sábado, setembro 30, 2006

Ciência e Naturalismo

Incomoda-me a ideia que a ciência tem que ser naturalista, e que por isso não pode sequer considerar qualquer explicação que não seja natural. Incomoda-me especialmente por vir esta ideia quer dos que se opõem à ciência quer de alguns que deviam compreender melhor a abordagem científica.

Vamos supor que queremos melhorar as colheitas, e que consideramos duas hipóteses. Uma, naturalista, diz que devemos irrigar os campos e usar fertilizante. A outra diz que devemos propiciar os deuses para que providenciem uma colheita abundante. Há uma forma clara de determinar a melhor hipótese: irrigamos e fertilizamos metade das plantações, e na outra metade sacrificamos vacas, rezamos, ou seja o que for que a segunda hipótese indique como propiciando melhor os deuses. No final medimos quanto foi produzido e já sabemos o que funciona melhor.

O método é o mesmo, e é o Universo que determina a melhor alternativa. É pelo Universo ser como é que nós irrigamos os campos em vez de sacrificar vacas, ou levamos o carro avariado ao mecânico em vez de o levar à igreja. A ciência diz-nos que é melhor fazê-lo desta maneira, mas se fosse melhor fazer da outra, também era a ciência que o iria mostrar pela comparação dos resultados.

O problema com o sobrenatural não é ter deuses, demónios, espíritos ou essas coisas que as pessoas inventam. O problema é que, normalmente, uma hipótese sobrenatural não diz nada. Um deus omnipotente que nunca actua quando está a ser testado não pode ser testado cientificamente. Mas não é por causa do naturalismo; um fertilizante químico que nunca actua quando estamos a tentar observá-lo é igualmente impossível de testar. As coisas que a ciência não pode testar são apenas as coisas que não podem ser testadas, ponto final. Chamar-lhes naturais ou sobrenaturais é irrelevante.

Isto para a ciência como método. A ciência como o corpo de conhecimento científico põe de parte espíritos, deuses, e essas coisas que se diz serem sobrenaturais (mas por que é que um deus não pode ser um deus natural?). Mas estes foram excluídos simplesmente porque parecem não existir, e não por limitação do método. A ciência é bem capaz de excluir o Pai Natal, os unicórnios, e as fadas madrinhas, sejam estes naturais ou sobrenaturais.

E se vivêssemos num Universo diferente a ciência poderia dar-nos faculdades de ciência teológica, engenheira dos espíritos, tecnologia da oração, demonologia aplicada, e o que mais fosse. Se os deuses e espíritos existissem e interagissem connosco, não poderíamos ficar pelo primeiro livro sagrado que nos impingissem. Teríamos que comparar diferentes religiões, testar os profetas, confrontar estas hipóteses de forma a encontrar a verdadeira religião. Tudo isso seria ciência.

Em suma, a ciência não está limitada ao natural. O Universo é que veio sem acessórios sobrenaturais, e a ciência apenas nos diz que é assim que as coisas são.

4 comentários:

  1. Permito-me discordar. A ciência não é apenas o método (aliás segundo Feyerabend o método é mesmo prejudicial à Ciência). Para abordar uma questão de um modo científico é preciso primeiro definir o objecto de estudo de uma forma precisa e concreta, e é por isso que o exemplo dado é um mau exemplo. Comparar os campos regados com vacas sacrificadas é apenas uma abordagem empírica. Chega-se a uma conclusão empriricamente mas sem se definir o objecto de estudo nem propor uma hipótese explicativa. Isto porque os Deuses a quem se sacrifica uma vaca, por serem metafísicos não constituem um objecto passível de estudo. A observação empírica de que regando os campos se obtêm melhores resultados tem um valor operacional, permite encontrar a melhor alternativa, mas não oferece uma explicação científica para o fenómeno que se pretende estudar. Porque é que regando se obtêm melhores resultados do que sacrificando vacas? Sendo os Deuses metafísicos não os podemos analizar, medir, estudar, portanto não permite explicar porque é que eles não são tão eficazes quanto a rega.

    Este raciocínio vai de encontro ao argumento naturalista, porque o objecto de estudo para poder ser alvo de uma abordagem científica - e não simplesmente empírica - tem que ser material, concreto, ou seja natural, senão não estamos a fazer Ciência.

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  2. Caro zéd,

    Obrigado pelo comentário, que levanta questões interessantes. Espero ter tempo em breve para continuar este post e elaborar melhor esses pontos.

    Mas, em traços gerais: a observação empírica permite formular novas hipóteses, que por sua vez levam a novas observações, e esse ciclo é que é ciência.

    A ciência apenas não pode prosseguir se faltarem hipóteses uteis. Mas isso não tem nada a ver com o sobrenatural, pois podemos formular hipóteses uteis acerca do sobrenatural, bem como podemos formular hipóteses inuteis acerca do natural.

    Porque é que sacrificar vacas não adianta? Uma hipótese util, e científica, é que os deuses não se importam com o que fazemos. Esta é útil porque podemos testar as suas consequências (insultamos os deuses em metade dos campos, por exemplo) e ver se estamos no bom caminho.

    Uma hipótese inutil é dizer que os deuses agem de forma misteriosa. Esta é inutil porque não permite prosseguir na procura de melhores explicações.

    É claro que outro problema está na distinção entre natural e sobrenatural, que é igualmente problemática por não ser minimamente rigorosa.

    Finalmente, discordo que um objecto de abordagem científica tenha que ser material e natural. Tem é que ser bem definido. A evolução, a aceleração, ou a entropia não são materiais. E chamar a algo "sobrenatural" não é relevante, pela a falta de significado concreto desta palavra.

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  3. Penso que o Ludwig Krippahl tem razão. A ciência tem um campo estrito de observação baseado na análise empírica dos fenómenos.

    Tudo o que for para além disso não é científico, estou de acordo.

    Ora a ciência não pode dizer que aquilo que não vê ou não consegue explicar não existe ou é "fantasia".

    Se hoje se descobre mais um planeta, isso não significa que esse planeta só existe a partir do momento em que um cientista o descobriu. O planeta estava lá, o empirismo científico é que não o tinha atingido.

    O mesmo se passa com Deus. Tal como Ludwig o diz Deus não entra no campo da ciência.

    Mas isso não implica que ele não exista. Muito simplesmente o Ludwig não o encontrou o que não significa que não exista.

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  4. Então, hoje o que se entende por ciência não se prende mais ao que é apenas natural e que possa ser descrito a partir de parâmetros próprios das ciências naturais.
    Existem outras formas de ciência paralelas à natural. Recomendo aos interessados que estudem a Fenomenologia de Husserl, a hermenêutica de Heidegger e as considerações filosóficas de Nietzsche para a compreensão de que ciência é conhecimento, e este pode se dar dentro de planos diferentes do naturalismo que já teve sua época de exclusividade,mas não mais. O objeto de estudo da ciência deve ser bem definido, mas não tem que ser necessariamente identificado como natural, porque fora do naturalismo também há conhecimento, ou seja ciência.

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