDs durante um período razoável tem mais benefícios que custos para a sociedade, pois restringe apenas uma actividade comercial e incentiva o investimento nesta infra-estrutura de distribuição. No outro extremo, escutas telefónicas para prevenir a transmissão de músicas protegidas teria um custo inaceitável para a nossa privacidade, e nunca seria uma forma legítima de incentivar os músicos. Não se trata de escolher apenas o que é melhor para o artista ou para o distribuidor. Há que considerar todos os custos.

Restringir transmissões digitais para implementar o copyright tem três grandes custos. Primeiro, tem que se aplicar a todas as transmissões e não apenas às transacções comerciais, limitando os verdadeiros direitos de expressão e privacidade em favor do falso direito do autor. Segundo, retira do domínio público sequências de números e fórmulas matemáticas que já eram de todos, e tem que o fazer de uma forma indefinida e arbitrária por ser impossível especificar as sequências a proteger. Finalmente, tem um enorme custo de oportunidade.

O custo de oportunidade é o termo económico para aquilo que podíamos ter ganho numa opção alternativa. Por exemplo, os juros não ganhos são o custo de oportunidade de guardar o dinheiro debaixo do colchão. O copyright digital custa-nos a oportunidade de disseminar informação de forma rápida, gratuita, e livre.

Concordo que a partilha de ficheiros afecta a produção de jogos de computador, músicas, ou filmes. Penso que o impacto é exagerado, pois os custos de produção são inflaccionados pelo monopólio que o copyright confere. Um actor de cinema pode viver bem com poucos milhões de dólares; não precisa de largas dezenas por filme. Mas certamente que tem algum impacto.

A questão é se esse impacto compensa os custos de restringir a partilha digital, e a resposta é «Não!». Talvez liberalizar a partilha vá reduzir o investimento em filmes, músicas, e jogos. Mas a alternativa é usar a lei para fiscalizar e restringir transmissões privadas, retirar a matemática do domínio público, e censurar um sistema gratuito de difusão e colaboração cultural. Um preço demasiado elevado só para não ter que esperar pela versão livre do Doom 4.