segunda-feira, agosto 12, 2013

Treta da semana (passada): conflitos de interesses.

O Paulo Pereira de Almeida publicou no DN um post de opinião sobre a vídeo-vigilância. Segundo o Paulo, a vantagem de filmar tudo o que fazemos ficou demonstrada por dois exemplos dramáticos. «Para os paladinos de uma suposta defesa da privacidade, a resolução da investigação aos atentados de Boston, nos Estados Unidos da América, e ao recente e trágico acidente ferroviário, em Espanha, são uma derrota definitiva.Doravante, quem se pretende continuar a opor a uma regulação séria do assunto e tentar contrariar a difusão destes mecanismos de prevenção da criminalidade está, pois, e em definitivo, a ser cúmplice dos crimes que ocorram.»(1) Apesar de escrever disparates não ser crime, também não quero ser cúmplice disso. Portanto, tenho de apontar ao Paulo que, nos exemplos que ele escolheu, os sistemas de vídeo-vigilância não preveniram nada. Não é sequer plausível que a vídeo-vigilância previna atentados terroristas e descarrilamentos, nem tampouco são exemplos em que tenha resolvido a investigação. O FBI apenas publicou as fotos dos bombistas de Boston porque havia tantas imagens disponíveis, obtidas por cidadãos privados e publicadas na Internet, que já se andava a acusar pessoas inocentes. E os irmãos Tsarnaev nem foram identificados pelas imagens. Foram identificados pelo carro que usaram para raptar uma pessoa depois de matar um polícia (2). Quanto ao descarrilamento na Galiza, aqueles segundos de vídeo serviram para mostrar nos noticiários mas os detalhes importantes estavam na caixa preta do comboio e nos registos do sistema de comunicações e controlo de tráfego ferroviário.

Noutro exercício de auto-refutação, escreve o Paulo que aqueles «que defendem uma suposta perspetiva garantivista dos direitos e das liberdades, esquecendo, de caminho, que a liberdade de uns termina, como é sabido, onde começa a liberdade dos outros. Provavelmente - e ainda bem que assim é - tratar-se-á de cidadãos que verdadeiramente nunca foram confrontados com a situação limite de rapto de um familiar próximo, ou com uma ocorrência ou incidente de polícia e criminal mais grave.» É natural que uma pessoa que não goste de sair à noite e veja o seu carro vandalizado todas as manhãs seja a favor de um recolher obrigatório. Ou que quem receba ameaças por telefone seja a favor de que a polícia grave as conversas de toda a gente, para apanhar os culpados. Mas o mero interesse pessoal não torna legítimo aplicar medidas que afectam todos. Os muitos que não roubam, não raptam e não matam têm o direito de não serem constantemente tratados como suspeitos. O direito filmar e vigiar toda a gente acaba no direito de cada inocente a ser tratado como tal.

Mesmo pondo de parte os exemplos mal escolhidos e ignorando a questão dos direitos, a vídeo-vigilância generalizada é um desperdício. Pontualmente, as câmaras servem para dissuadir delitos menores como vandalismo em parques de estacionamento ou pequenos furtos em supermercados. Mas uma medida tecnológica que se derrota com um bigode postiço não afecta crimes mais sérios. O Reino Unido tem um sistema generalizado de vídeo-vigilância com, em média, uma câmara para cada 14 habitantes. Nos anos 90, 78% do orçamento da investigação criminal foi gasto em vídeo-vigilância. Ambos os relatórios do Home Office sobre o desempenho deste sistema, em 2002 e 2005, concluíram que a vídeo-vigilância generalizada não contribua para a prevenção do crime (3). Quanto à investigação de crimes ocorridos, a estimativa é de que se resolve um crime por ano, em média, por cada mil câmaras (4). A conclusão clara é que as centenas de milhões de libras que o Reino Unido gastou em vídeo-vigilância teriam sido melhor empregues no reforço dos polícias que andam nas ruas. Esses têm um papel comprovado na prevenção do crime. Mas aqui começam os conflitos de interesse.

Investir em mais e melhor polícia implica distribuir o dinheiro por muitos candidatos, em treino e salários, nenhum dos quais pode recompensar o decisor por esta medida. Em contraste, investir em equipamento permite adjudicar encomendas de milhões a uma empresa que pode pagar o favor a quem tomar tal decisão. Por exemplo, os chips nas matrículas, que supostamente eram uma medida de segurança, acabaram por ser uma excelente opção de carreira para o assessor que, depois de organizar as coisas do lado do Estado, passou a representar a empresa fornecedora em Portugal (5).

Estes conflitos entre os nossos interesses e os interesses de quem queremos que zele pelos nossos direitos devem ser a preocupação principal nestas medidas. Os poderes que já concedemos à polícia resultam de séculos de procura pelo equilíbrio entre o valor do que queremos defender, a necessidade de conceder poderes especiais a certas pessoas e a reserva com que podemos confiar nessas pessoas. É preciso ter sempre em mente que os polícias são tão humanos, tão falíveis e tão movidos pelos seus próprios interesses como qualquer outra pessoa, pelo que passar os limites já testados é arriscar abusos. Os sistemas de vigilância podem servir para apanhar ladrões, mas também para perseguir opositores políticos e activistas ou para lucrar com espionagem industrial. O incentivo para abusar é muito grande. Outro problema da vídeo-vigilância é que, enquanto não contribui para prevenir o crime, ajuda a manipular a percepção do crime. As imagens de um assalto violento assustam muito mais do que as estatísticas. Aqui temos um conflito de interesses fundamental. Quanto menor for a criminalidade, maior a preocupação dos cidadãos em evitar abusos de poder pelas forças policiais. Pelo contrário, se o crime parecer assustador, a tendência é para desculpar os atropelos. Isto é especialmente importante pela frequência cada vez maior com que usam o medo para nos convencer a abdicar dos nossos direitos. É preciso resistir a esta pressão porque a única justificação para termos leis, tribunais, polícia e prisões é para que protejam os nossos direitos, e nunca para que nos privem deles.

1- DN, O "big brother" venceu
. Obrigado ao João Vasco pela referência.
2- Wikipedia, Boston Marathon bombings
3- ACLU, What Criminologists and Others Studying Cameras Have Found
4-BBC (2009), 1,000 cameras 'solve one crime'
5- Expresso (2009), Ex-assessor do Governo vende chips para SCUT

7 comentários:

  1. "É preciso ter sempre em mente que os polícias são tão humanos, tão falíveis e tão movidos pelos seus próprios interesses como qualquer outra pessoa"

    Aí está uma verdade com fundamento bíblico. A Bíblia diz: "todos pecaram".

    Importa apenas recordar que o "qualquer outra pessoa" também abrange os cientistas naturalistas como Charles Lyell, Charles Darwin, Stephen Jay Gould ou Richard Dawkins...





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  2. O Paulo Pereira de Almeida dificilmente poderia ter escolhido piores exemplos. O vídeo do descarrilamento em Espanha é "disaster porn" para telejornais e pouco ou nada acrescentará à investigação da ocorrência. E nos atentados de Boston foram mais as imagens dos suspeitos capturadas por pessoas que se encontravam a assistir à chegada dos maratonistas do que de câmaras de vídeo-vigilância.

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  3. Este post lembra o argumento que o filósofo existencialista Jean Paul Sartre usou contra a existência de Deus, assente na ideia de que um Deus que realmente criou o homem livre não poderia ser omnisciente, sob pena de ser uma espécie de “voyeur cósmico” que vigiaria todas os pensamentos e acções do ser humano, o que, para Sartre, é a essência da desumanização e da perda de liberdade.

    Jean Paul Sartre achava que o inferno seria isso mesmo, o sermos constantemente olhados fixamente pelos outros.

    É verdade que a Bíblia afirma que Deus conhece todos os nossos pensamentos, que ele sabe quantos cabelos temos (se os temos) na nossa cabeça e quantos pássaros caem mortos no campo.

    Ela também diz que Deus conhece todas as estrelas pelo seu nome, sendo que existem triliões e triliões de estrelas. Essa é a sua essência.

    Um Deus omnipotente, racional e omnisciente não pode negar a sua natureza. Ele não pode deixar de ser o que é. Deus apresenta-se como “Eu Sou o que Sou”.

    Isso significa que não temos alternativa. Temos que viver a nossa humanidade, criada por Deus, diante da sua vista.

    Como a Bíblia diz:

    “O Senhor está no seu santo templo; o Senhor tem o seu trono nos céus. Seus olhos observam; seus olhos examinam os filhos dos homens.” Salmos 11:4

    Na verdade, estamos diante de Deus assim, vulneráveis ao seu olhar. Ele sonda todos os nossos pensamentos e conhece todas as nossas ações.

    Ainda assim, Deus confere uma imensa margem de liberdade a todos nós.

    Tão ampla, de facto, que alguns reclamam contra ela, achando que Deus deveria actuar sempre que visse alguém a fazer mal.

    A Bíblia afirma que Deus não é simplesmente alguém que tudo vê mas que não faz nada.

    Ela afirma que Deus, sendo justo e bom, a seu tempo irá castigar a maldade.

    Mas ela explica que Deus está a dar-nos oportunidade de recebermos o Seu perdão e a Sua salvação e nos afastarmos do mal.

    Deus tem os olhos postos em nós, desejando que coloquemos os nossos olhos n´Ele.

    Como dizia o salmista:

    “Mas os meus olhos estão fixos em ti, ó Soberano Senhor; em ti me refugio; não me entregues à morte.” (Salmo 141:8)

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  4. Bom ponto de vista da questão dos conflitos de interesse (e, claro, obviamente que os fornecedores de uniformes, armamento e acessórios à polícia também têm conflitos de interesse, mas presumo que sejam bem menores e mais controlados [ou seja, mais transparentes] do que os fabricantes de câmaras de vídeo, chips, software de tracking, etc.)

    Quanto ao Paulo Pereira de Almeida, nem sequer se pode dizer que é um «post de opinião», pois ele não está sequer a dar a sua opinião, mas apenas a repetir uma velha máxima da extrema-direita: quem é honesto não tem nada a temer da falta de privacidade. E isto é falacioso — há muitas e boas razões para pessoas perfeitamente honestas não quererem uma exposição da sua privacidade. Alguns exemplos razoáveis: http://www.computerweekly.com/blogs/the-data-trust-blog/2009/02/debunking-a-myth-if-you-have-n.html

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    Respostas
    1. erradum é um péssimo ponto de vista pois a vídeo vigilância depende de energia eléctrica ou de painéis solares onde ela costuma faltar com regularidade

      assim a vídeo vigilância apenas previne ou serve como instrumento de caça às bruxas
      em zonas onde existe uma densidade de possuidores de rendimentos acima da média

      ou da mérdia

      resumindo: se os bombistas tivessem atacado em Detroit safavam-se

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      silly season n'est pas

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  5. já dizia um dos pais da nação americana: um povo disposto a abdicar de parte da sua liberdade para assegurar a sua segurança não merece num uma nem outra

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  6. A ultima frase do post devia estar escrita nas paredes de todas as escolas do país. Infelizmente nem nas privadas se dá esse tipo de educação cívica.
    (obrigado por nos ter recordado que o ex-Secretario de Estado Paulo Campos tinha os braços compridos: até nos chips andou metido.)

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