segunda-feira, julho 04, 2016

Treta da semana (atrasada): je suis...

Outro dia vi duas mulheres a beijarem-se e achei nojento. Não por serem mulheres, que até acho mais aprazível beijar mulheres do que homens. Mas uma delas estava a fumar e repugna-me beijar alguém com hálito de cinzeiro. Em defesa da minha tabacofobia, gostaria de dizer três coisas. Primeiro, não sou moralmente culpado por odiar tabaco. Talvez seja genético. Os genes para os receptores do olfacto variam de pessoa para pessoa e não tenho culpa se os que me calharam me fazem enjoar com este cheiro. Ou pode ser trauma de infância. Cresci numa casa de fumadores e numa época em que ninguém se ralava com quem não queria o fumo dos outros. Seja como for, o meu ódio pelo tabaco faz parte de mim não o posso desligar quando queira. Em segundo lugar, odiar tabaco e querer distância de quem fuma não me torna responsável se algum maluco matar fumadores. Odiar e matar não são a mesma coisa. E, terceiro, se bem que eu odeie o tabaco e outros gostem de fumar, podemos conviver perfeitamente uns com os outros. Basta que não fumem para cima de mim.

Esta última condição tem uma característica importante. O equilíbrio óptimo entre posições antagónicas não depende da opinião de ninguém nem exige que alguém mude a sua. Quer se deteste ou adore tabaco, o melhor é permitir que cada um fume quando quiser desde que não obrigue ninguém a fumar. Isto é tolerância. A tolerância não exige amar ou abdicar do ódio. Não requer simpatia, concordância, apoio ou sequer respeito, aplicando-se mesmo ao que se despreza ou odeia. A tolerância está no equilíbrio que melhor concilia as diferentes opiniões. Precisamente para que ninguém tenha de abdicar da sua. Dizem que os direitos de cada um acabam onde começam os direitos dos outros. O tolerante compreende que os direitos de cada um só devem acabar exactamente onde começam os dos outros. Mesmo que sejam exercidos para algo tão repugnante quanto beijar a boca de alguém que fuma.

Este princípio não serve só para a tabacofobia. Deve aplicar-se a tudo, incluindo coisas como a homofobia ou o racismo. Porque a tolerância não é só para aquilo que é fácil de aceitar. É para que todos possam amar ou odiar o que quiserem, exprimir o que pensam e viver de acordo com o que sentem com a maior liberdade que seja possível conceder sem privar outros de liberdades equivalentes. É um problema objectivo e não depende do que nos agrada ou repugna.

O que me motivou a escrever isto foi a reacção ao massacre homofóbico em Orlando. Acerca do massacre não me ocorre nada que não seja óbvio. Mas muita gente apontou o problema errado. Só para dar dois exemplos, no site da ILGA afirma-se que «o ódio que esteve na base do atentado é insuportável» e pedem que «denunciem sempre» quaisquer manifestações de ódio(1); e o Daniel Oliveira escreveu que «[a] homofobia é o mais poderoso dos ódios» e que é falso que sejamos «tolerantes com a homossexualidade.»(2) Isto é errado porque o problema não está no ódio nem a homofobia é necessariamente intolerância. Matar pessoas por ódio homofóbico é tão intolerável como matar pessoas por religião, dinheiro, política ou capricho. Seria fraco consolo para as vítimas e suas famílias descobrir que, afinal, não tinha sido a homofobia a motivar Omar Mateen. O intolerável nisto é matar pessoas. É isso que passa a fronteira entre os direitos de um e os direitos dos outros. O ódio, a fé, a ganância e a sede de poder, por muito repugnantes que sejam, não são intoleráveis porque estão aquém dessa linha. O que cada um sente é um direito seu. Faz parte daquilo que a tolerância obriga a aceitar, quer se goste quer não.

Eu não sou Charlie. Admiro a coragem daquela malta e acho bem que gozem com quem se leva demasiado a sério, mas não gosto daqueles bonecos nem aprecio aquelas piadas. Também não sou gay, nem LGBT, nem Orlando. Não meto o bedelho na vida sexual dos outros nem conheço essa cidade. Não gosto de discotecas, odeio tabaco e repugna-me ainda mais a homofobia. Mas isso sou eu. Um mero ponto numa gama enorme de possibilidades. A tolerância não tem nada que ver com isto. Não tem que ver com o que me agrada, com os amigos que tenho ou com as experiências que tive. Tolerância é reconhecer que os direitos de cada um só devem acabar onde começam os direitos dos outros. E nem um milímetro antes. A fronteira tem de ficar exactamente ali, por muito nojo que me meta o que alguns fazem do seu lado.

É pela tolerância que condeno o homicídio e sou contra a venda de fuzis de assalto. Isso passa a linha. E é também pela tolerância que oponho esta cruzada contra o ódio. A homofobia pode resultar em intolerância se o homofóbico violar os direitos dos outros. Mas isso acontece também com o fumador ou com quem odeia tabaco. Aquém da linha, a homofobia é um direito como qualquer outro. Combater o que as pessoas são e tentar homogeneizar os seus valores é intolerância, porque falta ao dever de respeitar a liberdade de cada um; é ineficaz, pela dificuldade de mudar o que as pessoas sentem; e é contraproducente porque o ódio perseguido torna-se violento com mais facilidade do que o ódio que se pode assumir e exprimir livremente. Se me obrigassem a viver com fumadores e a fingir que não me importava teriam de ter muito cuidado cada vez que acendessem um cigarro.

A violência homofóbica é intolerável e deve ser combatida. Mas deve ser combatida com tolerância. O objectivo deve ser a coexistência pacífica e não a extinção. Os homofóbicos devem poder ser, sentir, e exprimir-se como quiserem sujeitos apenas ao dever, que todos temos, de não negar tais liberdades aos outros. Reprimir a homofobia apenas substitui uma intolerância por outra e piora o que já está mal. Por muito atraente que pareça, é o caminho errado.

1- ILGA, Orlando: contra o medo e os silêncio, o nosso orgulho e liberdade
2- Expresso, Eu fui Charlie e não sou gay?

5 comentários:

  1. A evidência observável mostra que a origem e a subsistência dos campos magnéticos da Terra e também da Lua são inteiramente consistentes com o ensino bíblico da sua criação recente mas representam um mistério para os modelos de evolução cósmica com os seus supostos milhares de milhões de anos (não observados nem observáveis).

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    1. Afirmas isso com base em quê, Jónatas?

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    2. Ricardo,

      Aposto que a palavra chave é "mistério".
      É uma falácia típica desse senhor o deus das lacunas ou dos buracos.

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  2. Ludwig,

    Embora esteja fora do tema deste post, há uma notícia que vi hoje e que merece uma reflexão: Condenação. A “moda perigosa” dos partos em casa.

    É só mais um dos casos de modas e inteligências superiores baseadas em pseudociências... Se não fosse tão trágico e envolvesse um ser que não se podia defender, até podia ser cómico - uma tragicomédia! Uma tristeza como alguém paga para andar para o tempo da ignorância.

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  3. concordo que a intolerância deve ser combatida. Porém é bom notar que é a indiferença que mata.

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