terça-feira, setembro 16, 2014

O que faltou ontem.

Como qualquer circo, o Prós e Contras de ontem teve praticamente de tudo. Mas houve três falhas que tentarei aqui colmatar.

Primeiro, não ficou claro que não existe o direito à cópia privada no domínio digital. O Rui Seabra mencionou isso mas, com pouco tempo para falar e uma linguagem demasiado técnica, a mensagem acabou por não passar. A cópia privada é uma excepção legal que permite a cópia para uso pessoal sem a autorização do detentor do direito de cópia. Por exemplo, tirar uma fotocópia de um livro pode ser legal mesmo que a editora o proíba. É esta excepção que justifica a compensação pela cópia privada, se bem que esse direito só seja reconhecido quando não causa prejuízo, o que faz questionar a necessidade de compensação. Seja como for, isto funciona com livros em papel e cassetes de música mas não funciona com e-books, DVD ou músicas digitais. No domínio digital, a lei proíbe que se contorne mecanismos de restrição de cópia, o que dá aos detentores dos direitos a possibilidade de impedir a cópia legal caso não a queiram autorizar. Sendo assim, no domínio digital não há forma legal de copiar contra a vontade dos detentores dos monopólios, ficando logo excluída a necessidade de compensação.

Faltou também esclarecer que os portugueses não se dividem em vinte e tal mil autores de um lado e dez milhões de “consumidores” do outro. Em primeiro lugar, porque a cultura não se consome. Consumir implica destruir valor, como quando queimamos gasolina ou comemos batatas fritas, mas a cultura tem tanto mais valor quanto mais pessoas a partilhem. Mais relevante ainda, do ponto de vista jurídico, a lei protege todas as obras por igual, quer provenham de profissionais e tenham fins lucrativos quer provenham de amadores pelo simples prazer de criar. E, se bem que o domínio analógico fosse dominado pelos profissionais, o domínio digital é claramente dominado pelos amadores. Como a lei considera tanto autor quem filmou os filhos nas férias ou escreveu um email como quem realizou um documentário ou publicou um livro, a nossa preocupação não pode ser com os vinte e tal mil associados da SPA. Tem de ser com os dez milhões de autores portugueses.

Finalmente, talvez por lapso da produção, faltou o convite à Sociedade de Autores de Culinária e Afins, cujo comunicado me pediram para divulgar e que transcrevo abaixo.

É com pesar, e alguma revolta, que mais uma vez a Sociedade de Autores de Culinária e Afins (SACA) se vê excluída de um importante diálogo sobre a Propriedade Intelectual e os Direitos de Autor. Há anos que pugnamos para esclarecer os consumidores, tal como tentaram fazer os Exmos. Secretário de Estado da Cultura, Presidente da SPA e Vice-Presidente da SPA. De facto, a maioria da população sofre da ilusão de que, quando compram algo, têm o direito de fazer com a sua propriedade o que entenderem. Este é um erro crasso de quem não compreende a diferença fundamental entre ser dono do suporte ou da sua Forma, uma diferença reconhecida já desde o tempo de Platão.

Considere-se, por exemplo, o Pastel de Nata, um dos grandes símbolos de Portugal e, segundo o saudoso Ministro Álvaro Santos Pereira, de todos os bolos com creme o que mais potencial teria para tirar Portugal da crise. Nas lojas, o exmo. Consumidor pode adquirir este produto na sua forma mais simples ou, com um valor ligeiramente superior, acompanhado de um pacotinho de canela. Desta maneira, o autor culinário pode gerir o mercado de forma a oferecer a cada cliente o que este mais deseja. No entanto, muitas pessoas não percebem que a compra daquele suporte de massa e creme onde o Pastel foi instanciado não lhes dá o direito de usufruir do Pastel de formas não autorizadas. Por isso, compram o pastel mais barato para depois usufruir dele com canela comprada nas grandes superfícies. Este abuso dos direitos de usufruto do Pastel é apenas um exemplo dos inúmeros ataques que constantemente assolam a nossa indústria culinária e de restauração.

Com o advento da Internet e das chamadas “novas tecnologias”, generalizou-se a pirataria das receitas. A poderosa indústria dos electrodomésticos, além de ter tomado conta da blogoesfera, tem lucrado milhões vendendo auxiliares de pirataria, que vão de tachos a robots de cozinha, passando por batedeiras e varinhas mágicas. Estamos cientes de que o problema da pirataria é muito diferente de permitir, com a devida compensação, que o comprador do suporte usufrua da obra de formas não autorizadas, seja pela alteração do formato seja pela adição da canela. Mas é importante explicar o contexto que assola uma indústria fundamental para o nosso país. A música e os livros são coisas importantes, com certeza, mas a alimentação tem de vir primeiro. Não se pode permitir que as pessoas continuem a cozinhar e a partilhar receitas sem regras, e que uma indústria tão importante seja arrasada por amadores quando cozinheiros profissionais passam fome. Assim, propomos ao Exmo. Sr. Secretário de Estado da Cultura que estenda a taxa sobre o equipamento digital a todos os condimentos, ingredientes, aparelhos de cozinha e livros. Reconhecemos que há livros que não são de culinária, mas esses são uma rara excepção e não é justo que a indústria livreira lucre à custa dos profissionais da Criação Alimentar.

José Rendeiro da Cunha,
Chefe de Culinária e Presidente da SACA.

3 comentários:

  1. Estou intrigada! Imagina que compro um livro de culinária e tenho um restaurante. Agora leio uma receita nesse livro e passo a cozinhar essa receita par ao público consumidor.
    Tenho que pagar direitos de autor por cada prato que vendo no restaurante ? :-)

    Ou se em vez de culinária for um livro de arranjos florais, ou como pintar pedras. Nos anos 80 haviam uns livrinhos de pintura de pedras e eu pintei muitas para vender por 25 tostões às amigas da minha mãe :-) Sempre dava para uma bica e uma bola de Berlim.

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  2. Cat-a-List,

    Não tens de pagar porque a legislação é inconsistente. Exclui da definição de “obra” qualquer mera lista de items ou descrição de um procedimento. Assim, uma receita, enquanto tal, não está coberta pela lei. Do livro de receitas apenas está sob monopólio a composição gráfica e qualquer texto adicional.

    A razão pela qual isto é inconsistente é que programas de computador, ficheiros mp3 e, na verdade, qualquer ficheiro, são apenas listas de valores e instruções. Como tal, nunca deveriam ser abrangidos por esta legislação. Mas como a lei não é para fazer sentido, é apenas o resultado de negociações à porta fechada entre lobbies da indústria e políticos que depois acabam por arranjar emprego nessa indústria, podes copiar receitas de bolos mas não podes copiar ficheiros no computador.

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  3. Com que então "Sociedade de Autores de Culinária e Afins (SACA)"?!?

    É impossível ler esta coisa e não fazer piadas de duplo sentido... "Saca, saca o saca rolha e abre o garrafão, que viver sem vinho não presta!"

    Muito bom! Obrigado pela partilha!
    Oops, que já deixei a minha receita de bacalhau à Zé do pipo a queimar... diabos!

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