sábado, junho 06, 2015

Treta da semana (atrasada): o caracol.

O grupo “Acção Directa” lançou uma «campanha de sensibilização referente ao consumo de caracóis […] em Setembro de 2014», se bem que só agora tenham sido gozados por isso. Parece ser consensual, pelo menos pelas “redes sociais”, que o slogan de «‘Gostava de ser cozido vivo? Eles também não.’»(2) é disparatado. Mas é interessante perceber porquê. Temo que a maior parte das pessoas que classificam isto como disparate não o faça pelas razões certas.

Está certa a ideia de que temos o dever de não causar sofrimento a um animal que tenha uma vida subjectiva, com capacidade para sentir e sofrer. Se fosse com gatos ou cães em vez de caracóis pouca gente faria troça. É isto que fundamenta os direitos dos animais. Um direito não é algo que um indivíduo tenha por si, isoladamente, mas a consequência de deveres que outros tenham para consigo. E se um animal tiver consciência de si próprio e da sua história, então a sua vida vale mais do que a mera soma das suas experiências e até merecerá protecção semelhante à que concedemos aos membros da nossa espécie. O problema ético de matar orangotangos, elefantes ou baleias, por exemplo, vai além do sofrimento que possam sentir no instante em que são mortos. Mas a questão fundamental é se os caracóis estão em alguma destas categorias. E as evidências sugerem que não.

A mera capacidade de responder a algo não é evidência de subjectividade. A torradeira desliga-se quando aquece demais e bactérias afastam-se de substâncias nocivas mas não é plausível que a torradeira sinta calor nem que a bactéria sinta desconforto. A reacção imediata e padronizada a um estímulo pode ser determinada por mecanismos simples. Por exemplo, nós temos uma reacção rápida a estímulos nocivos que faz retirar o membro afectado mesmo antes de tomarmos consciência do que aconteceu. Esta resposta é mediada por circuitos nervosos na medula espinal e é independente da ligação ao cérebro (3). Se, distraído, tocar com a mão no bico do fogão, dou um sacão ao braço antes até de perceber o que fiz. Assim, não é por o caracol recolher o pé quando toca numa superfície quente que podemos concluir que o caracol sente. Pode fazê-lo sem ter mais sensação subjectiva do que uma torradeira.

No outro extremo temos o exemplo do cão com a pata ferida que nos deixa fazer festas na cabeça mas que começa a rosnar se aproximarmos a mão da sua pata. Este nível de integração dos vários sentidos e antecipação da dor não pode ser facilmente explicado por mecanismos inconscientes. É também algo que nós só conseguimos fazer enquanto plenamente conscientes. Por este tipo de indícios é razoável concluir que mamíferos, pássaros, e até alguns invertebrados como o polvo, sentem dor de forma semelhante ao que nós sentimos.

Se um caracol fizesse algo análogo ao que faz o cão seria evidência clara da capacidade para sentir. Mas o comportamento do caracol fica muito aquém disto e é pouco plausível que o caracol seja mais do que uma máquina orgânica porque, tanto quanto sabemos, sentir sai caro. Não é com um punhado de neurónios que se consegue ter essa sensibilidade subjectiva e um caracol tem apenas uns 10 mil neurónios no total, com somente umas centenas de neurónios a controlar comportamentos como os de se alimentar ou fugir para a casca (4). Com um sistema nervoso tão simples e um comportamento que não tira partido de qualquer sensação subjectiva, é pouco plausível que o caracol sinta o que quer que seja. A evolução não faz essas coisas surgirem por magia e sem utilidade.

A campanha contra o caracol cozido não tem fundamento e, por isso, não se preocupem com os caracóis quando forem à cervejaria ou ao supermercado. Mas a falta de fundamento não se deve ao caracol ser um bicho, ou ser pequeno, ou ser gostoso ou ser algo que toda a gente coze e come. Deve-se simplesmente a ser um animal com um sistema nervoso demasiado simples para algo aparentemente tão sofisticado como sentir. Mas outros animais que usamos não têm a mesma sorte e quando forem comer um bitoque ou comprar costeletas já vale a pena pensarem no que estão a fazer.

1- Facebook, Acção Directa, Post de 2 de Junho, 20:27
2- Facebook, Acção Directa, Albuns
3- Wikipedia, Withdrawal reflex 4- Scholarpedia, Lymnaea,

4 comentários:

  1. Ludwig,

    Dizes «Deve-se simplesmente a ser um animal com um sistema nervoso demasiado simples para algo aparentemente tão sofisticado como sentir.»

    Creio que é esse o problema de definir limites que me parecem arbitrários. O que significa "demasiado", o que significa "simples" e o que significa "sentir"? Parece a história da árvore que cai sem que ninguém esteja por perto para ouvir...

    Uma regra mais simples pode ser: se eu gosto da carne, porque não a hei-de comer? O nojo ou a piedade está em quem vê o acto. De qualquer forma, se eu for apanhado na selva por um tigre ou uma hiena ou outro predador, ele que faça o que puder, porque eu também o vou fazer. :-)

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  2. Ludwig: E não sei se já te deparaste com a nova onda em que tais caracteristicas de sofrimento são atribuidas às plantas. Com o objectivo ultimo de mostrar que não é melhor evitar comer mamiferos que plantes do ponto de vista moral.

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  3. Ludwig: E não sei se já te deparaste com a nova onda em que tais caracteristicas de sofrimento são atribuidas às plantas. Com o objectivo ultimo de mostrar que não é melhor evitar comer mamiferos que plantes do ponto de vista moral.

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